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Amor

Vamos começar este ano de 2020 com um tema que diz respeito a todos nós: o amor. Nada melhor do que esse sentimento tão complexo e que pode ser interpretado de diversas formas. Seja lá qual for a sua interpretação. Uma coisa é certa: carregamos dentro de nós esse sentimento de uma forma ou de outra. A função da filosofia é curar o espírito assim como a da medicina é curar as doenças do corpo. Mas, queiramos ou não, a medicina também tem sua contribuição nessa discussão, muitas vezes tratando quimicamente a todos aqueles que padecem de amor e suas depressões com um antidepressivo. Mas não será disso de que falaremos, e sim da filosofia do amor.

“Os sofrimentos de Werther”, de Goethe, (que eu ainda não postei, mas já li essa obra umas três vezes)quando publicado gerou uma onda de suicídios em toda a Europa. Muitos desses suicídios ocorreram, muitas vezes com toda a pompa e circunstância, ou seja, muitos deles vestiam as mesmas roupas de Werther, quando ceifaram suas próprias vidas.  sse livro é um dos mais belos livros que falam sobre o amor não correspondido da literatura mundial.

Mas aqui iremos tratar não da medicina, mas da filosofia. O que a filosofia pode nos dizer sobre o amor? Maria de Lourdes Borges, autora do livro de que falaremos hoje, chamado “Amor”, nos dá algumas importantes pistas. Platão, Sêneca, Epicuro, Kant e Hegel podem nos auxiliar a entender a essência do amor.

Segundo André Comte – Sponville, existem várias formas de amor, que em grego se expressam através de três conceitos: “amor/eros”, “amor/philia” e “amor/caritas (ou agapé)”. O amor/eros é aquele tematizado por Platão em seu livro “Banquete”, que permeia o amor romântico. Esse tipo de amor caracteriza-se pelo desejo, mas não o desejo carnal, mas o desejo do que falta. É o desejo de se reunir a sua metade perdida, formando um todo. É a busca daquilo que completa. “Os sofrimentos do jovem Werther”, “Tristão e Isolda”, “Romeu e Julieta” são personagens que não conseguimos imaginar felizes.

Falaremos mais sobre esses tipos de amores. Vamos começar pelo amor/eros. Como já foi dito acima o amor/eros é baseado no “Banquete” de Platão. O livro é um banquete oferecido por Agaton para alguns amigos, entre eles estão: Aristodemos, Fedro, o belo Alcebíade e o próprio Sócrates. O papo entre eles não era regido a bebidas. Agaton exorta a seus amigos a fazerem um elogio a Eros, deus do amor. Nos discursos, estabelece a diferença entre o bom Eros e o mau Eros, feito por Pausânias: o mito do andrógino e os ensinamentos de Diotima lembrados por Sócrates.

Para Pausânias não existia apenas um Eros, mas dois: um Eros vulgar, e o outro Eros celestial. O Eros vulgar é aquele que incita o amor do corpo e não do espírito. Esse tipo de amor não tem nenhuma preocupação com a virtude do ser amado, ou com sua educação ou com a virtude. Ele ama o que é fugaz, não sendo digno de apreço. O Eros celestial não se dirige ao prazer corporal, mas do espírito, ama a virtude e a inteligência do outro, não apenas seu corpo. As relações do Eros celestial são mais duradouras, visto que o Eros celestial é o amor pela sabedoria e da virtude do outro, a ele nada deve ser censurado e tudo deve ser permitido. A grande lição do Eros celestial é que qualquer tipo de entrega afetiva precisa ser baseada na virtude.

O discurso mais lembrado quando o “Banquete” de Platão é mencionado diz respeito ao mito do andrógino narrado por Aristófanes. Segundo a lenda, no início do mundo existiam três sexos humanos: o feminino, o masculino e o andrógino. Os seres humanos eram redondos, possuíam quatro pernas, quatro braços, um pescoço, duas faces, quatro orelhas e dois órgãos sexuais. Eles eram robustos, vigorosos e muito velozes, já que para correr davam voltas no ar, usando seus oitos membros. Percebendo sua força, eles decidiram atacar o céu e atacar os deuses.

Zeus encontrou uma forma de enfraquecê-los sem destruí-los por completo. Decidiu cortá-los ao meio – assim ficariam mais fracos, mas poderiam ainda se locomover pela terra sobre os dois pés. Ele cortou os homens ao meio e virou-lhes a cabeça para dentro, a fim de que pudessem contemplar o ventre e o umbigo, memória do merecido castigo da insolência. A partir de então, as criaturas humanas passaram a procurar sua metade e, se a encontravam, ficavam abraçadas com ela, gozando de sua unidade reencontrada. Como a saciedade era tanta, os seres humanos morriam assim, abraçados à sua metade, e a raça humana corria perigo de extinção. Para isso os cirurgiões de Zeus implantaram os órgãos sexuais na frente. Dessa forma, as metades de um andrógino, se se encontrassem, reproduziriam outros seres. Se fossem as metades de um homem ou de uma mulher, haveria ao menos saciedade sexual no encontro e eles poderiam voltar a ter uma vida normal.

Nesse ponto, consideremos o elogio do Amor feito por Diotima e referido por Sócrates no Banquete. O papel de Eros no amor ganha um significado diferente..  que é o amor? O amor, ensina Diotima, nem é belo, nem feio, nem pobre, nem rico, nem sábio, nem ignorante, nem mortal, nem imortal, nem homem, nem deus. O amor é um daimon, um gênio que serve de mediador entre os homens e os deuses. Sempre acompanha Afrodite porque foi concebido na festa divina em honra a essa deusa.

É filho de Poros (Recurso) e Penia (Pobreza). Pelo lado paterno, é astuto, filósofo e caçador; pelo lado da mãe, de tudo carece. Longe de ser um deus poderoso, é uma "força perpetuamente insatisfeita e inquieta". Eros, sendo meio mortal e carente como a mãe, e imortal, sábio e completo, como seu pai, é aquele que busca a filosofia para o seu complemento. Nem feio, nem belo, nem mortal, nem imortal, nem sábio, nem tolo, a essência do amor é fazer a ponte entre o humano e o divino. O mito do andrógino assim como o discurso de Diotima relembrado por Sócrates, evidenciam o caráter de incompletude do amor/eros. Ele é a busca pela sua metade perdida, busca que evidencia a carência da sua pobreza intrínseca.

O amor romântico é o amor da impossibilidade de completude sua falta. O “amor romântico” é associado à intensa busca pelo outro, significando também uma constante busca em que a autoidentidade espera a sua valorização a partir da descoberta do parceiro. É como se sua existência só fosse validada ou percebida a partir do momento que esse vazio de busca for preenchido. O amor romântico é o amor da impossibilidade de completude e da falta. Tristão e Isolda, Romeu e Julieta. O amor romântico não leva apenas a morte como a impossibilidade.

Uma bela metáfora com que a autora Maria de Lourdes Borges nos presenteia é Hegel em seu livro Fenomenologia do Espírito, onde, segundo ele, na dialética senhor e escravo, duas consciências de si enfrentam uma luta de vida e de morte, a fim de provarem seu status de autoconsciência. Se retirarmos do contexto próprio, podemos utilizá-la como possível metáfora para o amor.

O segundo tipo de amor é o amor amizade (amor/philia), explorado por Aristóteles na Ética a Nicômaco que implica em um desejo de partilhar a companhia do outro, seja pelo prazer do útil ou pela virtude. A virtude ganha aqui um peso diferente, pois implica querer o bem do outro e ter prazer na companhia do outro. Philia, para Aristóteles, é uma relação duradoura entre iguais baseada na vontade de fazer o bem um ao outro. A relação conjugal pode ser considerada uma forma de philia desde que baseada na consideração como iguais, no prazer da convivência.

Próximo à philia de Aristóteles, temos o amor em Spinoza, que assim o define na Ética: “O amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Trata-se do amor de regozijo pela mera existência do outro. Para Spinoza, a vontade do amante de unir-se ao amado designa apenas a consolidação do contentamento daquele que ama na presença do outro, alegria que pode existir, contudo mesmo com a sua ausência. O mero pensamento de sua existência (o amor) é suficiente para o contentamento sem implicar a necessidade de unir-se ao objeto de amor.

A autora cita os estoicos como exemplo, onde a virtude reside na tranquilidade da alma, deixando o espírito livre desses males, onde a alma caminha numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma e comprazendo-se com seu próprio espetáculo, prolongando indefinidamente essa agradável sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, sem se deprimir. Toda perturbação da alma é nociva à vida do sábio.

Os estoicos concordam com o mito narrado por Sócrates ao não considerar possível ficarmos apenas com o prazer, descartando a dor. Amar tudo o que acontece inclui não desejar nada além do que é, ou seja, não deseje que os eventos aconteçam como você deseja, mas deseje que os eventos aconteçam como tiver que acontecer. Quaisquer que sejam os acidentes de nossa existência infeliz, o estoicismo nos ajuda a aceitá-los e a superá-los. Portanto, é uma filosofia terapêutica real. Nunca uma pessoa estoica se queixa sobre o seu destino ou deixa que seus sentimentos ultrapassem sua razão.

O que é paixão? A inclinação natural pervertida sob a influência do ambiente social e que perturba a alma. Os estoicos acreditam que o hábito e a educação nos convencem de certas coisas, que a dor é, por exemplo, um mal. A razão deve atuar como um filtro que aceita ou não a paixão, e a regula. Por isso, é possível estar apaixonado e ser estoico se e somente se esse amor permanecer sob algum controle.

O terceiro tipo de amor é o amor/caritas (ou agapé). Esse tipo de amor está mais próximo à philia do que a eros. Esse é o amor que leva à caridade desinteressada fortemente incitada por discursos humanistas e religiosos. O mandamento cristão de amar o próximo como a si mesmo está no bojo desse amor. À faculdade de desejar pertenceriam os instintos, propensões, inclinações e paixões; à faculdade do sentimento de prazer ou desprazer pertenceriam os afetos.

Um primeiro e primitivo nível do amor poderia ser atribuído ao instinto, segunda divisão da faculdade de desejar.Para Kant razão e emoção, o instinto de acasalamento eriam comuns aos seres humanos e animais, e o desejo sexual em si não possuiria nada relacionado à moralidade ou promoção da dignidade.

A este primeiro nível instintivo e natural do amor, segue-se um segundo, denominado de afeto, um sentimento tempestuoso e passageiro, o qual torna difícil a reflexão e deliberação sobre ação. O amor-afeto deve ser diferenciado do amor-paixão, visto que a paixão, ainda que violenta, pode coexistir com a razão e “é deliberativa a fim de atingir sua finalidade”. Kant explica metaforicamente as diferenças entre afeto e paixão. Pode-se ver aqui que o amor-afeto difere do amor paixão quanto à intensidade, duração e grau de periculosidade. O primeiro é mais intenso, porém dura menos e é menos perigoso do que o segundo.

Por esta razão, Kant afirma que, onde há muito afeto, há pouca paixão, visto que emoções tempestuosas esgotam-se rapidamente, o que não permite a fria avaliação da situação vivida e a deliberação sobre meios para atingir o fim: “O afeto é sincero e não se deixa dissimular, a paixão geralmente se oculta”. Enquanto o afeto é uma genuína explosão de emoções, a paixão pode, por sua vez, coexistir com a dissimulação.

O amor-afeto assemelha-se mais ao apaixonar-se ou enamorar-se de alguém, denotando um amor romântico, incontrolável quanto às suas manifestações e cego em relação aos seus objetos: “Aquele que ama (liebt) pode manter a sua visão intacta, porém aquele que se apaixona (verliebt) é cego em relação aos defeitos do objeto amado, ainda que o último recobrará sua visão uma semana depois do casamento”.

A emoção de uma pessoa apaixonada assemelha-se, portanto, aos afetos kantianos. O termo “paixão” é reservado para atitudes mais deliberativas, podendo coexistir com a mais ardilosa dissimulação, desde que isso, como no exemplo acima, possa contribuir para obter um determinado objeto de desejo. Por essa razão, Kant afirma que as paixões não são como os afetos; estes, ao menos, convivem com uma boa intenção de aperfeiçoamento, aquelas rejeitam qualquer tentativa de melhora.

Ainda que mesmo as formas mais violentas de amor não sejam tão prejudiciais à moralidade quanto às paixões da ambição, cobiça e vontade de poder, o amor, quando não ligado à benevolência e simpatia, é um fenômeno no mínimo distinto da moralidade, visto que implica um sentimento entre pessoas desiguais.

A paixão do amor, segundo Kant, possui uma vantagem frente a outros tipos de paixões, tais como a ambição,  vontade de poder e cobiça, às quais são doenças da razão, já que, segundo Kant, não são jamais satisfeitas. A paixão do amor cessa quando o desejo, ou o amor físico, é satisfeito. Ela está ligada ao desejo físico que busca a realização, não tendo a persistência das outras paixões culturais, já que uma vez atingido o seu objetivo ela se extingue.

A teoria das paixões em Descartes, por exemplo, admite que as perturbações fisiológicas são elementos constitutivos das emoções. O filósofo William James radicaliza essa concepção ao afirmar que a sensação das emoções nada mais é do que a percepção de perturbações fisiológicas. Não choramos porque estamos tristes, ele afirma, mas estamos tristes porque choramos. Em outras palavras, sentir tristeza não seria causa da reação fisiológica, mas ao contrário, a nossa experiência desta reação.

Alguns estudiosos admitem que a paixão do amor causa efeitos no sistema nervoso autônomo: aumento dos batimentos cardíacos, garganta seca, dificuldade para respirar e aumento da temperatura. Pergunto a vocês que estão lendo esta resenha: alguém já experimentou essa sensação?

Tentei fazer um brevíssimo apanhado das ideias da filósofa Maria de Lourdes Borges sobre o tema do amor. O livro é infinitamente mais rico que a resenha e merece ser lido. Sugiro a leitura do livro “Amor” da coleção primeiros passos da escritora e filósofa Maria de Lourdes. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 30 dezembro 2019 | Tags: Filosofia


< Antônio: O Primeiro dia da morte de um homem Casa dos espíritos >
Amor
autor: Maria de Lourdes Borges
editora: Jorge Zahar

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