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Infocracia

Este é o quinto livro do autor Byung Chul Han resenhado aqui no site Bons Livros para Ler. A cada livro, as ideias deste grande pensador ganham nitidez, dando-nos elementos para decifrar os enigmas desta sociedade cada vez mais complexa que vivemos.

Infocracia é uma forma de dominação em que os algoritmos e a inteligência artificial determinam os processos sociais, econômicos e políticos. O regime de informação está acoplado ao capitalismo de informação. Ao contrário do capitalismo disciplinar, configurados nos ideais do Iluminismo. Foucault aponta que a disciplina cria corpos dóceis, que desenvolvem reflexos de submissão, obediência, resiliência. O corpo deve ser sempre exercitado, remodelado, remendado, corrigido através de recompensas e punições.

As disciplinas são técnicas utilizadas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas. A disciplina permite que o poder operacionalize suavemente a vida em favor de um circuito de produção e lucro.

Essa forma de dominação é uma forma de dominação do capitalismo industrial. No poder disciplinar, os seres humanos são adestrados em um animal de trabalho. Corpos dóceis são corpos que podem ser remodelados e aperfeiçoados à exploração.  Nas escolas, no trabalho, na prisão, na psiquiatria, produz-se a disciplina. O que se traduz em dominação permanente em uma proposta de uma sociedade que sonhava com valores iluministas. Ou seja, o sonho de liberdade, igualdade e fraternidade tornou-se uma forma de dominação, tornou-se o pesadelo da desigualdade e da indiferença.

 No capitalismo de informação assentado sobre a comunicação e a conexão, as técnicas disciplinares tornam-se obsoletas. A docilidade não é mais ideal do regime de informação. No regime da informação, produz-se a performance.

A vigilância do sistema de informação não segue a biopolítica. O poder é gerenciado e administrado como uma política de Estado, exercendo o controle da vida psicológica dos seres humanos. A vigilância do sistema de informação segue outros patamares. Na sociedade da informação, o corpo é algo estético, totalmente fitness.  O corpo está longe dos poderes disciplinares. As pessoas não são acuadas por uma vigilância da disciplina. Na sociedade da informação, é o sentimento de liberdade que assegura a dominação.

Na sociedade da informação, as pessoas se empenham por si para terem o máximo de visibilidade enquanto no regime disciplinar isso lhe é imposto. Essa visibilidade da informação é o imperativo da transparência. Tudo deve estar disponível na condição de informação. A dominação da sociedade da informação torna o ser humano completamente transparente. E a sala de máquina da transparência é escura. Desse modo, o poder se esconde na caixa preta dos algoritmos.

 A dominação do regime da informação é ocultada na medida em que se funde completamente com o cotidiano. É encoberta através das mídias sociais da comodidade das máquinas de busca, das vozes embalantes, dos smart apps, os aplicativos inteligentes. Os smartphones nos submete a uma vigilância duradoura. A smart home, a casa inteligente, é uma prisão digital que protocola nossa vida cotidiana. O robô-aspirador mapeia a casa toda. A smart-bed, a cama inteligente com seus sensores conectados, prolonga a vigilância, infiltra-se no cotidiano convencional.

Nesse regime digital, com suas zonas de bem-estar smart, não há oposição contra o regime dominante. O capitalismo de informação não trabalha com coações ou interdições, mas com o estímulo positivo.

Os influencers não nos deixam mentir, são adorados como modelos. Geralmente são os motivacionais que se comportam como se fossem redentores, estrelas-guias. Os seguidores se comportam como discípulos. Como em uma eucaristia digital, mídias digitais se assemelham a uma igreja, onde o “like” é um amém. No regime da informação, ser livre não significa agir, mas clicar, curtir e postar. Consumo é redenção. Consumo e identidade se tornam a mesma coisa. A identidade é ela própria uma mercadoria.

Os seguidores participam do cotidiano da vida dos influencers na medida em que compram produtos e muitas vezes opiniões que pretendem usar em seu próprio cotidiano.

Se antes a principal característica do totalitarismo clássico era a religião, na  política secular, é a ideologia. A ideologia como narrativa promete uma explicação total de tudo que acontece historicamente. O totalitarismo forma uma massa obediente que se submete a um Fuhrer ou a um líder. A ideologia anima a massa. No regime da informação não há massa, mas enxames digitais que não seguem um Fuhrer, um líder, mas os influencers.

A digitalização avança. Um tsunami de informações desencadeia forças destrutivas. A democracia degenera em infocracia. Se no Iluminismo, a mídia dominante era o livro, ou seja, o discurso racional do Esclarecimento. Sem essa mídia ( o livro) não seria possível o Esclarecimento.

Han cita  Habermas, apontando para uma relação íntima entre a livro  e a esfera pública:

“com um público leitor universal composto sobretudo por cidadãos da cidade e civis que se estende sobre a república dos eruditas [...] surge por assim dizer, do centro da esfera privada uma rede relativamente deusa da comunicação pública” (pág. 25; pág. 26)

“... Em uma cultura determinado pela impressão de livros, o discurso público é caracterizado, em geral por uma disposição coerente, regulado de fatos a pensamentos.” (pág. 26)

As mídias eletrônicas de massa destroem o pensamento de massa racional marcado pela cultura livresca. Habermas considera as mídias de massa as responsáveis pelo declínio da esfera pública democrática. Na televisão, o público é submetido ao estado de telespectador, de encantamento, de entretenimento. O entretenimento é o mandamento supremo ao qual também a política se submete. Ficção e realidade desaparecem, dando lugar ao infoentretenimento. A midiocracia é quando o teatro  se esgota em encenações midiáticas de massa.

 “No apogeu da midiocracia, ator Ronald Reagan foi eleito presidente dos E. U. A. Nos debates televisivos entre oponentes, não se trata de argumentos, mas de performance. O tempo de fala dos candidatos também foi radicalmente encurtado. O estilo do discurso se altera. Quem melhor se puser em cena é quem ganha a eleição. O discurso degrada-se em show e propaganda.” (pág. 30)

Na midiocracia as campanhas eleitorais são degradas a uma guerra de encenação de mídias de massa. O discurso é substituído pelo show destinado ao público. Na infocracia, por sua vez, a campanha eleitoral se degenera em uma guerra de informação. Na infocracia, a informação é utilizada como armas. Quem acompanha minimamente a política americana já deve ter ouvido falar do extremista de direita Alex Jones, que dirige o site chamado  Inforwars, guerra de informação. É um representante proeminente da infocracia, seu objetivo é espalhar teorias da conspiração O resultado é que nessa guerra a democracia se afunda em uma selva de informação (fake news).

A democracia é lenta, prolixa e tediosa. A propagação viral de informações, a infodemia, prejudica, assim, de modo massivo, o processo democrático.

Uma questão levantada por Pierre Levy em seu livro “A inteligência coletiva”: seria possível uma democracia direta, ou seja, a democracia em tempo real. No lugar da representação, surge uma presença da participação imediata. O smartphone torna-se um parlamento móvel, promovendo debates dia e noite. É uma democracia do início da era digital, como a democracia do futuro. Um problema desse tipo de democracia são os followers, nas condições de novos súditos das mídias sociais, que se deixam adestrar como gado por smart influencers. A comunicação dirigida por algoritmos nas mídias sociais não é nem livre nem democrática.

A comunicação digital provocou uma reversão do fluxo de informações cujo efeito destrutivo influencia negativamente o processo democrático. As informações são propagadas sem passar pelo espaço público. São produzidos pelo espaço privado e enviados ao espaço privado. A rede não forma nenhuma esfera pública.

“Mídias sociais intensificam essa comunicação sem comunidade. Não se pode formar esfera política de influenciadores e seguidores. Communities digitais são uma forma de mercadoria da comunidade. Na realidade são commonidities. Não são capazes de ação política.” ( pág. 49)

 A ação comunicativa proposta por Habermas é um modelo ideal de ação em que as pessoas interagem e, através da utilização da linguagem, organizam-se socialmente, buscando consenso de uma forma livre da coação externa e interna.

“Na ação comunicativa, tenho que imaginar a possibilidade de que o meu comentário seja posto em questão pelo outro. Um comentário sem interrogação não tem um caráter discursivo.” ( pág. 52)

A crise atual da ação comunicativa pode ser, segundo Han, atribuída ao desaparecimento do outro. O desaparecimento do outro significa o fim do discurso. Todos os discursos são direcionados à própria tribo política através das doutrinas e das próprias ideias. Essa autodoutrinação produz infobolhas autistas, que são incapazes de ouvir.

“O discurso pressupõe a separação entre opinião e identidade próprias. As pessoas que não tem a capacidade discursiva aderem ao modo desesperado à sua opinião, pois senão ficariam ameaçadas. Por esse motivo, a tentativa de dissuadi-la de suas convicções está condenada ao fracasso. Não escutam ao outro, não escutam atentamente. O discurso, contudo, é uma práxis da escuta atenta. A crise da democracia, é, antes de mais nada, uma crise de escuta atenta.” (pág. 52; pág. 53)

Na ação comunicativa, cada participante reivindica uma validade. Se ela não for aceita pelo outro, não há discurso. O discurso é um ato de comunicação que tenta obter um entendimento face às diferentes reivindicações de validade. O discurso é realizado com argumentos com os quais as reivindicações de validade são referendados por tribos digitais.

A reivindicação de validade das tribos digitais que se autodenominam coletivos de identidades não é discursiva, pois lhe falta racionalidade comunicativa.

“As tribos digitais tornam possível uma experiência forte de identidade e de pertencimento. Para elas, informações não constituem uma fonte de saber, mas de identidade. Teorias da conspiração são particularmente adequadas para a formação do biótipo tribal na rede, pois tornam possíveis demarcações e segregações constitutivas para o tribalismo e sua política de identidade.” (pág. 58; pág. 59)

As tribos digitais se isolam e selecionam informações  para introjetar  à sua política de identidade, em suas infobolhas com fatos e dados. Todos os fatos que contradizem as suas opiniões são simplesmente ignorados, pois não se adequam à narrativa que gera a identidade, Já que renunciar às convicções seria perder a sua identidade, o que é preciso evitar a qualquer custo. Os coletivos tribais renunciam a todo e qualquer discurso, a todo e qualquer diálogo. A conciliação não é mais possível. A opinião não é mais discursiva, mas sagrada, pois ela concilia completamente com a identidade que lhes é impossível de renunciar.

“No universo pós-factual das tribos digitais, a opinião não tem mais relação alguma com os fatos. Desse modo prescinde de toda e qualquer racionalidade. Não é nem criticável, nem necessita de fundamentação. Quem se compromete com ela, contudo, recebe uma sensação de pertencimento. O discurso é substituído, portanto, pela crença e pelo voto de fé. Fora da área de cada tribo, então há apenas inimigos – os outros, afinal – que devem ser combatidos. O tribalismo atual, que pode ser observado não apenas da direita, mas também na política identitária de esquerda, divide e polariza a sociedade. Faz da identidade um escudo ou uma fortaleza que rechaça toda a outridade. A tribalização progressiva da sociedade ameaça a democracia. Leva a uma ditadura da identidade e da opinião tribalista que carece de toda a racionalidade comunicativa”. (pág. 61)

 

Em outras palavras, a comunicação tem se tornado cada vez menos discursiva, à medida que lhe escapa, cada vez mais, a dimensão do outro. O resultado é que a sociedade se transforma em identidades irreconciliáveis sem alteridade. Dessa forma, a sociedade perde o comum, o espírito público. Não há como ouvir o outro de maneira atenta.

E ouvir atentamente é um ato político, à medida que só assim as pessoas formam uma comunidade e se tornam capazes de discurso. Ouvir atentamente promove o “nós”, o público. A democracia é uma comunidade da escuta atenta. E a comunicação digital destrói a política da escuta atenta.

Os dataístas (termo que se refere ao estudo de dados ou à chamada nova religião dos dados) veem na complexidade crescente da sociedade da informação uma inviabilidade da ideia de ação comunicativa. Trocando em miúdos, a sociedade é complexa demais. E graças ao volume de informação, a racionalidade é algo considerado limitado. Os postulados de Habermas , por exemplo, tornaram-se inviáveis nos dias de hoje.

 Sendo assim, a Big Data substitui a ação comunicativa por dados. Os dataístas celebram a inteligência artificial como a melhor alternativa aos seres humanos.  A Inteligência artificial não argumenta. Ao invés de argumentos, surgem os algoritmos, que são otimizados no processo maquinal. Corrigindo os erros por conta própria. Com isso, substitui o aprendizado discursivo.

A digitalização conduz a uma proliferação informacional que dinamita o marco discursivo. O Big Data e a inteligência artificial encontram, portanto, decisões inteligentes, até mesmo mais racionais do que indivíduos humanos com sua capacidade limitada de processar grandes quantidades de informação. Do ponto de vista dataísta, a racionalidade digital é superior à racionalidade comunicativa.

Os dataístas estão convencidos de que a humanidade dispõe da possibilidade do saber total sobre a sociedade. E prometem um mundo sem guerra, sem crise financeira, sem doenças. Para isso a sociedade deve se sustentar sem a política. Partidos e ideologias perderão o sentido. Em outras palavras, a democracia partidária não existiria mais no futuro próximo. Em lugar da democracia haverá a “Infocracia”. Políticos serão substituídos por técnicos de informática, que passarão a administrar a sociedade para além dos pressupostos ideológicos e independente de interesses de poder.

 Decisões politicamente relevantes serão tomadas por meio do Big Data e da inteligência artificial. A política será substituída pelo management impulsionado por dados vindos do sistema.

 Rousseau, um entusiástico do processo estatístico, desenvolveu uma forma de racionalidade aritmética.  Para ele a vontade geral é uma medida matemática que se sustenta sem a ação comunicativa. E aqui Han cita Rousseau:

 “ Com frequência há uma grande diferença entre a vontade de todos e a geral, a última pressupõe somente  o melhor geral, a primeira o interesse privado é apenas a soma da vontade de todos. Subtraindo dessa vontade de todos o superior e o inferior que se anulam mutuamente, resta, como soma da diferença, a vontade geral” ( pág. 72)

 Em outras palavras, para Rousseau, a vontade geral deve acontecer sem comunicação, ou seja, sem mesmo partidos ou sociedades particulares. Cada cidadão deve interceder apenas segundo suas convicções. Há uma certa semelhança entre o Big Data e a “vontade geral?” Han diz que sim:

“ Traduzindo na linguagem dos dataísta, a tese de Rousseau é a seguinte: quanto mais dados diferentes estiverem disponíveis, mais autêntica é a vontade geral averiguada. Rousseau é com isso o primeiro dataista. Sua racionalidade aritmética que abdica completamente do discurso  e da comunicação, tem proximidade com a racionalidade digital. O estatístico de Rousseau foi substituído no regime da informação, pelo informático. A inteligência artificial deve calcular, sob o uso do Big Data, a vontade geral, a saber, o “melhor geral” de uma sociedade” ( pág. 73;pág. 74)

 Em oposição à racionalidade comunicativa, a racionalidade digital tem o seu ponto de partida não no indivíduo, mas no coletivo. Para o dataísta, o indivíduo que age autonomamente é apenas uma ficção.

Segundo Han, um novo niilismo se apresenta nos dias de hoje. E esse niilismo não tem a ver com a morte de Deus. Pertence às rejeições patológicas. Bem-vindo ao mundo das fake news. A crise da verdade prolifera onde a sociedade se desintegrou em agrupamentos tribais. O novo niilismo é um sintoma da sociedade da informação. O discurso se desintegra em informações, levando à crítica da democracia.

E esse novo niilismo, como observa Han, não implica que a mentira se tornou verdade ou a verdade se tornou mentira. O problema é a própria diferenciação entre verdade e mentira, que foi anulada.

“Fake news não são uma mentira. Elas atacam a própria facticidade. Desfactizam a realidade. Ao afirmar de modo inescrupuloso tudo o que lhe convém, Donald Trump não é um mentiroso clássico que conscientemente retorce as coisas. Ao contrário, é indiferente perante a verdade factual. Quem é cego aos fatos e a realidade, constitui um perigo maior à verdade do que o mentiroso. (pág. 84; pág. 85)

A política trumpista das fake news só é possível em uma desideologização da informação. A informação é cumulativa. A verdade é narrativa e exclusiva. Existe uma super abundância de informação, há lixo de informação. A verdade por sua vez não é abundante. A sociedade da informação é esvaziada de sentido. Somos bem-informados, mas desorientados.

 O fim das grandes narrativas que dá início à pós-modernidade se consume na sociedade da informação. O Big Data se opõe à grande narrativa.

 Tudo pode ser afirmado à vontade. Desse modo a unidade da própria sociedade está em perigo.

 “ Na sociedade pós-factual da informação, por sua vez, o pathos da verdade não a absolutamente nada. Perde-se no ruído da informação levada pelo vento digital. Terá sido um breve episódio.” (pág. 107)

Fico por aqui e indico o livro “Infocracia - digitalização e a crise da democracia”, de Byung-Chul Han, como um livro importante para entendermos o presente. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 20 dezembro 2023 | Tags:


< Hiperculturalidade: Cultura e globalização Linguagem, Mito e Religião >
Infocracia
autor: Byun Chul Han
editora: Editora Vozes
tradutor: Gabriel S. Philipson

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