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Cloro

“Cloro”, de Alexandre Vidal Porto, é um romance que nos fala acima de tudo sobre as narrativas que criamos sobre nós durante toda a nossa vida, a versão de nós mesmos no mundo e o olhar do outro que nem sempre nos percebe. Na procura de estruturar o nosso passado, encontramos a clareza que precisamos para construir, no presente, o futuro que queremos ter. É como se estivéssemos passando a vida a limpo, entre a tentativa e a oportunidade de “organizar” memórias numa conversa franca e sem edições.

“Cloro” conta a história do conturbado Constantino Curtis, o protagonista do livro, que adquire consciência da própria homossexualidade ainda na infância, mas que empreende ao longo de sua vida uma jornada de dolorosa negação. Seu gestual afeminado fez com que seu jeito de falar criasse alguns embaraços para ele, até que seu amigo Marcus Bauer chama-o de “bicha” dando-lhe um soco que não chegou a doer, mas era um aviso, uma advertência para adquirir a chave mestra e se trancafiar dentro de um claustrofóbico armário, afinal “ser bicha não era bom”, dada a carga de preconceitos e agressões que acompanhavam (e ainda acompanham) tal condição. E Constantino não estava disposto a correr riscos.

Se a vida fora do armário tem os seus riscos, dentro dele pode ser ainda mais arriscado, tanto para a pessoa fechada lá dentro quanto para os enganados ao seu redor. Através de suas memórias post mortem, Constantino, sentencia:

“Como morto, aqui nesse limbo, meu presente é escuro e estanque. Meu futuro inexiste. Minha realidade é esta. A única coisa que me sobrou foi a memória de certos momentos de minha existência acabada.” (pg 15)

Uma das características mais marcantes da memória de Constantino é o odor de cloro proveniente do corpo de seu professor de natação por quem ele tem certo encanto.

“Até o dia de minha morte, porém, eu me lembrava do cheiro de cloro no corpo de meu professor de natação. Em minha memória, não há abraço mais antigo que o dele. Se você perguntasse ontem, dez minutos antes de eu morrer, se ainda me lembrava do cheiro de cloro no corpo do professor de natação, minha resposta seria sim. Três vezes sim.” (pg 17)

Essa experiência olfativa era a sua memória emocional trancafiada no interior de um personagem que evita o mundo gay, que se tornou um adulto obcecado pelo trabalho, casado e com dois filhos.

“Todo casamento se apoia num equilíbrio dinâmico e precário entre duas pessoas que, ao longo da vida, se transformarão. Casar-se, apenas não adianta. Tem de querer continuar casado todos os dias. Acordar e dizer a si mesmo: ‘Hoje eu vou terminar o meu dia casado’, e adaptar sua vida a esse objetivo. Tem de ter a mesma determinação cotidiana de alguém que decide parar de beber com os Alcoólicos Anônimos: ‘Hoje eu vou continuar casado’. (pg 25)

A segunda parte, “Os outros”, consiste de depoimentos de todos que tiveram importância na vida do falecido Constantino. Sua mulher Débora, seu amante Emílio, seu cunhado crítico e vingativo, Artemisia, a secretária do Consul geral em Tóquio.

Constantino casou-se com uma atriz de teatro chamada Débora, que fazia parte de um grupo de teatro da escola. E foi na montagem de “Casa de Boneca”, de Ibsen, à qual ele assistiu inúmeras vezes, que algo de inusitado apareceu em sua vida: namorar uma atriz de uma escola alternativa. Era uma história que poderia ter um alto nível de aceitação ou podemos também dizer que muitas vezes representam as armadilhas do autoengano. Casar com uma atriz e se relacionar com a vida como um palco às vezes é melhor do que ser pego em flagrante no teatro do invisível.

Todos nós temos histórias sobre nós mesmos. Talvez você que está lendo esta resenha já tenha dito para você mesmo algumas vezes que, para ser amável, deva sempre dizer “sim” aos outros. E, muitas vezes, deve pensar em coisas que você esconde de você mesmo. Existem algumas peculiaridades que preferimos manter para nós mesmos em vez de compartilhar com todos ao nosso redor. Talvez seja um segredo, um “prazer culpado” que escondemos para evitar ferir alguém. Ou até podemos ocultar algo que tememos ser julgados, como, por exemplo, ser LGBTQ+ em uma sociedade que não aceita essa comunidade.

Muitas vezes preferimos guardar segredos porque acreditamos que dessa forma causaremos menos dor. Talvez resida aí a importância da leitura desse livro. Não é sobre ser ou não ser homossexual, mas fala sobre a sociedade burguesa em que vivemos e seus valores.

“A culpa terá sido minha, porque acho que não desenvolvi relação íntima ou espontânea com ninguém. É difícil ser espontâneo quando se tem medo. Como ser íntimo quando a intimidade é o que mais apavora você?” (pg 34)

Se a vida de Constantino segue firme em direção a uma “normalidade” previsível, dois filhos maravilhosos, saudáveis e inteligentes, algo surge de uma forma trágica: a morte bárbara do filho, assassinado de uma forma violentíssima   e achado amarrado numa praia no litoral paulista.

A perda trágica do filho André faz com que a relação entre Constantino e sua mulher sofra um abalo (como não poderia ser o contrário) devastador. Medicamentos, casa blindada com seguranças. Débora se entope de remédios. Na verdade, a morte do filho só acelerou o processo de implosão do narrador.

“Foi quando vi o reflexo da televisão iluminando o rosto de minha mulher, sentada na cama, passando creme na face, na testa, vidrada na tela inerte.

Naquele segundo, em frente àquela visão – minha mulher diante da abertura do Fantástico, fraca demais para reagir –, entendi que o que ela propunha era passar o resto da vida mortos, vidrados na tv, passando creme no rosto para nos decompormos pelo lado de fora. Era essa renovação de votos que ela propunha...

...Minha existência não era perfeita, mas eu não queria morrer ainda. Vejo agora que foi aí que meu compromisso com Débora começou a se desfazer.” (pg 59)

Constantino começou a viajar mais a trabalho. A sombra. É a parte de nós mesmos que evitamos a todo custo – e é por isso que é tão oculto que não temos ideia do que é. Quando confrontados com isso, tendemos a nos esconder ou acusá-lo de ser repugnante.

No entanto, a sombra contém os segredos da liberdade e felicidade que buscamos. A liberdade de ser tudo o que somos: as qualidades que consideramos boas e más – tendo a capacidade de aceitar todas as partes de nós mesmos com compaixão. Entretanto, até que você possa ver e abraçar a sombra, você não poderá acessar sua luz.

“Acho que é por isso que, nesta escuridão eu me encontro – e que pode durar para sempre ou acabar antes do fim desta frase –, me sinto tranquilo, deixa o meu destino se cumprir.

Sou um bosta n’água, ao sabor das marés.” (pg 31)

Ao ver a primeira temporada de House of Cards na Netflix, no qual Frank e Claire Underwood transam com o segurança Edward Meechum, desperta nele uma libido adormecida.

Se um pequeno sonho é perigoso, a cura para ele não é sonhar menos, mas sonhar mais, sonhar o tempo todo. E foi aí que descobre a internet e logo em seguida os sites pornôs e os aplicativos de encontros sexuais pelo smartphone.

Começa a levar uma vida dupla, mantendo o seu casamento, mas tendo seus casos com estranhos, hospedando-se em hotéis. Até chegar à sua grande paixão: Emílio, um funcionário diplomático. O caso transcorre de uma forma bem intensa. Só que Emílio é transferido para uma embaixada em Jacarta. Os efeitos colaterais dessa separação deixam cicatrizes.

Ao escrever esta resenha, me veio um pensamento inusitado. Me veio o famoso versículo de João que diz (olhem a ironia): “A verdade vos libertará”. Para uma pessoa que guardou o segredo, o fardo de Constantino é revelado por ele mesmo, antes de sua morte.

Fico por aqui. E recomendo a leitura de “Cloro”, do escritor Alexandre Vidal Porto, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 07 julho 2019 | Tags: Literatura nacional


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Cloro
autor: Alexandre Vidal Porto
editora: Companhia das letras

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