O poder e o delírio
Enrique Krauze, para aqueles que não o conhecem, é um intelectual de ponta no cenário intelectual mexicano, jornalista, ensaísta e historiador. Foi colega e colaborador do poeta e ensaísta e Prêmio Nobel de Literatura Octávio Paz, que dispensa apresentações. Ele representa uma corrente liberal engajada em um diálogo respeitoso com os socialistas de esquerda. Seu livro “Pode e Delírio” não é uma biografia de Chavez, é mais do que isso. É uma biografia da Venezuela incluindo o fenômeno Chavez nas décadas em que foi presidente desse país.
A escolha desse livro coincide com o terremoto social, político e econômico que hoje sacode a Venezuela, onde um conflito contundente põe aquele país sob a grave possibilidade de uma guerra civil.
No início do livro uma epígrafe de Simon Bolívar na qual podemos ler uma parte do “Discurso Libertador ao Congresso de Angostura em 15 de fevereiro de 1819”:
“A continuação da autoridade num mesmo indivíduo com frequência tem marcado o fim dos governos democráticos [...] Um justo cuidado é garantia da liberdade republicana, e nossos cidadãos devem temer, e com justiça de sobra, que o mesmo magistrado que os comandou por muito tempo continue comandando-os perpetuamente.”
Afinal, quais são as teses envolvidas nesse livro? Inúmeras. Enrique Krauze conversou com todos aqueles que apoiaram o chavismo, comunistas históricos, passando por militares, e a oposição democrática, jornalistas políticos, intelectuais e muitos outros, até motorista de taxi. Nada escapou. Por isso, considero um livro sólido e que pode tranquilamente dar ao leitor brasileiro um panorama bem preciso do que está acontecendo na Venezuela. Não há nada de panfletário no livro. Não é algo feito para desestabilizar governo algum. É um livro que analisa juntamente com você, leitor, as mazelas de um regime que foi governado por uma pessoa, ou melhor, um personagem chamado Hugo Chaves.
Krauze, em pinceladas fortes, nos oferece alguns momentos históricos e políticos da história venezuelana, principalmente nos períodos de construção democrática, sobretudo com o presidente Rómulo Betancourt que governou o país (entre os períodos de 1945 a 1948 e 1959 a 1964) e os guerrilheiros marxistas presentes – alguns deles são entrevistados. Líderes como Luis Miquelena, Teodoro Petkoff, Raúl Baduel e João Vicente Rangel, todos que integraram, em um primeiro momento, os ideais chavistas, mas depois romperam com o “grande líder”. Tudo isso nos ajuda a traçar um perfil político desse personagem.
Começaremos com as seguintes perguntas: O que é o chavismo? Como nasceu esse fenômeno político? É uma derivação do marxismo? Um nacionalismo com base no fascismo? Afinal, como poderíamos definir esse fenômeno político que teve adeptos até em Hollywood, como o ator Sean Pean e o cineasta Oliver Stone que está fazendo, ou já fez, (sinceramente não sei) um documentário sobre essa figura tão emblemática. Mas não fica só por aí, temos o escritor Garcia Marquez que nunca disfarçou sua admiração por Chavez, e nada mais nada menos que Diego Maradona. Lula, Dilma, o partido dos trabalhadores, Christina Kirchner, Evo Morales e mais uma juventude chavista, que apesar de pouca faz muito barulho a favor de seu grande líder inspirador. Sempre tiveram para com esse líder um comportamento de filiação automática em toda América do Sul.
Todos nós sabemos que o culto de Chavez a Bolívar e sua idolatria como “método histórico” traduz o inconsciente de Hugo Chavez como um descendente fiel das ideias de Bolívar e, aos poucos, transfere os créditos do capital mítico para sua própria conta pessoal. “O testamenteiro de Bolívar, seu intérprete, seu mago, seu taumaturgo, seu ventríloquo, seu médium, seu exegeta, seu chefe do Estado-Maior, seu Supremo Sacerdote, o Constantino do seu credo, veio transformando-se no novo Bolívar, no “verdadeiro dono do processo.” (pg. 211)
O fenômeno Chavez traz alguma novidade à história política na América latina?
Enrique Krauze acha que não. Segundo análise sociológica de Pino Iturrieta em seu livro “El Divino Bolívar”, (citado pelo autor) Chavez orquestrou a mais impressionante encenação teológico-política já vista na América Latina. Seus faustos não ficaram atrás daqueles que o fascismo dedicou aos heróis da Roma antiga. No entanto, o culto do herói também se deu na Nicarágua com o nome de Sandino, legendário guerrilheiro nacionalista. Chavez sabia que no México o subcomandante Marcos havia invocado, outro nacionalista Emiliano Zapata. Mas Bolívar tinha algo majestoso ao povo da Venezuela. E o culto a Simon Bolívar tinha um componente já conhecido, o componente teatral. Teatral? Como assim?
A sacralização da história sempre foi um hábito político antigo na América espanhola. Embora em sua maioria católica, as histórias nacionais, muitos de seus heróis foram transformados em “paráfrases imediatas” das histórias sagradas, os seus martírios, as suas lutas, foram deificadas. Ao contrário de outros países como o México, onde a fé na Virgem de Guadalupe e outros santos patronos sempre foi muito forte. Assim como o Peru e o Equador tiveram uma forte influência católica, na Venezuela a presença da igreja não teve a mesma intensidade. Nesse país apenas um homem foi deificado: Simon Bolívar.
Hugo Chaves logo se apropria desse mito de um teatro verdadeiro uma estetização ideológica vivida em delírio ao nível das Sagradas Escrituras. “Já no poder conseguiu contagiar com seu delírio grandes massas populares, o povo bolivariano.”
Karl Marx, por uma dessas coincidências da história, em 1857 escreveu alguns verbetes sobre Simon Bolívar (o grande inspirador do Chavismo) para New American Encyclopedia e a visão do teórico do chamado socialismo científico é de um profundo desprezo pelo próprio. Sua figura política é analisada como um covarde que abandonou seus homens em batalhas para fugir covardemente em diversos momentos. Segundo o pensador alemão:
“O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou das mãos. Em outra passagem no verbete contra Bolívar diz:
“Um grosseiro, um hipócrita, um desajeitado mulherengo, um inconstante, um tresloucado, um aristocrata com ares republicanos, um ambicioso enganador cujos contados sucessos militares se devem apenas [...] aos assessores irlandeses e hanoverianos que recrutou como mercenários.”
Comparou Simon Bolívar a Souleque, o extravagante caudilho haitiano que, em 1852, coroou-se imperador sob o nome de Faustino I.
A certeza de Karl Marx era tanta em relação a Bolívar que, certa vez ao ser questionado em uma carta para Engels, respondeu da seguinte forma:
“Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas.” (Karl Marx)
Comecemos pela primeira pergunta: o que é o Chavismo? Quais suas origens ideológicas?
Em seu livro “O Poder e o Delírio”, “Chavez não pertence à arvore da genealogia marxista, nem socialista, mas a outra árvore, que não vê a história relacionada à luta de classes sociais e de massas, e sim a heróis que guiam o “povo” e supostamente o encarnam e redimem: a árvore do fascismo”. Não que Chavez fosse um fascista. Ele não foi. Mas se inspira nas figuras centrais desse regime.
No século XIX, filósofos e escritores plantaram uma árvore que veio a dar seus frutos no século XX. Dentre esses filósofos pelo menos um, Thomas Carlyle, nos chama particular atenção. Esse escocês que escreveu o livro “Os heróis e o culto dos heróis” em 1841, segundo Krauze, é por onde devemos começar para entender esse fenômeno, onde o herói se sobrepõe ao coletivo.
E o que diz esse livro? É um livro que credencia a legitimação no poder carismático, o mesmo poder que Chavez representou em pleno século XXI.
Thomas Carlyle não goza de boa fama entre os democratas e liberais, mas segundo Krauze, esse escritor extraordinário foi um biógrafo lido por escritores, líderes religiosos e políticos, lido por autores como Poe, Whitman, Nietzsche, Marx, Engels, Plekhanov, Thomas Mann, Emmerson.
Ao contrário de Marx, Thomas Carlyle tinha uma especial admiração por Simon Bolívar, comparava-o a “George Washington da Colômbia”. “As revoluções, pensava Carlyle, precisam do “herói” sincero e que confie na “Divina Providência”, um herói capaz de dar novo sentido a vida coletiva, ao “coletivo”, como diria Chavez.” (pg. 203)
Carlyle cunhou essa frase lapidar: “O culto dos heróis é um fato inestimável, o mais consolador que nos oferece o mundo de hoje[...]. A incredulidade em relação aos grandes homens é a prova mais triste de pequenez que um ser humano pode dar”( citação tirada do livro “Delírio e Poder” –pg. 203). A conclusão que podemos tirar dessa frase coincide com a do autor, ou seja, “a história tem apenas dois protagonistas: o herói adorado e o “coletivo” adorador”.
Como se deu o projeto de poder de Hugo Chavez?
Quando Chavez chegou ao poder, a Venezuela vivia uma crise provocada pela baixa internacional dos preços do petróleo. Pouco após sua chegada ao poder, o 11 de setembro de 2001 e, logo a seguir, a guerra do Iraque fizeram com que os preços do barril de petróleo passassem de US$ 16 para cerca de US$ 100. A metade do orçamento venezuelano vem direto da estatal petrolífera, PDVSA. Essa nova conjuntura deu a Chavez os recursos financeiros necessários para sustentar seu projeto de poder. E ao mesmo tempo a destruição e desmandos dessa empresa estatal ocupada pelos"amigos"de Chavez.
O livro aborda os conflitos com a imprensa – a maioria rádio e TVs que apoiaram a sua deposição. Chavez ampliou a rede estatal para sete canais e os usou para atacar oponentes. Embora não haja censura na Venezuela, a liberdade de expressão sofreu restrições severas.
Fragilizou a democracia perseguindo seus oponentes através de processos judiciais. Reformou a Suprema Corte onde só os apoiadores controlavam todas as instâncias do judiciário. O Chavismo é uma ideologia e um discurso político centrados na personificação da “vontade geral da nação” e a oposição foi esmagada nesse processo. Violência contra opositores como foi o caso de Antonio Ledesma eleito democraticamente, mas foi impedido de entrar na prefeitura, pelas milícias pró-Chavez.
Enrico Krauze reconhece alguns pontos positivos de seu legado. A incorporação dos mais pobres e a melhoria da qualidade de vida por meio das políticas sociais conhecidas como as “missiones.” "Mas foram concebidas como ações clientelistas, populistas, missões de compra de votos, apoiadas em uma excelente estratégia publicitária."( pg 83)
“O poder e o Delírio” é um livro que envolve muito mais discussões. Embora reconheça que o tamanho da resenha ficou enorme. Devo admitir que a tarefa de colocar alguns pontos do autor merece algo um pouco a mais que uma simples resenha, mas devo admitir que antes de tudo foi uma necessidade para entendermos a complexidade do tema. O momento político da Venezuela para ser entendido passa pela leitura do livro “O Poder e o Delírio” de Enrique Krauze. Um livro que merece um lugar especial em sua estante.