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Missa Negra - Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias

O livro do qual falaremos hoje se chama “Missa Negra”, do filósofo inglês John Gray. Esse autor tem uma enorme importância no pensamento contemporâneo. Suas observações percorrem labirintos em que poucos ousam entrar sem se atrapalhar. Quando percorrem, não conseguem a clareza e a facilidade para expor suas reflexões. Considero um livro fundamental para ser lido nos dias de hoje. Não importa o seu credo político. Uma coisa é certa: você vai se sentir incomodado. Mas, se você for um cara como eu, que adora ver suas convicções sendo testadas a todo instante, considero um livro ideal. Talvez eu esteja nesse quesito intelectual, ou seja, o poder de desagradar todos é o que me aproxima desse intelectual brilhante.

Os melhores livros que leio são aqueles que questionam as minhas certezas. Adoro vê-las em frangalhos. Talvez este seja mórbido prazer intelectual: submeter as minhas certezas ao crivo da crítica. O que eu não negocio são os valores. Esses são inegociáveis. Mas fica para outro dia essa discussão.

Vamos ao livro?

Segundo John Gray, a politica moderna é um capítulo da história da religião. Os grandes movimentos revolucionários que tanto influenciaram a História dos últimos três séculos foram episódios da história da fé, momentos do longo processo de dissolução do cristianismo e a ascensão das modernas religiões políticas.

Entender a relação entre o pensamento secular e o religioso, e entre a morte das utopias seculares e o ressurgimento da fé religiosa, é uma tarefa importantíssima que estamos vendo e vivendo nos dias de hoje.

Para chegar a essas conclusões, John Gray nos leva aos primórdios da Idade Média, quando a Europa foi sacudida por movimentos de massas inspiradas na crença de que a História estava chegando ao fim e um novo mundo surgiria. Todos acreditavam que Deus poderia propiciar o surgimento do novo mundo. Se o fim do mundo estava próximo, segundo os cristãos medievais dessa época, um novo mundo estava próximo. E esse novo mundo coincidiu com o declínio do cristianismo. À medida que o cristianismo ia perdendo a sua força, o fim dos tempos tornou-se militante.

As ideologias iluministas dos últimos séculos tem sido, em grande medida, formas mal disfarçadas de teologia. A história do último século não fala do avanço secular, como prefere supor os “bem pensantes” da direita ou da esquerda. As tomadas de poder pelos bolcheviques e pelos nazistas foram tão movidas pela fé quanto a insurreição teocrática do aiatolá Komeini no Irã.

A primeira experiência política igualitária surgiu no século XVI através do movimento religioso dos anabatistas com as Reformas Protestantes inspiradas nas ideias de Martinho Lutero. O movimento tinha como um dos objetivos recuperar os ensinamentos primitivos do cristianismo. E o outro objetivo era livrar-se da opressão. Os anabatistas promoveram sua primeira sublevação armada e tomaram a prefeitura de Munster.

A cidade transformou-se num reduto anabatista, o que provocou a fuga de católicos e luteranos. Anunciou-se que o resto do planeta seria destruído antes da Páscoa, mas que Munster seria salva e se tornaria a nova Jerusalém. Na cidade de Munster foi instaurado um regime teocrático comunista. Friedrich Engels, em seu livro “A Guerra dos camponeses alemães”, faz um paralelo entre a Revolução Alemã de 1525 e a de 1848. Esse livro tornou-se um livro fulcral para a teoria política marxista posterior, pois faz uma importante relação entre religião e política.

Mas que fique claro que a teocracia comunista instaurada por John Leyden, líder dos anabatistas, em Munster, e que apresenta, nas palavras de Gray, todas as características de milenarismo, foi baseada na obra “Na senda do Milênio”, de Norman Cohn (que breve resenharemos aqui no site). Tomando como exemplo as mitologias apocalípticas, os modernos movimentos revolucionários constituem uma continuidade das religiões por outros meios, que Max Weber denominou de religião laicizada. A ideia de revolução como um elemento transformador da História se deve à religião.

A ideia de utopia nem sempre teve um elemento preponderantemente político. Platão situou sua república ideal numa “Era de ouro” anterior à História. E até cerca de duzentos anos atrás, se imaginava que as sociedades perfeitas estariam num passado para sempre perdido.

Thomas More, antes da utopia − palavra por ele inventada que significa ao mesmo tempo “um bom lugar” e “lugar nenhum” −, localizou sua comunidade imaginária numa terra distante.

John Hunphrey Noyes (1811-1856) – um ministro religioso que julgava ter alcançado uma condição de união sem pecado com Deus – criou, em 1848, a comunidade de Oneida, no estado de Nova York, para aplicar os princípios do perfeccionismo cristão, do comunismo bíblico, do casamento complexo, ou seja, todos os homens eram casados com todas as mulheres e homens e mulheres da comunidade deveriam ser sexualmente íntimos como uma variedade de parceiros. Para Gray, as utopias foram construídas nos séculos passados, e isso inclui o liberalismo, marxismo, comunismo, anticomunismo, iluminismo, contrailuminismo, fascismo, antifascismo ssim como toda a engenharia da economia ocidental em que vivemos foi produto de uma escatalogia, cuja finalidade principal vem a ser a salvação da humanidade, fracassaram. O desenvolvimento econômico nesse neoliberalismo gerará um futuro inevitável de prosperidade e democracia e, para isso, basta o encerramento das amarras estatais. Assim como os neoconservadores acreditam na ideia de que a força é capaz de exportar a democracia americana pelo mundo, assim trazendo estabilidade e paz para ambientes conturbados, como, por exemplo, o Oriente Médio.

Em todos os projetos utópicos, todos acreditam em um final feliz.  Não foi à toa a celeuma criada com a queda do comunismo na antiga URSS por Francis Fukuyama, que chegou a insinuar,  em seu livro “O fim da história, o último homem”, que, com o colapso do regime soviético, a procura por um modelo moderno de sociedade havia chegado ao fim. Modernos revolucionários, como os jacobinos franceses e os bolcheviques russos, rejeitavam a religião tradicional, mas suas convicções nada mais foram, segundo o autor, do que a reencarnação secular do cristianismo primitivo. As ideologias iluministas dos últimos séculos têm sido uma forma mal disfarçada de teologias. Se perguntarmos qual a diferença entre a tomada de poder pelos bolcheviques e os nazistas e a insurreição teocrática iraniana do Aiatolá Komeini no Irã, podemos responder sem sombra de dúvidas: a fé.

O comunismo e o nazismo afirmavam que se baseavam na ciência − no caso do comunismo, na falsa ciência do materialismo histórico; no do nazismo, no destemperado ”racismo científico”. O próprio racismo aparece como um produto do Iluminismo, que abria as possibilidades de destruição compulsória de outras culturas. O genocídio com as bênçãos da ciência e da civilização.

(Vimos recentemente Donald Trump referindo-se aos países africanos como “shithole countries”. Quem não se lembra disso?)

Com a queda do comunismo, aparece uma versão 2.0 de outra teleologia: o liberalismo. O neoliberalismo é o conjunto de ideias que afirmam estabelecer valores liberais em sua forma original. Teorias neoconservadoras que afirmavam que o mundo estava a convergir para um tipo único de governo e de sistema económico − a democracia universal, ou um mercado livre global.

Os neoliberais consideram que o avanço do livre mercado é um processo histórico irreversível, que não foi promovido por decisão humana nem poderia ser impedido. Thatcher foi a grande líder pós-decadência do antigo bloco soviético, e aqueles, que como eu vivenciaram a época, devem se lembrar da mensagem: “Para aqueles que quiserem a prosperidade, a receita é o livre mercado”.

A ideia de que a receita poderia ter os mesmos resultados em países diferentes era vigente na época e ainda é nos dias atuais. Os burocratas do FMI eram enviados a lugares em todo o mundo para anunciar a boa-nova de que a nova ideologia neoliberal seria imposta seguindo o mesmo modelo, ou seja, a necessidade de se ter sistemas financeiros sólidos.

Vários países da América do Sul, como a Argentina, os países asiáticos, como Indonésia e Tailândia, e vários países africanos tiveram que suportar recessões e cortes profundos para receber ajuda financeira do FMI e sua ortodoxia. A China obteve um êxito derivado do desprezo pelos conselhos ocidentais, e coincidentemente não foram os bancos chineses que quebraram na crise de 2008.

Hayek, Milton Friedman e uma constelação de luminares compartilhavam a crença que a principal condição da liberdade individual é o livre mercado. Os mercados livres é a única maneira eficiente de organizar a economia como também a mais pacífica. O livre mercado global, a guerra e a tirania desaparecerão, diriam os iluministas liberais. Em outras palavras: o mundo perfeito de fartura e liberdade.

Essas ideias têm origens na fé religiosa apesar de serem apresentadas como resultado de investigações científicas. A ideia de recuperar a pureza do liberalismo de Adam Smith, que foi, nas palavras de John Gray, o missionário do mercado e ao mesmo tempo o seu grande teórico.

Para Adam Smith, o mercado surge no próprio instinto do homem; é determinado pela emoção e pelas convenções, e não pela razão. Existe uma concepção da providência por trás da ideia de liberdade enunciada por Adam Smith. Um dos argumentos a favor do livre mercado era que as tarifas constituem um obstáculo aos desígnios divinos. Deus disseminava recursos pelo mundo para que os povos mais distantes pudessem estreitar relações por meio do comércio e, assim, identificar-se como irmãos. O próprio conceito de “a mão invisível do mercado”, de Adam Smith, embute uma teologia oculta.

John Gray menciona os neoconservadores e os vincula a uma poderosa corrente utópica do pensamento iluminista associada a uma convicção fundamentalista cristã de que o mal pode ser derrotado. Essa cruzada moral que vivemos, com esse novo governo eleito, é a prova de como a linguagem religiosa é usada de uma cruzada moral, em que a linguagem usual obedece aos cânones religiosos. E escatológicos da luta do bem contra o mal.

Ao contrário dos neoliberais, que geralmente adotam um perfil secular, os neoconservadores consideram a religião um elemento da coesão social – ponto de vista manifestado no apoio às escolas ligadas a instituições religiosas.

A aliança dos liberais seculares com a direita cristã tem apresentado muitas vantagens para os neoconservadores. Alavancaram sua influência dando a eles uma voz que não podia ser ignorada. Vejam o Brasil hoje: um ministro da economia liberal e um discurso com “Deus acima de tudo e de todos”.

Se buscarmos a linha que une todas as ideologias modernas, podemos ver que o filósofo francês Auguste Comte teve um papel fundamental na organização de todas as utopias que pegaram carona na ideia de progresso.

Segundo a doutrina positivista de Auguste Comte, a história da humanidade passa por três estados (estágios): o mítico ou religioso, o metafísico, e o positivo ou científico. A ciência é, por conseguinte, a única forma de conhecimento verdadeiro. Dessa forma, fica estipulado que a história humana é linear e seu objetivo é o progresso científico. O marxismo e o liberalismo carregam nas tintas os desígnios do progresso científico.

A crença no progresso é apenas uma forma secularizada da teodiceia cristã, infectando até aquelas mentes que, de outra forma, parecem combativamente ateístas. Impulsos apocalípticos são codificados em todo genoma ideológico.

John Gray não perdoa o ateísmo militante (para ele, evangélico) de Dawkins, autor do livro “Deus é um delírio”, Hitchens, Daniel Dennet, Martin Amis, Michel Onfray e Philip Pullman. Para o autor, não se trata de defender a religião, e sim de uma crítica corrosiva dos “ateus-religiosos”, que, ao trocarem Deus pelos homens, apenas trocaram de tiranias.

John Gray ridiculariza a fé deslocada no progresso proposta pelos filósofos do Iluminismo. Podemos até ficar mais inteligentes com os desenvolvimentos tecnológicos, mas para o autor isso não é garantia da melhoria moral. Permanecemos bárbaros em trajes de executivos ou em uniforme militares. Gray no final do livro lembra-nos dos mitos antigos e verdadeiros que previram que nossa busca imprudente de conhecimento e poder nos levará ao desastre: a maçã fatal em Gênesis, o fogo roubado do coração de Zeus por Prometeu. A única certeza que temos é a noção de absurdo, de um mundo ridiculamente abandonado à irracionalidade. “Missa negra”, de John Gray, merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 13 maro 2019 | Tags: Filosofia


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Missa Negra - Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias
autor: John Gray
editora: Record
tradutor: Clóvis Marques

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