Barcelona não é Espanha
Nada melhor do que ler um livro bom e sentir saudade da história e dos personagens quando ela chega ao fim.
O livro “Barcelona não é Espanha”, de Márcio Menezes, é uma dessas raridades. E digo mais: se eu ainda trabalhasse em livraria, iria transformar “Barcelona não é Espanha” num hit, como já fiz com alguns títulos nas livrarias nas quais fui livreiro − tanto na Argumento quanto na Travessa, ambas no Rio de Janeiro.
Trago na alma a façanha de ter transformado obras, digamos, indigestas, com mais 500 páginas, em hit entre meus clientes, leitores e amigos. E não foi um só não, foram vários. E a melhor parte: todos sempre me agradeceram pelas minhas indicações.
O livro é sensacional. A narrativa é muito elegante, o humor é refinado e a história é cheia de reviravoltas, que fazem você não largar o livro de jeito nenhum.
O livro tem 219 páginas que foram devoradas por mim em um dia. E por isso ele está aqui – porque vale muito a pena!
Vamos a ele?
Tudo começa com Cito, nosso protagonista e narrador. Um ex-estudante de teatro, que trabalhava na administração da Lagoa Rodrigo de Freitas, e Antônia (sua namorada), uma produtora de cinema com salário bem acima do de seu namorado. Por ter sofrido um aborto espontâneo, Antônia resolveu que era hora de viver fora do Brasil e, apesar da experiência dela em outros países, Barcelona foi o consenso entre os dois. Antônia tinha um objetivo: fazer pós-graduação em uma universidade. Cito, por outro lado, nunca estivera fora do Brasil.
Na chegada a Barcelona, enquanto Cito levava uma vida contida do ponto de vista financeiro, Antônia vivia como se estivesse no Rio de Janeiro, ou seja, vivendo uma vida “heterodoxa”, saía com as amigas e gastava o que não tinha.
A casa dos dois se transformou em um laboratório de curtas-metragens, com cursos ministrados por Antônia, e até mesmo em cenário utilizado pelos alunos em suas produções. Além das festas, claro. Detalhe: nessa casa moravam Jussara e Nicole, duas bolsistas da Universidade de Barcelona.
Dito isso, certa vez apareceu Núria. Uma típica catalã do interior recém-chegada a Barcelona. Uma loira linda. Os olhares trocados com Cito transcenderam os protocolares e começavam adquirir outros tons, como num dia, quando ela colocou um microfone no interior da camisa dele, em uma gravação. Clima. E ao tirar o suor de sua testa, com lencinhos. Mais tarde, ela lhe revelaria o desejo de ter tirado a sua roupa naquele instante.
As rusgas entre o casal Antônia e Cito começaram com pequenas implicâncias, do tipo: “Você não vai procurar um trabalho?” Daí as discussões pulavam para queixas mais agudas, e o sentimento, que até então era inquebrantável, começou a ruir.
O tempo em Barcelona os havia transformado em imigrantes ilegais e nenhum trabalho muito decente estaria ao alcance deles. Antônia já estava desanimada e muito reticente em assumir uma vaga de garçonete numa trattoria italiana em Stiges, uma cidade ao lado de Barcelona. Certa vez, tentando sair do estresse de casa, Cito resolveu explorar sozinho a boemia barcelonense quando conheceu Jordi, arquiteto desempregado, 48 anos e dois filhos que moravam com a ex-mulher em Munique. Estavam no bairro árabe de Raval, no qual, segundo Jordi, habitavam setenta e cinco etnias. Ele acaba se tornando um grande amigo na cidade.
Bem, nosso protagonista sucumbe e vai parar na cama de Núria, sem saber como foi parar lá.
E com uma playlist poderosa para cada situação ou para cada pensamento, aparece Andrés Calamaro, um músico argentino, oferecido por Núria a Cito, que diz:
“Todas as grandes paixões da minha vida foram por mulheres que me mostravam compositores que desconhecia, canções que não havia escutado, discos que escaparam à minha atenção” (pg 36)
Núria captou a sensibilidade musical de Cito. Como ele mesmo disse:
“Dessa vez os deuses do absinto foram substituídos pelos deuses da Motown”, o que influenciou em sua performance sexual. Núria e Cito pareciam ter nascido um para o outro. Só que havia um probleminha. Não, dois probleminhas. O primeiro: Núria era casada com um viciado em heroína, trabalhava, mas era uma espécie de Zumbi afetivo. O segundo problema era Antônia, que cobrava trabalho de Cito.
Mas o destino às vezes nos apronta algumas surpresas. Recebeu um telefonema de Jordi para trabalhar no ofício de iluminador de um espetáculo pornô. Ele prontamente aceitou. Quando ele chega ao local de trabalho, a playlist do narrador continua a mil. The Commodores, KC and Sunshine Band, Donna Summer e Neil Diamond, isso só para começar. Está bom para você, leitor, ou quer mais?
Bem, nessa altura do campeonato, Antônia já estava querendo voltar para o Brasil, mas antes de voltar queria dar uma passadinha na Índia e ao Nepal. Cito não estava tão certo disso.
Mas os perrengues continuavam. Quando o marido de Núria se suicida e ele, Cito, vira uma missão de extermínio para o irmão do morto, um policial psicopata, que jurou vingar o irmão, o que esperar?
Não sei dizer se Cito, nosso protagonista, é um homem de sorte ou se a sorte gosta de testá-lo, mas... conhecer um falsificador de quadros e se envolver com o crime organizado e especializado em roubos de obras de arte enquanto se está em plena fuga de um psicopata pode mudar as coisas. Ou não?
Acha que eu contei tudo? Nem de perto. Tem muito mais. A diversão continua e outros personagens vão entrando nessa trama sofisticada, ágil, divertida, repleta de personagens sedutores e situações inusitadas que nos prendem a cada virada de página.
Sim, ainda teremos muito mais.
Se gostou, largue esta tela e compre esse livro.
Eu fico por aqui. A única coisa que gostaria de acrescentar é que o escritor Márcio Menezes nos mostra uma Barcelona que poucos conhecem. Ele conhece a cidade na palma de sua mão. E sua narrativa, citando Zola: “Ele vê as ruas viverem”. Esse livro daria um filme maravilhoso. Quem sabe? “Barcelona não é Espanha”, de Márcio Menezes, é um antídoto ao baixo-astral reinante. Um livro que merece um lugar na sua estante.