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Linguagem, Mito e Religião

Ernest Cassirer tem um lugar de honra na filosofia do século XX. Seu trabalho aborda com igual atenção as questões epistemológicas da filosofia da matemática e das ciências naturais e a estética, a filosofia da história e outras questões das ciências culturais amplamente concebidas.  A obra desse grande intelectual de que falaremos hoje é:  “Linguagem e Mito e Religião”.

Segundo Ernest Cassirer, o mito, a religião e a linguagem são formas simbólicas, que nos realizam como seres humanos. E somos nós que criamos esses mundos, criando significados baseados em nossas experiências dentro de uma estrutura cultural, e é por isso que Cassirer diz que devemos definir o homem como animal simbólico e não como ser meramente racional.

Para Cassirer, não estando mais em um universo físico, o homem vive em um universo simbólico. Na visão de Cassirer, as leis científicas, a religião e a linguagem são todos símbolos criados pela mente na tentativa de produzir um mundo de compreensão. Seu maior interesse envolvia a busca pela forma de conhecimento – como ele pode ser criado a partir do caos da percepção que os humanos enfrentam. A linguagem, o mito e a arte e a religião são partes desse universo e correspondem aos variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana.

A razão é um termo inadequado para compreender as formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Todas essas formas são simbólicas. Logo, ao invés de definirmos o ser humano como um animal racional, deveríamos defini-lo como animal simbólico. A racionalidade não é suficiente para caracterização.

Cassirer defende a tese de que toda relação do homem com o mundo se dá no âmbito das diversas formas simbólicas. E o que Cassirer entende por forma simbólica?

Em linhas gerais, podemos dizer que o percurso desenvolvido por Cassirer parte da revolução coperniciana de Kant, ou seja, a tese epistemológica que afirma que o conhecimento não é simplesmente uma representação passiva da realidade objetiva, mas construído ativamente na mente humana. Não são os objetos que se conformam aos objetos, mas são estes que se conformam às faculdades do sujeito.

Cassirer não aceita a limitação da objetividade à esfera da ciência. Argumenta ele que a ciência, enquanto uma produção espontânea do sujeito, é apenas uma forma de objetivação em meio a outras. Assim, a ciência não é concebida como uma forma de conhecimento privilegiado que estaria acima dos outros, mas sim no mesmo patamar de outras formas de objetivação produzidas pelo sujeito. Ela perde o seu caráter universal e necessário e se coloca no mesmo patamar de outros conhecimentos simbólicos.

E o que Cassirer entende como forma simbólica?

Por forma simbólica, Cassirer entende que toda a energia do espírito está vinculada a um signo sensível (a um conteúdo espiritual concreto) atribuído interiormente.  Neste sentido, a linguagem, o mundo mítico religioso e a arte são formas simbólicas particulares, onde o indivíduo recebe as sensações exteriores e as enlaça com signos sensíveis significativos.

A produção simbólica, não somente a linguagem, é espontânea. Todavia, é também condição imprescindível para a captação sensível. Tais signos ou imagens não devem ser vistos como um obstáculo, mas sim como condição que possibilita a relação do homem com o mundo do espiritual sensível. Através dos signos e imagens, pode-se fixar determinados pontos de fluxo temporal de experiências.

O ser humano não recebe de forma passiva as impressões sensíveis. Ao contrário, os conteúdos sensíveis não são apenas recebidos pela consciência, mas antes são transformados através da consciência em conteúdos simbólicos. Através da capacidade de produzir imagens e signos, o homem consegue determinar e fixar o particular como meio à sucessão de fenômenos que se seguem no tempo. Os conteúdos sensíveis não são apenas recebidos pela consciência, mas antes são transformados em conteúdos simbólicos.

Como formas simbólicas para Cassirer, estão o mito, a linguagem, a religião, a arte e a ciência.

 Ernst Cassirer classifica as formas simbólicas da seguinte forma:

  • Expressividade, que é típica do mito. Nessa relação há uma identidade entre o signo e o significado. O signo se confunde com o significado, ambos estão intrinsecamente unidos. O símbolo se confunde com a coisa, a coisa se confunde com o símbolo; o nome, a imagem, toma lugar e os atributos da própria coisa que designa. Entende-se essa experiência como uma relação mágica com o mundo.
  • A relação de representação é característica da linguagem. Há uma separação entre o signo e o significado. O nome está no lugar da coisa de forma convencional e serve para representá-lo.
  • A relação do significado tem a ver com a ciência. Há uma independência entre o signo e o significado. Existe uma autonomia do signo em relação ao mundo sensível; os signos se tornam uma espécie de ficções.

Resumindo: em linhas gerais, a expressividade é típica do mito, a representação é típica da linguagem e a do significado é típica da ciência.

O processo desenvolvido por Ernst Cassirer parte da revolução Coperniciana  de Kant, parte da afirmação de que não são os objetos que se conformam aos objetos, mas são os objetos que se conformam às faculdades do sujeito. Cassirer se recusa a aceitar a objetividade à esfera da ciência. Para ele, a ciência não é apenas uma forma de conhecimento privilegiado acima do outras. Não há superioridade em relação às outras. Todas estão no mesmo patamar de outras formas de objetificação produzidas pelo sujeito. A ciência é entendida como forma simbólica.

 E quais as características de uma forma simbólica?

  • São construções simbólicas realizados pelo sujeito, ou seja, da relação do sujeito com o mundo. E essa relação se dá no âmbito simbólico. Uma forma simbólica é uma construção simbólica espontânea efetuado pelo sujeito.
  • Em comum, todos são produção simbólica, possuem uma origem simbólica comum e um modo de significação embasada nos mesmos pressupostos.
  • A diferença reside no fato de cada uma construir sua própria realidade de uma forma específica, ou seja, não existe uma realidade que seja interpretada de diferentes formas, mas sim uma realidade que é construída de formas diferentes, com diferentes perspectivas e valores.
  • Cada forma simbólica constrói a sua própria forma de realidade de um modo particular, realidades que não se confundem uma com a outra.
  • São criadores de totalidades ordenada, ou seja, cada uma cria seu próprio cosmos explicativo para as suas interrogações.
  • Cada uma tem como pressuposto ter uma validade universal, isto é, essas totalidades ordenadas não se concebem como uma forma de interpretação em meio a outras, mas sim como a única válida.
  • Como cada forma simbólica concebe a si mesma como apenas uma forma particular em meio a outras, elas almejam a verdade universal. Isso leva ao conflito entre as várias formas simbólicas. Cada forma simbólica se acha como a única e verdadeira, e para isso deve combater as demais.

Sendo assim, a convivência entre elas não é de natureza harmônica. Cada uma deve combater as demais. É aí que entra Cassirer dizendo que nenhuma delas podem julgar as outras, já que como construção simbólica têm o mesmo grau de validade. No entanto, a reflexão filosófica poderia escapar de uma posição restrita semelhante se conseguissem encontrar uma visão de conjunto que possibilitasse uma visão de conjunto que abarcasse todas as formas simbólicas nas suas relações imanentes entre si.

Um outro ponto que Ernst Cassirer irá abordar é o pensamento mítico. Quais as suas características?

As características do pensamento mítico resultam de experiências coletivas dos homens que não se reconhecem como produtores desses mitos, já que não têm consciência da projeção do seu eu subjetivo para os elementos do mundo.

O pensamento mítico é uma construção espontânea de sua realidade, mas não toma consciência de sua própria atividade espiritual criativa. A produção mítica é uma espécie de ficção do inconsciente, pois se trata de uma produção espontânea, mas sem consciência de sua autoria. Em outras palavras, são experiências coletivas.

Os mitos construídos por indivíduos, como os mitos platônicos, não podem ser considerados mitos genuínos. Por quê? Em Platão, os mitos foram elaborados de forma livre, com finalidades pedagógicas definidas.

 Ao contrário do mito verdadeiro, não reconhece a si como imagem ou metáfora; a sua imagem é a própria realidade. As emoções expressas são transformadas em imagens e essas imagens são interpretação do mundo exterior e interior. O homem começa a aprender uma estranha arte: a arte de exprimir, e isso significa organizar os seus instintos mais profundamente enraizados, as suas esperanças e os seus temores.

Nesse sentido, o pensamento mítico não deve ser entendido como uma mera ilusão ou uma patologia, mas sim como forma de objetivação da realidade mais primária e de caráter específico.

Quais são as características, segundo Cassirer. do pensamento mítico?

Em primeiro lugar, existe uma relação entre signo e o significado. E como isso funciona?

O mito é uma construção espontânea. O mito não toma consciência de sua própria atividade espiritual criativa. A produção mítica é uma ficção do inconsciente. Ninguém tem consciência de sua autoria. No mito, a relação entre signo e significado é de identidade na linguagem e de representação e na ciência é de independência.

O pensamento mítico não diferencia signo do significado, nem imagem da coisa. Para o pensamento mítico, a palavra não é um mero signo convencional abstrato, mas está indissoluvelmente ligada a ela. Existe uma identidade entre a palavra que designa e a própria coisa designada; a palavra é a própria coisa.

Mesmo no campo subjetivo, o homem mítico identifica seu nome com o próprio ser. Proferir o nome de alguém depois de morto significa invocá-lo, torná-lo presente. A mesma analogia vale para a imagem. A imagem não representa a coisa; é a coisa. Não há diferença entre o sono e a vigília, vida e morte. A morte é vista apenas como transformação assim como o nascimento como um retorno.

Tal fato explica por que os cultos aos mortos são realizados com oferendas e comidas, vestuários, utensílios, porque se crê que o morto continua vivendo e necessitando dos mesmos meios físicos para a sua conservação.

Em segundo lugar, assim como o pensamento mítico não separa signo de significado, não faz em relação à semelhança externa e superficial e à essência da coisa.  Como isso funciona?

O pensamento mítico coloca um sinal de igual entre semelhança externa e essência. Todas as coisas possuem o mesmo nome, tendem a ser apresentadas como semelhantes. Por exemplo, se o pensamento mítico – mágico –  atribui uma serpente a uma imagem de um relâmpago, tal fato converte o relâmpago também numa serpente. E se o sol é denominado como o celestial voador, ele também pode ser designado como uma flecha e um pássaro, já que o enfoque aqui está na característica de voar. Isso explica por que os egípcios representam o sol como uma cabeça de falcão. Cassirer exemplifica a fumaça do cachimbo, que não é um símbolo de nuvem, mas a própria nuvem e como tal tem o poder de fazer chover. O pensamento mítico pode denominar coisas diferentes com um mesmo nome, tendo por base uma semelhança externa. Todas as coisas que têm o mesmo nome tendem a ser apresentadas como semelhante. As designações para o pensamento mítico não se encontram numa esfera abstrata, mas, pelo contrário, numa presença real.

Em terceiro lugar, um outro elemento característico do pensamento mítico é a não separação entre os seus elementos, ou seja, a totalidade é indivisível. O todo é um. Essa visão é válida tanto na percepção objetiva quanto para os seus sentimentos subjetivos. O todo se explica pelas partes e a parte pelo todo. E esse todo é dotado com os mesmos sentimentos subjetivos dos sujeitos míticos, o que lhe confere um caráter dramático, já que toda a natureza e seus elementos fazem parte de uma constante luta entre forças do bem e do mal.

Essa forma de pensar é que dá sustentação às práticas mágicas, pois acredita que há uma relação causal entre todos os fenômenos independentes de sua espacialidade ou mesmo de sua temporalidade.

Não há distinção espacial ou temporal. Quem possui as partes de um corpo de outro homem, mesmo que estas estejam separadas, possui o poder mágico sobre ele. Mesmos os atributos “morais” ou “espirituais” são entendidos nessa perspectiva das partes para o todo.

Em quarto lugar, um outro elemento do pensamento mítico diz respeito ao mito e ao rito. Segundo Ernst Cassirer, o mito do Estado, por exemplo, apesar das diferenças entre diversas culturas, deve-se procurar o elemento comum que existe entre todos os povos e suas culturas, ou seja, procurar a unidade na diversidade.  

Esse elemento comum em meio à diversidade, no caso do pensamento mítico, pode ser traduzido através de uma unidade de sentimento que se fundamenta na conscientização da universalidade e fundamental identidade da vida.

Como já foi dito,  a essência do mito, segundo Cassirer, não é regida pelo pensamento racional, mas sim pelo  sentimento. A mente primitiva vê o mundo de uma maneira bem específica; ao contrário do pensamento científico, que divide e classifica as diversas formas de vida e os diversos elementos da natureza.

Já o ser primitivo não se sente um ser separado da natureza, mas se sente unido e participante de um mesmo todo, como se fosse um único organismo cuja expressão desse desejo se manifesta através dos ritos.

O rito é a necessidade de renovação. Para cada estação do ano há um ritual específico que garante a continuidade do ciclo. Através da linguagem, o ser humano objetiva suas percepções sensíveis. Quando os mitos se transformam em ritos, um novo elemento aparece. Esse novo elemento é a busca de significado daquilo que o homem faz nos ritos. O homem busca saber os “porquês”, já não se satisfaz somente em agir, quer uma resposta; mesmo que essa resposta possa parecer fantástica ou absurda

Como é o caso da tribo Dayak, que Cassirer cita em seu trabalho. Quando eles saem para caçar, aqueles que ficam na aldeia não podem molhar as mãos com água e azeite, pois, caso isso ocorra, aqueles que foram caçar ficarão também com as mãos e os dedos escorregadios, e isso causará um problema, a caça vai escapar. Mas qual a razão disso? É que as associações entre eles obedecem a outros tipos de conexão. São relações emocionalmente profundas que os conectam.

Em quinto lugar, um outro elemento do pensamento mítico diz respeito à religião. No pensamento mítico, o homem está em comunhão com a natureza como se fosse um único organismo, ou seja, o homem intervém na natureza através de ritos e de práticas mágicas. No pensamento religioso, a natureza passa a ser abordada do ponto de vista racional e não exclusivamente emocional. Segundo Cassirer, o mito e a religião são formas simbólicas distintas, muito embora compartilhem pontos e problemas em comum da vida humana. No entanto, a religião em sua história permanece ligada a elementos míticos. O mito, mesmo em suas formas mais rudimentares, traz em si alguns motivos que de certo modo antecipam os ideais religiosos superiores que chegam depois. No começo, religião e mito têm a mesma raiz. No entanto, o que leva à separação do mito e da religião se dá em outro momento. E isso não está ligado a nenhuma revolução dos sentimentos.

As formas simbólicas possuem no mito seu núcleo original comum. Contrapondo à visão de Auguste Comte, que defende um progresso evolutivo em que a etapa teológica passará para o metafísico e deste ao positivo.

Para Cassirer, não existe um processo evolutivo unidirecional. As formas simbólicas, as antinomias da cultura existem dentro de cada forma simbólica. Traduzindo, podemos dizer que existe em cada forma simbólica uma tensão entre estabilidade e evolução. O homem encontra-se dentro dessas tendências entre as forças de preservação e as forças de mudança. Conservação e mudança. Quando as forças de mudança se tornam preponderantes, dialeticamente se desprendem de seu núcleo original, configurando sua própria autonomia. Essa tensão inviabiliza a convivência com a força da conservação.

A transição do mito para a religião é um processo gradativo e dialético. Forças de conservação e de transição interior do pensamento mítico chocaram-se e no final desse processo se pode observar elementos comuns entre o mito e a religião. No entanto, na sua forma houve uma transformação.  Quais foram as transformações?

A relação signo e significado sofre uma mudança. No pensamento mítico, não havia diferenças entre signo e significado, nem imagem da coisa. No pensamento religioso há uma mudança radical em relação a esse aspecto. A religião, ao se utilizar da imagem e signos sensíveis em relação ao divino, os utilizam como representação. A imagem remete a deus ou à divindade.

No entanto, no pensamento religioso surge um novo componente. Esse componente é o componente racional e não exclusivamente o emocional. A religião utiliza o logos, explica a sua crença com base em argumentos racionais. O inexplicável passa a ser explicável. O logos já se faz presente também na relação entre signo e significado. A relação entre o ser humano e o divino vai sendo alterado por um outro tipo de relação. Na religião, o que passa a ser importante não é mais o conteúdo da oferenda, mas sim a forma de dar. Aqui a oferenda é interiorizada pelo homem.

O logos se faz presente na relação entre o signo e o significado entre o representante e o representado. A relação entre o homem e o ser divino vai sendo substituído por um outro tipo de relação. Na religião o importante não é mais o conteúdo da oferenda, mas sim a forma de dar, ou seja, a oferenda é oferecida e interiorizada pelo homem.

 Um outro elemento importante é a substituição do tabu pela ética. O tabu é marcado como algo proibido e sobrenatural que não podemos ter contato sob o risco de castigo. No tabu não existe uma responsabilidade individuaL Se alguém desreita o tabu, o castigo não recai sobre o indivíduo, mas sobre a família e a tribo. O fio condutor do tabu é a proibição e o medo derivado deste. A obediência tem que ser passiva. As religiões transformam essa submissão passiva em um sentimento mais positivo.

E essa positividade encontra-se na concepção de que o ser humano é dotado de livre arbítrio, ou seja, é capaz de refletir sobre o bem e sobre o mal. A relação com o divino deixa de ser regulada pelo medo ou pela tentativa de manipulação através da magia para se tornar uma relação ética. E é nesta relação que o logos é introduzido. O logos é utilizado para entender o divino e praticar a virtude.

Para Ernst Cassirer, a Palavra é um símbolo central na concepção de um princípio divino criativo e ordenador. Ele destaca a Palavra como um instrumento usado pelo deus criador, como o fundamento primordial a partir do qual toda a ordem e os seres surgem. Através da Palavra, o deus criador traz a existência para o mundo e estabelece a estrutura significativa.

 A ideia da palavra como um aspecto fundamental da criação está presente em várias tradições religiosas ao redor do mundo. Tomemos como exemplo a tradição judaico-cristã. O relato do Gênesis descreve Deus criando o  mundo por meio da sua Palavra: “E disse Deus: Haja luz, e houve a luz”. Da mesma forma, encontramos a concepção de que a Palavra divina é o meio pelo qual a ordem cósmica é estabelecida.

A relação entre a Palavra e o deus criador constata a capacidade dos seres humanos de atribuir significado e criar sistemas simbólicos para compreender o mundo e sua origem. Cassirer vê a Palavra como um elemento essencial na formação dos mitos e nas narrativas religiosas, permitindo aos seres humanos expressar sua compreensão simbólica da criação e sua relação com o divino.

“ Sem dúvida que justamente esta hipóstase mítica da Palavra tem um significado decisivo no desenvolvimento da mentalidade humana, pois é a primeira forma em que ( no fim das contas) pode ser compreendido o poder espiritual inerente à palavra, a palavra deve ser concebida, no sentido mítico, como ser e força substancial, antes de poder ser considerada como um instrumento ideal, como uma opção da mente, como uma função fundamental da construção e do desenvolvimento da realidade espiritual”. (pág. 76)

Religião e mito são formas simbólicas distintas, embora no curso de sua história permaneça indissoluvelmente ligada a elementos míticos.

A linguagem abre o caminho para o espiritual.

“ O poder e a profundidade espiritual da linguagem manifestam-se precisamente no fato de ser a própria linguagem quem abre caminho a fim de executar este último passo, em que se transcende. Esta façanha espiritual, talvez  a mais peculiar e difícil da linguagem, é representada por dois conceitos fundamentais: o conceito do ser e o do eu. Ambos parecem pretender as etapas relativamente as posteriores, do desenvolvimento linguístico; ambos mostram, todavia, a sua conformação, claros vestígios da dificuldade que a expressão verbal encontrou pelo caminho, e que só pode superar pouco a pouco. Quanto ao conceito do ser, uma olhada no desenvolvimento e é fundamental significação etimológica, em quase todos os idiomas, desta cópula, mostra como o pensamento expresso verbalmente, tarda em distinguir a “ser” puro do “ser assim”, e só o faz paulatinamente. O “é” dessa cópula remonta quase infalivelmente a uma significação original sensível-concreta; em vez de implicar o simples “existir”, ou um estado geral do ser, já originalmente denota uma espécie ou forma particular de aparência ; sobretudo a de estar neste ou aquele lugar, num determinado ponto do espaço. “ ( pág. 90; pág91)

Quando Deus se revelou a Moisés, foi  por ele inquirido sobre o nome pelo qual deveria designá-lo ao povo israelita, caso quisessem saber quem era o Deus que tentava enviar uma mensagem. Deus deu a Moisés a seguinte resposta: “Eu sou aquele que sou”. Dize-lhes: “O ‘Eu sou’ enviou-me a vós”. Do ser pessoal eleva-se o divino à esfera do absoluto. E de todos os meios da linguagem, só restaram as expressões pessoais, os pronomes pessoais, para a designação. “Eu sou ele”; “Eu sou o primeiro e o último”, de acordo com os livros proféticos.

Fico por aqui e indico “Linguagem, Mito e Religião”, de Ernst Cassirer, como um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 03 janeiro 2024 | Tags: Filosofia


< Infocracia Mito e Significado >
Linguagem, Mito e Religião
autor: Ernest Cassirer
editora: Rés-Editora
tradutor: Rui Reininho

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