Meus Amigos
Hoje eu gostaria de apresentar a obra de um escritor que conheci graças a um amigo querido chamado Lucas, que mora em Paris. Ele me disse as seguintes palavras: “Luiz Guilherme, você tem que conhecer Emmanuel Bove”. O nome do livro: “Meus Amigos”. Como eu confio demais em suas dicas por ser um leitor compulsivo que nem eu, corri para as livrarias, mas só havia um outro livro desse autor – que ainda vou ler –, chamado “Armadilha”. O livro está fora de catálogo. Não há mais esse livro à venda pelo menos até o dia de hoje, 20/10/2021. Tomara que ele volte às estantes o quanto antes. Consegui esse livro em um sebo.
“Meus amigos” foi o primeiro livro de Emmanuel Bove, seu romance de estreia. Esse livro mereceu elogios de figuras literárias como André Gide, Philippe Soupault, Max Jacob e Rainer Maria Rilke, que adoraram a sua escrita. Samuel Beckett foi outro dos primeiros admiradores que afirmou: “Emmanuel Bove, mais do que qualquer outra pessoa ... tem um instinto para os detalhes essenciais”. O que é verdade.
Esse instinto para o detalhe talvez esteja relacionado ao gênero que lhe foi atribuído por alguns por inaugurar uma nova categoria de literatura chamada: “romance da solidão”. Uma nova definição para o existencialismo? Todo romance moderno aborda esse tema: a solidão. Mas Emmanuel Bove leva isso ao extremo, através de seu humor sombrio e autodepreciativo, através da pobreza abjeta e privação de direitos por que seu personagem passa.
Emmanuel Bove escreve de forma diferente, isso vocês irão ver logo de cara quando iniciarem essa leitura. Há no detalhe de sua escrita uma riqueza de nuance. O tom é o que dá o estilo a esse escritor.
Sua história de vida tem a ver com esse romance. Filho de um imigrante ucraniano (judeu) e de uma empregada doméstica, ele conheceu a miséria por experiência própria. Sua vida alterna entre a pobreza amarga e um bem-estar razoável. Pobreza por parte de mãe, que sempre lutou sozinha com os filhos para fugir dos credores nas favelas de Paris em busca de trabalho. E a riqueza veio através do pai, que abandonou a família para se casar com Emily Overweg, uma pintora rica, filha de um diplomata britânico em Xangai.
Enviado para morar com o pai e a madrasta, Bove experimentou o crepúsculo da opulência da Belle-Époque, enquanto seu irmão Leon, que se tornaria médico, permaneceu com a mãe em um ciclo implacável de uma pobreza opressora. Aos quatorze anos, com o apoio financeiro de sua madrasta, foi enviado para um internato na Inglaterra. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, voltou à França. Seu pai morrera de tuberculose e sua madrasta havia perdido tudo por causa da Guerra. E nada mais pôde oferecer. Sem contar que o seu pai biológico teve um outro filho com Emily Overweg. E as atenções voltaram-se para o filho mais novo, que se chamava Victor. Coincidentemente, é o personagem do livro.
Em 1917, alguns anos antes de sua estreia literária, foi preso e ficou um mês na prision de lansantés sem ter cometido um delito, vítima de discriminação por ter uma aparência de estrangeiro e estar desempregado, reforçado pelo seu nome de batismo Bobovnikoff. Seus algozes o chamavam de Bove por ter dificuldade de pronunciar o nome original.
Voltou e foi morar com sua mãe e viveu de pequenos empregos braçais, como garçom, operário de fábrica da Renault e operador de bonde, enquanto milhares de jovens morriam nas trincheiras de Somme, Arras e Verdun. Quando chegou a sua vez de ser convocado, para sua felicidade, a guerra havia acabado.
Vamos ao livro?
Emmanuel Bove nos apresenta Victor Bâton, um homem que lutou na Primeira Guerra Mundial e mora em Paris e vive de uma aposentadoria. “Meus Amigos” é um título irônico, pois o narrador em primeira pessoa vive em uma pequena pensão e não tem amigos. Ele não é louco nem repugnante, embora more em uma pensão de baixa qualidade, onde não há banheiro. Ele é uma pessoa atenta, sensível, e as temporadas de sexo com a garçonete Lucie Dunois, do café local, não o satisfazem.
Seu tom simples e perfeito nos remete à intimidade imediata, paisagens interiores, emocionais, que parecem fotografias de alta resolução. Ele – nesse livro – captura a experiência de uma geração perdida de veteranos de guerra, no caso, a Primeira Guerra. Os efeitos colaterais do pós-guerra estão no corpo de seu personagem.
“Quando acordo, minha boca está aberta. Meus dentes estão sujos: escová-los à noite seria melhor, mas nunca tenho coragem. Lágrimas secaram nos cantos de minhas pálpebras. Meus ombros não doem mais. Cabelos hirsutos cobrem minha testa. Com meus dedos abertos afasto para trás. É inútil: como as páginas de um livro novo, rebelam-se e voltam a cair sobre os meus olhos.
Baixando a cabeça, sinto que minha barba cresceu, ela pica o meu pescoço.
A nuca aquecida, fico de costas, de olhos abertos, os lençóis até o queixo para que a cama não esfrie.
O teto está manchado de umidade: fica tão próximo do telhado. Aqui e ali, venta sob o papel de parede. Meus móveis parecem os do belchior, nas calçadas. O cano de meu aquecedor está enfaixado com um trapo, com um joelho. No alto da janela um estore já sem serventia pende de lado. Esticando-me, sinto contra a planta dos pés – um pouco como um equilibrista no arame – as barras verticais da cama de vento.
As roupas, que pesam na barriga de minhas pernas, estão estendidas, tépidas apenas de um lado. Os cordões de meus sapatos já não têm as agulhetas.
Quando chove, o quarto é frio. Parece que ninguém dormiu ali. A água que escorre por toda a largura dos vidros corrói a massa de vidraceiro e forma uma poça no chão.
Quando o sol solitário no céu flameja, projeta sua luz dourada no meio do cômodo. Então as moscas traçam no assoalho mil linhas retas. (pg 5 e pg 6)
Victor Baton é nosso herói que não possui talento, distinção ou importância, e não possui ilusões, mas o que ele nutre é uma grande esperança de ser amado. Tudo que ele quer é um amigo. E, enquanto ele perambula pelas ruas de Paris em busca de amor e amizade ou alguma conexão fugaz, acabamos nos identificando com a sua mansidão, com a sua fragilidade.
Victor Batón, o narrador, encontra-se mergulhado no anonimato. Ele esbanja sua pensão do exército em empréstimos e bebidas perambulando no parapeito de uma ponte sobre o Sena, na esperança de despertar a pena de um estranho. Conhece Henri Billard, empresta-lhe um dinheiro que ele não pode emprestar, mas descobre que seu interesse não é pelo amigo, mas pela mulher do amigo Billard.
Encontra depressivos mais sérios do que ele que por pouco quase o leva ao suicídio, como Neuveu, o marinheiro pobre que quer se matar junto com Victor, mas não encontra por parte de Victor a cumplicidade no pacto de suicídio. É uma vida cruel.
Persegue a filha de seu patrão e vagueia por estações de trem e praças públicas, na esperança de encontrar alguém a quem possa contar sua história de vida. No seu interior encontram-se sentimentos totalmente diferentes, como orgulho, um pouco de vaidade e inocência que o impulsiona.
“A solidão me pesa. Gostaria de ter um amigo, um verdadeiro amigo, ou então uma amante a quem confiaria as minhas penas.” (pg 33)
Encontros orquestrados, encontros embaraçosos que Victor Batón se mete, monólogos interiores sobre como é ridículo se sentir envergonhado ao se virar na rua, buscas fracassadas de interesses amorosos. Suas pequenas indignidades da existência. O que torna “Meus Amigos” um romance triste e humanístico.
À medida que o romance avança, uma pergunta nos surge inevitavelmente: até que ponto essa falta de amigos é autoimposta? E até que ponto sua solidão é algo precioso para ele? Ele se irrita com a necessidade e obrigações da interação social. Fica com raiva da falta de sensibilidade das outras pessoas com os seus nobres sentimentos. No seu caso, a sua aparência e o fato de ser pobre, desajeitado emocionalmente e fisicamente marcado pela Primeira Guerra Mundial.
“Meus Amigos” também é uma meditação sobre a pobreza e a riqueza. Sobre a filha do seu benfeitor, ele diz o seguinte: “Para esperar pacientemente, andei de um lado para outro, pensando em tudo o que aconteceria de feliz se a Srta. Lacaze me amasse. Não se deve acreditar que pensava em sua riqueza. Se me oferecesse dinheiro, sentia que recusaria com indignação. Quando ela fosse ao meu quarto miserável, eu seria digno.
No entanto, devo dizer que, se ela fosse pobre, meu amor se teria evaporado. Isso eu não compreendo” (pg 140)
“Meus Amigos”, de Emmanuel Bove, está repleto de descrições concretas, como se Victor esperasse que os objetos lhe proporcionassem o consolo que lhe foi negado pela sociedade. Há uma profunda tristeza na intensidade e no cuidado com a sua tenção. Seu quarto precário é o único lugar onde ele interage. Seu desejo exagerado de amizade é o seu único capital humano. Encontra-se vazio, cada capítulo refere-se a um amigo sem qualquer ligação entre eles, uma espécie de catálogo de nomes embaçados pela névoa da solidão.
Tenta obter confiança de seus “amigos” de uma forma tão ridícula, reflexo de sua própria existência: alguns francos, alguns cigarros, sua necessidade de provar seus bons sentimentos. Sua tragédia não é o resultado do grande abismo entre seus sonhos e a realidade, mas está na impotência de adaptar sua exigente sensibilidade ao egoísmo normal da sociedade. Cada amigo que se encontra é mais um passo para decepção. Vítima de sua própria limitação, vivendo no próprio desequilíbrio individual por não entender que a desordem social que é o normal.
Emmanuel Bove nos apresenta o homem moderno da cidade moderna, esse homem representado na figura de Victor Batón, que desfila suas frases simples, desestruturadas e curtas que retratam a sua vida. “Meus Amigos”, de Emmanuel Bové, foi uma dica maravilhosa vinda de um amigo querido, e merece um lugar de HONRA na sua estante.