Livros > Resenhas

O ano que sonhamos perigosamente

Slavoj Zizek é um pensador muito polêmico, um agitador filosófico, politicamente incorreto. Dono de uma erudição e uma fluidez teórica e uma enorme capacidade de comunicação, graças a um linguajar desprovido de preconceitos, léguas de distância da chatice acadêmica, é um profundo conhecedor da cultura pop. Tudo isso misturado o faz ser uma referência para a juventude inconformada com os paradigmas do neoliberalismo. Zizek sabe criar empatia com a juventude. E não foi à toa que um debate muito interessante entre ele e o psicólogo conservador Jordan B. Peterson foi um fenômeno de visualizações e de público presente. Uma plateia imensa e calorosa, que pôde assistir a um belo debate. Sem rancores, sem afetação, enfim, como deve ser. Civilizada e edificante entre pensadores antagônicos. Quem quiser ver esse debate, ele está no YouTube.

 “O ano que vivemos perigosamente”, de Slavoj Zizek, foi escrito no período em que as revoltas pipocaram em diversas partes do mundo, especialmente “Occupy Wall Street”, nos EUA, e a “Primavera Árabe”, na Espanha, na Grécia, e os protestos nos subúrbios do Reino Unido até chegar na loucura do insano neonazista Anders Behring Breivik, que matou 77 pessoas em Oslo sem demonstrar nenhum arrependimento. E, em seguida, Zizek discute o capitalismo e as novas expressões ideológicas da situação da política contemporânea.

O motivo pelo qual escolhi esse livro especificamente deve-se ao fato de estar fazendo uma pesquisa sobre esse período da história. E sinceramente devo dizer a todos vocês que esse livro me ajudou muito.

 

Vamos a ele? “O ano que sonhamos perigosamente” é uma coleção de ensaios divididos em oito capítulos. Os ensaios não possuem uma unidade, mas os eventos de 2011 fazem o link e nos ajudam a entender o capitalismo e as novas expressões ideológicas contemporâneas.

Na introdução, Zizek nos ensina o significado de uma expressão em persa, war nam nihadam, que significa matar alguém, enterrar seu corpo e em seguida plantar flores sobre a cova para escondê-la. Em 2011 ocorreram diversos eventos. Foi um ano de sonhar perigosamente em diferentes direções, sonhos emancipatórios que mobilizaram milhares de pessoas em Nova York, na Praça Tahir, no Cairo, em Londres, em Atenas, na Espanha; alguns sonhos destrutivos impulsionados por Breivik e populistas racistas dos Países Baixos à Hungria.

A principal tarefa da ideologia hegemônica foi neutralizar a verdadeira dimensão desses eventos: segundo Zizek, a reação da mídia foi exatamente um war nam nihadam, uma expressão persa que quer dizer matar alguém, enterrar o corpo e em seguida plantar flores sobre a cova e escondê-la.

Traduzindo, a mídia matou o potencial emancipatório desses eventos sob a alegação de uma ameaça à democracia, e para isso plantou flores no cadáver enterrado. Zizek situa esses eventos dentro de uma totalidade do capitalismo global, o que significa mostrar como eles estão relacionados com o capitalismo global de hoje.

Hoje somos bombardeados, segundo Zizek, com uma infinidade de tentativas de humanizar o capitalismo, como, por exemplo, o ecocapitalismo, ao capitalismo da renda básica. O raciocínio por trás dessas tentativas é o seguinte: em primeiro lugar, afirmar através da experiência histórica que o capitalismo é a melhor forma de gerar riqueza. Essa visão omite a exploração, destruição de recursos naturais, sofrimento em massa, injustiça, guerras, etc. O objetivo desse capitalismo “humanizado” é manter a sua matriz capitalista básica de reprodução lucrativa e direcioná-la para que ela sirva aos objetivos maiores de bem-estar social e justiça global.

No entanto, todos sabemos que o mercado tem as suas próprias demandas, e qualquer perturbação no seu funcionamento gera a ameaça de catástrofe, e tudo que podemos fazer é: domar a besta.

Domar o capitalismo, seria, segundo Zizek, a única alternativa? Pagar o preço pelo funcionamento contínuo não seria alto demais? O processo de humanização do capitalismo aumenta em todos os lugares, como, por exemplo, a ascensão do Wal-Mart como representação de uma nova forma de consumismo voltada para as classes mais baixas.

Ao contrário das primeiras grandes corporações que criaram setores totalmente novos por meio de alguma invenção, como Thomas Edison com a lâmpada, Microsoft com o seu software Windows, Sony com o Walkman, ou a Apple com o Ipod/Iphone/Itunes, ou outras empresas que criaram marcas, como a Coca-Cola ou a Marlboro, o Wal-Mart fez algo que ninguém havia pensado antes.

O Wal-Mart empacotou uma nova ideologia do barato em uma marca destinada a apelar para as classes americanas financeiramente estressadas e a classe média baixa. Tornou-se baluarte ao manter os preços baixos e estender aos seus clientes da classe trabalhadora há muito sofridos uma sensação de satisfação por compartilhar produtos estrangeiros em sua cesta de compra. 

A crise do capitalismo em curso, segundo Zizek, não tem a ver com gastos imprudentes, ganância, regulação bancária ineficaz. Nada disso. Um ciclo está chegando ao fim, um ciclo que começou no início da década de 1970, com a crise do petróleo. A decisão de Nixon de abandonar o padrão ouro para o dólar americano foi uma mudança muito radical no funcionamento básico do sistema capitalista. No final da década de 1960, a economia dos EUA não era mais capaz de continuar a reciclar seus excedentes na Europa e na Ásia: seus excedentes haviam se transformado em déficit. Em 1971, o governo americano respondeu a esse declínio com um audacioso movimento estratégico. Em vez de enfrentar crescentes déficits da nação, decidiu fazer o oposto: aumentar o déficit. Quem iria pagar este déficit? O resto do mundo. Como? Por meio da transferência de capital que correu incessantemente através de dois grandes oceanos para financiar o déficit americano.

Os EUA passaram a operar como aspirador gigante da economia mundial, absorvendo bens e excedentes de outros povos. Impulsionados por esses déficits, a Alemanha, Japão e, mais tarde, China continuaram a produzindo bens de consumo, enquanto a América as absorvia. Quase 70% dos lucros obtidos globalmente por esses países foram então transferidos de volta para os EUA na forma de fluxos de capital para Wall Street. E o que Wall Street fez com ele? Transformou essas entradas de capital em investimentos diretos, ações, novos instrumentos financeiros, novas e antigas formas de empréstimos.

Sua crescente balança comercial negativa demonstra que os EUA é um predador improdutivo. Os EUA precisam sugar um fluxo diário de um bilhão de dólares de outras nações para financiar o seu consumo e é, como tal, o consumidor keynesiano universal que mantém a economia mundial funcionando.  Fazendo uma analogia histórica, esse influxo corresponde ao dízimo pago a Roma na Antiguidade.

Os EUA são confiáveis como centro seguro e estável, de modo que todos os outros, e isso vai dos países Árabes produtores de petróleo até a Europa Ocidental e o Japão, e agora até mesmo os chineses, investem seus lucros excedentes nos EUA.

Essa confiança é principalmente ideológica e militar, não econômica. O problema dos EUA é como justificar seu papel imperial. Para isso, esse país estar em guerra permanente. “Guerra ao terror”, oferecendo-se como o protetor universal de todos os outros Estados “normais”. É assim que o globo inteiro tende a funcionar, como um Estado Espartano universal.

1) os EUA como o poder militar-político-ideológico;

2) A Europa e partes da Ásia e América Latina como regiões industriais.

Em outras palavras, o capitalismo global trouxe uma nova tendência geral para a oligarquia, mascarada como celebração da “diversidade de culturas”.  Enquanto isso, a igualdade e o universalismo estão cada vez mais desaparecendo como princípios genuínos. Só que hoje assistimos a uma nova correlação de forças. Ao contrário de 1945, o mundo não precisa dos EUA; esse sistema mundial neo-espartano está se rompendo e agora são os EUA que precisam do resto do mundo.

Zizek relembra um axioma muito comum que nós vemos nos telejornais nos dias de hoje. Especialistas, economistas e políticos contemporâneos nos dizem que vivemos em tempos críticos de déficit e dívida e que todos terão que compartilhar o fardo e aceitar um padrão de vida mais baixo – tudo isso, exceto pelos muitos ricos. A tributação dos ricos, segundo os grandes “analistas”, pode levar os ricos a perderem qualquer incentivo a investir e, assim, criar novos empregos, e todos sofreremos as consequências. A única maneira para sair dos tempos difíceis é o pobre ficar mais pobre e os ricos mais ricos. E se ricos s estiverem em risco de perderem o pouco de sua riqueza, a sociedade deve ajudá-los.

A visão predominante da crise financeira (que foi causada pelo excesso de empréstimos e gastos estatais) está descaradamente em conflito com o fato de que, da Islândia aos EUA, a grande responsabilidade final por tudo isso recai sobre os bancos privados. A fim de evitar seu colapso, o Estado teve que intervir com enormes somas de dinheiro dos contribuintes para ajudá-los.

Um outro ponto que Zizek aponta em seu livro é o aparecimento do conservadorismo populista nos EUA. Em outras palavras, a oposição da classe econômica (agricultores, banqueiros, grandes empresas) é – utilizando as palavras que Thomas Frank (citação de Zizek) utilizou – codificada na oposição entre americanos cristãos honestos contra os trabalhadores decadentes que bebem, dirigem carros importados, defendem o aborto e a homossexualidade, zombam do sacrifício patriótico e zombam do estilo de vida deles.

O inimigo, é, portanto, percebido como o “liberal” que tem como objetivo minar o autêntico modo de vida americano. A proposta econômica central dos conservadores populistas é, portanto, livrar-se do estado forte que tributa a população trabalhadora para financiar suas intervenções regulatórias. Seu programa é menos imposto e menos regulação.

Essa defesa dos populistas encontra inconsistências ideológicas na defesa de seus próprios interesses. Menos tributação e desregulamentação significam mais liberdade para as grandes empresas, que estão expulsando os pequenos e médios agricultores; e assim por diante. Aos olhos evangélicos americanos, o Estado representa um poder alienígena e, juntamente com a ONU, é um agente do Anticristo. Quem está encantado com esses ataques evangélicos ao Estado são as grandes corporações.

Quanto ao aspecto ideológico dos populistas conservadores, fica evidente que eles estão lutando uma guerra que não pode ser vencida: se os republicanos proibissem o aborto e o ensino da evolução, se impuserem a censura a Hollywood e à cultura de massa, isso implicaria numa depressão econômica nos EUA.

Embora a classe dominante discorde da agenda populista, ela tolera a “guerra moral” como forma de manter as classes mais baixas sob seu controle, permitindo-lhes a fúria sem perturbar os interesses econômicos investidos. O que significa, segundo Zizek, que a guerra cultural é uma guerra de classes em modo deslocado, como se vivêssemos numa sociedade pós-classe.

Um outro ponto, abordado no quarto capítulo do livro, é o problema étnico. Hitler, como observa Zizek, ofereceu o antissemitismo como uma explicação narrativa para os problemas vividos pelos alemães comuns: como desemprego, decadência moral, agitação social – por trás de tudo, estava o judeu. E agora a pergunta que não quer calar: o multiculturalismo e a ameaça aos imigrantes não são a mesma coisa? São os intrusos estrangeiros que estão perturbando o nosso modo de vida.

O autor discute algumas políticas que existem por trás da anti-imigração, do antissemitismo e das reações ao multiculturalismo. Zizek menciona que o antissemitismo foi dado aos alemães comuns para explicar problemas como o desemprego, decadência moral, agitação social. Ele argumenta que os sentimentos anti-imigração, anti-islâmico e antimulticulturalismo são bodes expiatórios semelhantes para as dificuldades econômicas que as pessoas estão enfrentando hoje. Ele explica que agarrar-se a uma identidade étnica serve como um escudo protetor contra o trauma da atual crise financeira.

Zizek explica como a crise na Europa justifica a atual postura anti-imigração da Europa, e a política pró-cristianismo é uma construção criada para se opor ao Islã.

Anders Behring Breivik, o assassino que ceifou 77 vidas em 2011 na Noruega, escreveu o seguinte em seu manifesto. A primeira coisa que chama a atenção é a combinação de três elementos por ele combatidos: marxismo, multiculturalismo, islamismo.

O que chama a atenção é a forma como Breivik embaralha as cartas da ideologia radical direitista. Breivik defende o cristianismo, mas é agnóstico secular: para ele o cristianismo é uma construção cultural para se opor ao islã. Ele é antifeminista, pois acha que as mulheres devem ser desencorajadas a seguir o ensino superior, mas ele defende uma sociedade “secular”, apoia o aborto e se declara pró-gay. Todo o seu ódio está focado na ameaça muçulmana. Breivik é antissemita, mas pró-Israel, já que o Estado de Israel é a primeira linha de defesa contra o expansionismo muçulmano. Os judeus são até aceitáveis desde que não haja muitos deles.

No entanto, Breivik, e aí está a ironia, não atacou os muçulmanos, mas aqueles de sua própria comunidade por serem tolerantes com eles.

Nesse período surge no cenário político Viktor Orban e seu partido, Fidesz, de extrema direita na Hungria, que criou a lei que prevê a criação de um órgão de supervisão ao qual pertencem o partido do governo. Caso veja problemas em alguma reportagem, pode cobrar multas pesadas aos veículos de comunicação.

Uma lei sobre religião dá reconhecimento automático a apenas quatorze organizações religiosas, forçando os grupos restantes (mais de 300 deles, incluindo representantes de religiões mundiais, como budistas, hindus e muçulmanos) a passar por um processo de recadastramento.

As organizações candidatas terão que comprovar pelo menos cem anos de existência internacional ou vinte anos de atividade estabelecida na Hungria; sua autenticidade e teologia serão avaliadas pela Academia Húngara de Ciências, pelo Comitê de Direitos Humanos e Religiões do Parlamento, e finalmente votadas por uma maioria de dois terços do Parlamento.

O alvo de todas essas leis são as liberdades liberais. Os absurdos dessas leis atingem aqueles que lutaram contra o antigo regime, mas que agora são fiéis ao legado liberal democrático, que são tratados como se fossem cúmplices dos horrores do comunismo.

Slavoj Zizek conclui que hoje aqueles que se recusam a falar sobre a ordem neoliberal também devem ficar em silêncio sobre a Hungria.

Dentre várias questões por Zizek abordadas, uma em particular me chamou a atenção: o fim da ideologia. A era dos grandes projetos ideológicos que inevitavelmente terminou em catástrofe totalitária acabou, e surge uma nova era de política racional pragmática, e assim por diante. Foi o que vimos nas manifestações ocorridas em vários lugares do mundo, ou seja, a ausência total de ideologia. O que leva a essas explosões violentas? E como essas explosões ecoam na própria ideologia conservadora?

Bem, os conservadores chamaram esses manifestantes de bárbaros. A resposta esquerdista-liberal aos motins, não menos previsível, foi manter seu mantra sobre programas sociais negligenciados e esforços de integração, o fracasso que privou a geração mais jovem de imigrantes de quaisquer perspectivas econômicas e sociais decentes.

Mas foi Zygmunt Bauman que caracterizou os tumultos como atos de “consumidores defeituosos e desqualificados”. Um carnaval consumista de destruição, ou seja, incapazes de consumir de uma forma adequada (por compras), o saque é a outra forma de consumir. Vocês nos chamam para consumir bombardeando o dia a dia com ofertas e produtos, e aqui estamos nós fazendo o único caminho aberto para nós.

A violência encena um aviso para a nossa sociedade pós-ideológica exibindo de forma dolorosamente palpável a força material da ideologia. O problema dos tumultos não estava na sua violência como tal, mas o fato de que as manifestações não eram assertivas, mas reativa, raiva impotente e desespero mascarado como uma demonstração de força, como um carnaval triunfante.

Ao abordar o movimento “Occupy Wall Street”, Zizek faz uma defesa contra as críticas feitas ao movimento por conservadores, e ele responde a todas elas sem dificuldades. Uma crítica que é feita ao movimento é que a América é uma nação cristã. É verdade. A Wall Street que os conservadores defendem representa o paganismo, continuam adorando falsos ídolos como as estátuas de touro.

Os movimentos são violentos? Eles se utilizam de uma linguagem combativa, no sentido de quererem colocar um freio na maneira como as coisas estão indo. Eles são chamados de perdedores, mas não são os verdadeiros perdedores aqueles de Wall Street que tiveram que ser resgatados com centenas de bilhões de dólares do contribuinte americano?

Eles são chamados de socialistas. Mas o socialismo já existe para os ricos nos EUA. Socializam os prejuízos deles para o contribuinte americano. Eles são acusados de não respeitar a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street levaram à queda de 2008, exterminaram mais propriedades privadas fruto do suor do que qualquer coisa que os manifestantes seriam capazes de alcançar.

Os manifestantes não são comunistas. Se o comunismo se refere ao sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990, o único sentido em que eles são comunistas é que eles se preocupam com os comuns – os comuns da natureza, do conhecimento –, que são ameaçados pelo sistema. Eles são descartados como sonhadores, mas os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem continuar indefinidamente do jeito que são, com apenas alguns ajustes cosméticos. Longe de serem sonhadores, eles estão acordando de um sonho que se tornou um pesadelo.

Eles não estão destruindo nada, mas reagindo a um sistema no processo de gradualmente se destruir. Os manifestantes estão simplesmente convocando aqueles no poder a olhar para baixo no abismo abrindo-se sob seus pés.

2011 foi o ano em que sonhamos perigosamente, o ano em que assistimos ao ressurgimento da política emancipatória radical em todo o mundo.

Fico por aqui. E sugiro muito a leitura de “O ano que sonhamos perigosamente”, de Slavoj Zizek.  É um livrão que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 30 setembro 2022 | Tags: Filosofia, Política


< Complexo de Portnoy Estado de Crise >
O ano que sonhamos perigosamente
autor: Slavoj Zizek
editora: Boitempo Editorial
tradutor: Rogério Bettoni

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

A nascente

Resenhas

O poder e o delírio

Resenhas

Carta aos escroques da Islamofobia que fazem o jogo dos racistas. Manifesto do diretor do Charlie Hebdo