Dos Canibais
Michel de Montaigne foi um dos pensadores mais importantes do final do Renascimento francês, tanto por suas inovações literárias quanto por suas contribuições à filosofia. Seus ensaios foram algo novo na história do pensamento ocidental. Eles foram considerados um verdadeiro escândalo na época. Os temas diversos que ele abordou eram muito amplos. Temas mundanos, privados para pessoas comuns. Montaigne muda o foco das abordagens da época, que se restringiam a filosofar sobre contos bíblicos, mitos clássicos.
Como escritor, ele ficou conhecido por ter desenvolvido uma nova forma de expressão literária: o ensaio, um tratamento breve e reconhecidamente incompleto de um tópico pertinente à vida humana, que mescla insights filosóficos com anedotas históricas e detalhes autobiográficos, tudo isso numa perspectiva pessoal. Montaigne ficou conhecido por seu ceticismo que influenciou, por exemplo, Descartes, Pascal, Bacon, Shakespeare (cujo livro A tempestade menciona os pensamentos de Montaigne sobre os canibais).
Os detalhes da vida de Montaigne são em grande parte desconhecidos. Estudou Direito, talvez em Toulouse. Mais tarde, trabalhou como membro do parlamento de Bordeaux, onde também foi prefeito e enfrentou intercorrências, principalmente no segundo mandato de prefeito por causa das guerras religiosas.
Como prefeito leal ao rei, Montaigne trabalhou com sucesso para manter a paz entre as partes interessadas, protegendo a cidade da tomada pela Liga e ao mesmo tempo mantendo relações diplomáticas com Navarra. Como um católico moderado, ele era bem considerado pelo rei de Navarra, e, depois de seu mandato como prefeito, Montaigne continuou a servir como um elo diplomático entre os dois partidos.
As reflexões filosóficas de Montaigne, como já dito, assumem a característica de “Ensaios”. Para nós, leitores contemporâneos, o termo “ensaio” denota um gênero literário bem particular de verificação, experiência, experimentos. Se prestarmos bem a atenção, Freud talvez tenha captado melhor esse espírito de Montaigne quando diz que: “O pensamento é o ensaio da ação”. Para Montaigne, os ensaios são “exercícios”, uma maneira de trabalhar consigo mesmo a ação.
Os Ensaios é um trabalho decididamente não sistemático que fala sobre amor, corpo, morte, politica, costumes e a colonização do Novo Mundo. Há três componentes nesses ensaios. Um deles é a busca de autoconhecimento por parte de Montaigne, ou seja, entender a condição humana em geral. Isso envolve o questionamento de crenças, valores e comportamentos dos seres humanos. O segundo objetivo é entender a si mesmo, como um ser humano particular. Isso envolve registrar e refletir sobre seus próprios gostos e hábitos. O terceiro objetivo é apresentar o seu modo não ortodoxo de viver e pensar ao público leitor da França do século XVI. Em outras palavras, Montaigne divulga os seus modos incomuns e compartilha com todos. Com isso, ele retira a máscara na esfera pública para dizer: “Ei! Eu sou assim, e você como é?”.
Montaigne apresenta seu próprio modo de vida como uma alternativa atraente, nas esferas éticas e política como alternativa aos modos comuns entre seus contemporâneos. Ele também apresenta alternativas aos modos de pensar comuns encontrados entre eruditos. E para isso ele desafia as autoridades aristotélicas, que exerciam uma enorme influência na época, enfatizando o abstrato e a experiência sobre a razão.
Rejeita o conteúdo da filosofia acadêmica, rejeita a rigidez medieval para o estilo sinuoso e desordenado do ensaio. Além disso, Montaigne desvaloriza a faculdade da memória, tão cultivada pelos oradores e educadores renascentistas, e coloca o bom senso em seu lugar como a mais importante faculdade intelectual. Sua preocupação é o presente, o concreto e o humano.
Montaigne carrega um certo ceticismo em seus estudos principalmente sobre os antigos. Alguns o localizam numa tradição cética antiga conhecida como pirronismo.
Os céticos pirrônicos usam argumentos céticos para produzir aquilo que chamam de procurar equivalências entre crenças opostas, ou seja, dois argumentos mutuamente exclusivos podem ser discutidos mediante a suspensão do julgamento. Essa suspensão do julgamento requer tranquilidade, ou paz de espírito, que é o objetivo da paz filosófica. A liberdade de julgar evita o comprometimento, com qualquer posição nas disputas teóricas.
Podemos resumir de forma bem simples: por diversos meios, chegamos ao mesmo fim. Montaigne usa argumentos céticos para provocar a suspensão do juízo sobre as questões práticas e ao fazê-lo consegue entender qualquer contenda política ou teórica.
Um dos principais alvos do ataque cético de Montaigne é o etnocentrismo, ou seja, a crença de que uma cultura seja superior a outra e, portanto, é padrão contra o qual todas as outras culturas e suas crenças e práticas morais devem ser medidas. Essa crença da superioridade moral e cultural do próprio povo, segundo Montaigne, é generalizada.
Montaigne catalogou uma grande variedade de comportamentos encontrados no mundo para chamar atenção à contingência de suas próprias normas culturais. Ao relatar muitos costumes que são inversões diretas dos costumes europeus contemporâneos, ele cria algo parecido com um mundo invertido para seus leitores, atordoando seu julgamento, forçando-os a questionar o caminho: aqui os homens urinam de pé e as mulheres sentam-se; em outros lugares é o oposto.
Aqui o incesto é desaprovado; em outras culturas é a norma. Aqui nós enterramos nossos mortos; lá eles comem. Aqui nós acreditamos na imortalidade da alma; em outras sociedades, essa crença é um absurdo.
Em seu ensaio “Dos Canibais”, Montaigne critica as sociedades europeias, colocando-se no papel do “outro”, usando os bárbaros para examinar os civilizados com uma perspectiva minuciosa, analisando ambas as sociedades. É a partir dessa definição que Montaigne inicialmente oferece críticas à ignorância europeia que assume a superioridade sobre os bárbaros.
No ensaio “Dos Canibais”, Montaigne relata o que aprendeu sobre a vida indígena de um homem que vivera na França Antártica por “dez ou doze anos”. Segundo o relato, dessa testemunha que viveu entre os índios, realça alguns pontos como o sistema de governo em que compartilhavam tudo o que tinham com os outros, e viviam na natureza, lutavam valentemente na guerra e praticavam uma religião livre da corrupção. À medida que Montaigne compartilha essas informações sobre os indígenas, sobre suas crenças e suas vidas cotidianas, encontramos o questionamento de um estereótipo comum, o de que muitos europeus consideravam esse Novo Mundo como selvagem.
Montaigne começa a questionar o modo de vida europeu. E a achá-lo até mais virtuoso e razoável que a civilização europeia, que a seu ver é mais insensível e bárbara. Embora ele questione a deglutição humana por parte dos índios, que costumam comer os seus inimigos. Mas Montaigne lembra as formas de torturas horrendas comumente usadas na Europa dos anos 1500.
Montaigne chegou a conhecer um índio da tribo Tupinambá que descreve uma sociedade sem doenças, de uma alimentação farta e de todo tipo: carnes, peixes, etc. Pessoas que moravam em casas comunais, onde havia divisão do trabalho entre homens e mulheres. Acreditavam na eternidade das almas, possuíam profetas, sacerdotes e se reuniam em assembleias e festas para recebê-los.
“De resto vivem numa terra muito agradável e bem temperada, de modo que pelo que me disseram minhas testemunhas é raro ver. Asseguravam-me não terem visto nenhum trêmulo, quebrantado, desdentado ou curvado de velhice. Eles se instalaram à beira do mar, encerrados por grandes e altas montanhas ao lado da terra, entre ambos havendo cem léguas, ou quase de extensão e largura” (pg 55)
Montaigne descreve uma situação em que ele foi conheceu alguns indígenas da tribo Tupinambá quando foram para a França, e nos diz que eles (os indígenas) achavam estranho que tantas pessoas estavam vivendo na pobreza enquanto seu rei tinha tanto.
Montaigne inverte a crença europeia egocêntrica na superioridade da cultura ocidental. E conclui que os “canibais” vivem em harmonia com a natureza, empregam habilidades úteis e virtuosas. Os canibais, diz ele, não têm palavras para mentir, traição, dissimulação, avareza, inveja e outros vícios. Eles não têm escravos, nem distinções entre ricos e pobres.
“Depois disso alguém perguntou a opinião deles e quis saber o que tinham achado de mais admirável. Responderam três coisas, das quais perdi a terceira, o que lamento bastante, mas tenho em memória as outras duas. Disseram que acharam, em primeiro lugar, muito estranho que tantos grandes homens, barbados, fortes e armados, que estavam em volta do rei (é verossímil que falassem dos suíços e de sua guarda), se sujeitassem a obedecer uma criança e não escolhessem, em vez disso, um dentre eles para comandar. Em segundo lugar (eles têm um tal modo de falar que chamam os homens de “metades” um dos outros), que tinham percebido haver entre nós homens satisfeitos e gozando de toda a espécie de comodidades, enquanto suas metades mendigavam às suas portas descarnados de fome e de pobreza, e acharam estranho que essas metades tão necessitadas pudessem sofrer uma tal injustiça sem pegar os outros pelo pescoço ou atear fogo às suas casas. (pg 71)
Recomendo a leitura de “Dos Canibais”, de Michel de Montaigne, como um livro essencial, um exercício que nos ajuda a pensar as ideias políticas e filosóficas, exercitando a eliminação dos pré-julgamentos e colocando-nos sempre na pele do “outro”, ainda mais nesses tempos em que incluir equivale a excluir. A apresentação de Plínio Junqueira Smith é primorosa. Um livro que merece um lugar de honra na sua estante.