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A infância de Jesus

Coetzee é um desses escritores de uma escrita que narra com a “exatidão“ no sentido que Ítalo Calvino dava a essa palavra em seu livro “Seis propostas para o próximo milênio.” Um autor cerebral, econômico, talentosíssimo, e com tantas virtudes em seu extenso currículo acabou sendo premiado com o Prêmio Nobel. Li alguns de seus livros. “Desonra”, que já se encontra resenhado aqui no blog, e o fenomenal “Diário de um ano ruim” ainda não resenhado, porém já lido e agora “A Infância de Jesus”.

A infância de Jesus é um livro misterioso, chega a ser impressionante. Uma mistura de Tolstoi com Franz Kafka, uma combinação que foge aos padrões normais, o que mostra o grau de inventividade e o talento desse escritor. Confesso que não gosto de não deixar claro quando afirmo algumas coisas do tipo: Mistura de Tolstoi com Kafka. Parece um pouco presunçoso afirmar isso sem explicar. Como isso funciona no livro? A marca de Tolstoi encontra-se presente na disciplina espiritual de Simão. Esse personagem chega a um país desconhecido de língua espanhola juntamente com uma criança, abandonada pela mãe no percurso da viagem. Durante a travessia, o menino perdeu a carta em seu pescoço, que explicava as origens de seus pais. Simon torna-se seu tutor.


Simão, um homem de meia idade, se responsabiliza por essa criança que se chama David. O menino não tem documentos que possam indicar de onde ele veio ou quem são seus pais. Ambos não falam espanhol. Simon, apesar de suas dificuldades com o idioma, expressa-se com grande lucidez explicando ao menino sobre a natureza do mundo. Assume-se como o tio sábio para o garoto, ele verdadeiramente ama o garoto. Padrinho? Sim! Apesar de não haver nenhuma relação familiar entre eles. No entanto, adota o menino de uma forma muito delicada e paciente.

“Nem neto, nem filho, mas sou responsável por ele.” (pág. 8)

O título do livro é no mínimo curioso e traz um enigma embutido na história. O milagre da inocência humana, o milagre da identidade individual, pois o nome do menino é um improviso para satisfazer as exigências burocráticas dos recém-embarcados de um barco de refugiados do qual são convidados a se desfazer, e a esquecer de todos os traços de sua vida anterior. Novas datas de nascimento, novos nomes são atribuídos a eles. Nesse novo lugar chamado Novilla, um lugar que a princípio sugere um lugar sinistro de um quadro kafkiano repleto de exigências e documentos burocráticos. Pouco a pouco esse lugar revela-se não tão indiferente assim, mas racionalmente eficiente.

Novilla é uma sociedade anônima, uma espécie de utopia socialista, onde os ônibus são gratuitos, as prostitutas são terapeutas, onde funcionários do Estado alocam habitações para trabalhadores, onde trabalhadores podem ter aulas de filosofia, de desenho, um labirinto Kafkiano. A sensação que temos é que todos são imigrantes de algum lugar. Ninguém é da região.

Simão é encaminhado a trabalhar como estivador transportando sacos de grãos de navios. Encontra entre os trabalhadores certa camaradagem. Homens bondosos, e alguns deles chegados a uma especulação filosófica. Apesar de tudo caminhar para a tranquilidade, ele é impulsionado pelo desejo de encontrar a mãe do menino. Carrega instintivamente que ela vai aparecer e reconhecê-lo, embora não tenha ideia de quem ela seja.

Certa vez, ele avista uma mulher jogando tênis com os irmãos numa mansão chamada La Residência. Inês é o nome da mulher que aceita o menino sem problemas. Detalhe: ela é virgem. Ela vai morar no bloco residencial onde morava Simão que vai morar no depósito no cais do porto, no seu local de trabalho. Inês assume o papel de mãe, mas orienta o menino a ficar longe de Simão.

David é um garoto genial ou excepcional nas palavras de sua própria mãe. Sua experiência no colégio não foi muito bem sucedida a ponto de os professores indicarem outra escola para o menino continuar seus estudos. David não vê o mundo como os outros veem. Um exemplo fica claro quando ele contesta a visão de que 2+ 2 = 4, não tem nenhuma validade. Quando ele sucumbe à influência de Daga, um personagem do livro, veremos que os espelhos mágicos aos quais ele tem acesso revelam um traço quase anárquico em sua personalidade.

David sabia ler. Mas os temas escolares oferecidos pelo professor León não o apeteciam. A ponto de o professor chegar a afirmar que o aluno não sabia ler. Foi quando Inês e Simão vão fazer a contraprova, ou seja, vão provar que tudo não passa de um equívoco.

“Durante uma hora eles esperam pacientemente diante do escritório da escola, até a última campainha soar e a última classe se esvaziar. Então o señor Leon passa, mochila na mão, a caminho de casa. Ele claramente não fica feliz ao vê-los.”

 “Apenas cinco minutos do seu tempo, señor Leon”, ele pede. “Queremos mostrar o progresso de David fez com a leitura. Por favor. - David mostre ao señor Leon como você lê.”

O señor Leon faz um sinal para entrarem em sua sala de aula. David abre o Don Quixote. “Em algum lugar de La Mancha, num lugar cujo nome não me lembro vivia um cavalheiro que possuía um pangaré esquelético...”

O senõr Leon interrompe peremptoriamente. “Não estou disposto a ouvir recitação.” Ele atravessa a sala, abre um armário, volta com um livro e abre na frente do menino.  “Leia para mim”

“Ler onde?”

“Leia desde o começo.”

“Juan e Maria vão para a praia. O pai diz para eles que seus amigos Pablo e Ramona podem ir junto. Juan e Maria ficaram animados. A mãe faz sanduíches para viagem. Juan...”

“Pare!” diz o senhor Leon. “Como aprendeu a ler em duas semanas?”

“Ele passou muito tempo com Don Quixote”, ele, Simon, intervém.

“Deixe o menino responder sozinho”, diz o senhor Leon. “Se não sabia ler a duas semanas atrás, como sabe ler hoje?”

O menino dá de ombros.  “É fácil.”

“Muito bem, se ler é tão fácil, me conte uma história do Dom Quixote.”

“Ele cai num buraco no chão e ninguém sabe onde ele está.”

 “Bom?”

 “Aí ele escapa. Com uma corda.”

 “E o que mais?”

“Prendem ele dentro de uma gaiola e ele faz cocô na calça.”

 “E porque fazem isso – prender Don Quixote?”

- Porque não acreditam que ele é Dom Quixote.

 “Não. Fazem isso porque não existe uma pessoa chamada Dom Quixote. Porque Dom Quixote é um nome inventado. Querem que ele volte para casa e recupere o juízo.”

O menino lança um olhar a ele, Simon, um olhar cheio de dúvida.

“David tem a sua própria leitura do livro”, diz ao señor Leon.

 “Tem imaginação viva.”

O señor não se digna a responder.  “Juan e Pablo vão pescar”, diz ele. “Juan pega cinco peixes. Escreva na lousa: cinco. Pablo pega três peixes. Escreva debaixo do cinco: três. Agora quantos peixes eles pescaram juntos, Juan e Pablo?”

O menino fica parado de frente da lousa, os olhos fechados com força, como se quisesse escutar uma palavra dita de muito longe. O giz não se mexe.

“Conte. Conte um-dois-três- quatro-cinco. Agora conte mais três. - Quanto isso vai dá?”

O menino sacode a cabeça. “Não consigo ver eles”, diz com uma voz minúscula”

“Não consegue ver o quê? Não precisa ver os peixes, só precisa ver os números. Olhe os números. Cinco e depois mais três. Quanto dá isso?”

“Dessa vez... dessa vez ... diz o menino com a mesma voz minúscula, sem vida,  “dá oito.”

“Bom. Faça uma linha debaixo do três e escreva oito. Então você estava fingindo durante todo o tempo em que nos disse que não sabia contar. Agora mostre como você escreve. Escreva: - Com-vienene que yo diga La verdad. Devo dizer a verdade. Escreva – Com-viene.”

Escrevendo da esquerda para direita, traçando as letras com clareza mesmo que devagar, o menino escreve: - Yo soy la verdad, Eu sou a verdade.” (págs. 243-244).

Nesse longo trecho citado no livro vemos por parte de David uma forma totalmente peculiar de interpretar os textos de Quixote. Ele não inventa um novo Quixote ele interpreta o texto sob o seu olhar que ultrapassa o ordenamento do sentido. David traz outro olhar, ou seja, a pluralidade contida em sua visão de mundo que se choca com a instituição escolar. E é essa visão de contenção que reside na apatia dos moradores de Novilla.

O livro a infância de Jesus é um livro misterioso, intrigante, enigmático. Alguns poderão achar que o menino David seja o “avatar” de Jesus, será? Eu particularmente duvido muito. O título é o enigma. David é o retrato de uma criança excepcional. E Coetzee descreve essa criança tocando “no piano de calda” de nossas associações criando um arquétipo. Seja lá a interpretação que cada um tenha acerca desse livro só uma coisa importa: é um livro extraordinário feito por um mestre da literatura que reúne um homem, uma mulher, uma criança e vários enigmas e interpretações. Um livro nada fácil, mas cheio de brilho que a linguagem encarna, ainda bem. Por isso merece um lugar em sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< Headhunters Kafka à beira-mar >
A infância de Jesus
autor: J. M. Coetzee
editora: Companhia das Letras
tradutor: Jose Rubens Siqueira

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