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Graffiti

Sempre gostei de fotografia. Hoje, diferentemente de tudo que tenho feito, vamos falar de um livro de fotografia, de imagens. E o nome desse fotógrafo é Brassaï. Gyula Halász, seu nome verdadeiro, nasceu em 1899, em Brassó, Transilvânia, Hungria –, atualmente Brasvo, Romênia. O pseudônimo Brassaï foi tirado do local de nascimento do fotógrafo (Brasvo, Brassó). Certa vez, conversando com uma brasileira que morava na Hungria, em Budapeste, ela me disse que Brassaï se pronuncia “Brachói”, assim como Sandor Marai, escritor húngaro, se pronuncia “Shandor Marói”. Como tenho um ouvido de músico, adorei o som desse nome.

Brassaï nunca teve interesse pela fotografia. Estudou na Academia de Arte em Budapeste e, entre 1920-1922, estudou em Berlim, na Akademische Hochschule – Charottenburg. Era pintor, chegou a trabalhar também como escultor e depois como jornalista em Paris (1924-1930). Foi em Paris que teve contato com Picasso, Dalí e Braque, entre outros. Como já disse, ele nunca teve interesse pela fotografia, achava uma arte menor. Em Paris, no entanto, se apaixonou pela cidade e pela câmera.

Por mais de duas décadas, de 1933 a 1956, Brassaï documentou além das noites de Paris nos 1930. Fotografou esculturas e gravuras grafitadas nas paredes da cidade, na mesma época. Algumas delas mostram rostos, animais e corações, entre outros. Algumas fotografias apresentam marcações menos reconhecíveis, muitas vezes apenas buracos ou padrões abstratos em paredes.

Hoje falaremos sobre um de seus livros de fotografia que eu particularmente adoro, chamado “Graffiti”. Ele começou a fotografar grafites no início dos anos 1930, mas o livro foi publicado em 1961. Brassaï considerava o grafite uma “arte primitiva” da cidade contemporânea. O “coração esculpido”, por exemplo, que está entre as fotos que escolhi, registra um indelével afeto amoroso.

Vamos dar um exemplo de uma arte rupestre.

“O bisão pintado do homem das cavernas, cravejado de flechas, representam os poderes mágicos.”

 

Existe algo em comum entre essas duas representações. Enquanto a primeira imagem foi fotografada do interior de uma caverna, a segunda foi fotografada de um muro da cidade de Paris. Vejam a semelhança no tocante ao primitivismo entre essas duas imagens.

 

O enquadramento intencional da imagem de Brassaï transformou as linhas dispostas aleatoriamente em uma parede de símbolos para narrativas animistas urbanas. Ele mudou o foco sobre seus assuntos humanos e deslocou para marcas de parede inanimadas, muitas vezes abstratas, para capturar a essência da cidade de uma maneira simbólica e mística.

Um rosto se torna uma multidão de rostos e o nascimento de um homem leva ao nascimento de uma "nação". Ele revela um ciclo de vida alternativo secreto de Paris, completo com preocupações humanas em relação à mortalidade.

Brassaï estava interessado em como as imagens se alteravam, seja através de acréscimos de grafiteiros posteriores, seja por causa dos caprichos do tempo. O acaso trabalhou para revelar magicamente o símbolo da França Livre, a cruz dupla da Lorena, precisamente no momento da libertação do país no final da Segunda Guerra Mundial.

Adotada como um símbolo contra a suástica nazista, a cruz fora pintada, presumivelmente, durante a ocupação alemã da França. O significado simbólico era perfeitamente evidente para Brassaï, que legendou assim a fotografia: “A luta política na parede”.

Brassaï concentra sua atenção nos desenhos e raspas inscritos nas paredes dos bairros operários de Paris e acumula, ao longo de vinte e cinco anos, centenas de imagens, como um catálogo de vestígios deixados pelos habitantes da cidade. Esse trabalho documental e sistemático, sob o impulso de certos artistas como Picasso, Dubuffett, Dalí, encorajou Brassaï a enriquecer e modificar a percepção dessas imagens singulares, dando a elas uma visão surreal do subconsciente de Paris.  

“Graffiti” tem inclinações surrealistas, assim como grande parte do trabalho de Brassaï. Em suas sugestões de um submundo misterioso, suas fotografias noturnas rapidamente chamaram a atenção de André Breton, o fundador do Surrealismo. Os surrealistas estavam preocupados com a linha entre o consciente e o subconsciente, e o trabalho de Brassaï apresentou imagens aptas para acompanhar suas teorias. Sua capacidade de apresentar algo indiscutivelmente real, como o grafite parisiense, e transformá-lo em um mundo de homens de pedra, demônios e morte atraiu os surrealistas.

Brassaï começou a desenvolver sua série de grafites, em que seu interesse pelas linguagens murais transparece, expresso na forma de esculturas anônimas de corais cujos processos criativos são semelhantes aos “requintados cadáveres” e às escritas automáticas promulgadas por André Breton e Pierre Reverdy. A influência dos grafites de Brassaï  chega até o informalismo dos anos 1940 e 1950, pois suas afirmações são consideradas questionamentos à  autoridade da arte por muitos artistas. 

Podemos ver rostos, animais e corações. Outras fotografias apresentam imagens menos reconhecíveis, muitas vezes apenas buracos abstratos. Nesse caso, temos que dar todo o mérito ao enquadramento do fotógrafo, que transforma as marcações aleatórias em cenas que se encaixam em uma história, em um sentido. A linguagem do muro, que Brassaï fotografa, é constituída por temas como: animais, amor e morte, buscando o primitivismo. E, se fizermos uma comparação entre a arte primitiva das cavernas, encontraremos algumas semelhanças com a linguagem do muro. As pinturas dos primeiros homens emergem da pedra como se despertassem de um sono eterno. Através dessa abordagem quase etnológica e sociológica, Brassaï demonstra o desejo do homem de deixar sua marca em seu ambiente urbano.

Esse fato social da linguagem da parede nos lembra de um diálogo imutável entre os afrescos de cavernas pré-históricas e as paredes marcadas de nossa sociedade contemporânea. Nessas fotografias, repousam diferentes pontos de vistas que “Graffiti” desencadeará nos artistas e escritores contemporâneos de Brassaï  , que até hoje se interessam pelos seus achados urbanos.

O interesse de Brassaï por grafites superou (e sobreviveu) a trivial psicologia surrealista. Além de documentar, ele também se dedicou a classificar, tornando-se uma espécie de bibliotecário do grafite. Brassaï percebeu as marcas políticas inclusas nessa iconografia, o grafite como uma maneira de “ler” uma cidade, em uma língua nativa da rua, não filtrada pelas elites. Suas fotografias destacam-se como marcadores visuais.

Como alguém que sobreviveu aos horrores da guerra e da ocupação nazista, sentiu profundamente a fragilidade da vida humana. E isso exige solidão. Fotografa pichações parisienses e os sinais misteriosos deixados por pessoas através dos traços de suas mãos que, com esses  registros, superam o esquecimento. Brassaï lê a vida de outras pessoas nas inscrições deixadas nas paredes, fixa seu olhar atento nas confissões de amor cortadas nas árvores do parque, recria novamente a história do mundo, nascimento, vida, amor, morte, animais, magia. Brassaï persevera em fotografar pichações como se necessitasse cumprir um dever para a humanidade.

O interesse de longa data de Brassaï em grafites parisienses pode parecer um complemento estranho para a vida impetuosa em suas vinhetas noturnas (começando nos anos 1930 e continuando até meados dos anos 1950). Essas imagens nas paredes captam motivos humanos essenciais. Essas obras de arte anônimas trafegam em um desfile de impulsos, lembranças e comunicações – amor, sexo, morte, máscaras e rostos, animais e outros talismãs mágicos –, e o fazem com uma autenticidade sem adornos que crepita com a vida.

As fotografias de grafites mostram pequenos motivos e ícones que cobrem literalmente a superfície das paredes, imitando as cores da noite. Corações (alguns inteiros outros quebrados), crânios, figuras de ampulheta e flechas foram introduzidos, fazendo uma mistura simbólica. As ideias de Brassaï vão se transformando a cada nova iteração. 

Essas esculturas nas paredes teriam passado despercebidas por milhões de parisienses diariamente, sendo passadas como detalhes periféricos no dia a dia. Foi preciso um fotógrafo, apaixonado por uma nova profissão e explorando uma nova cidade, para dar vida às paredes e para uma atenção mais ampla.

Desenho rupestre

 

Nesta era das mídias sociais, a experiência compartilhada está cada vez mais desconectada da proximidade física. Não há espaços comuns para facilitar a compreensão mútua. O grafite explode quase que exclusivamente através da bolha do filtro para nos mostrar o que as outras pessoas pensam. Ver a escrita na parede com o foco de Brassaï tornou-se um dever cívico.

Henry Miller, que dizia que Brassai era "o olho de Paris", escreveu: “Brassai era uma coruja, um profissional que levantava ao pôr do sol e só retornava para casa antes do sol nascer”.

“Graffiti”, de Brassaï, é um livro que tem uma magia assustadora, que nos remetem a figuras ancestrais, antigos motivos da mitologia, lendas e arte oriundas de nossa memória humana, em que certos arquétipos sobrevivem como fósseis, ao mesmo tempo primitiva, ao mesmo tempo imortais. “Graffiti”, de Brassai, vale a pena ter em sua estante.


Data: 15 julho 2019 | Tags: Fotografia


< Cloro Paris la Nuit >
Graffiti
autor: Brassai
editora: Flamarion

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