Tartufo
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Em 17 de fevereiro de 1773, Moliére tossiu sangue quando desempenhava o papel-título de sua comédia “O doente imaginário”. Por ser um homem que não tinha pruridos, embora muito doente, fingia ser um hipocondríaco. Como um excepcional comediante que era, não poderia perder a piada, mesmo sabendo de sua real situação física. E acabou sendo uma das maiores ironias do teatro. Ele veio a falecer em sua casa de uma embolia pulmonar horas após a sua apresentação.
Os padres da paróquia de Saint-Eustache, onde ele foi batizado como Jean Baptiste Poquelin, recusaram-lhe os últimos ritos e a oportunidade para o arrependimento – de ter sido o que foi, ou seja, um comediante brilhante – no seu leito de morte. Moliére se recusou. Foi enterrado em um pedaço de terra. Mas foi graças à intercessão de Luís XIV, seu amigo, que Moliére conseguiu ser enterrado na calada da noite, com a permissão do arcebispo de Paris, em um enterro cristão, sem cerimônia pública de luto.
O clero recusou-se a perdoar Moliére por causa da peça de que falaremos agora, “Tartufo”, que foi pela primeira vez apresentada em 1664. Essa foi uma das peças mais controversas do autor. Foi uma batalha contra a censura no século XVII. A história é supreendentemente deliciosa. E claro que a piada recaía sobre quem? Sobre a crença religiosa. Numa época religiosamente sensível que ainda lidava com a fogueira para com os hereges, Moliére foi ousado. Tratou a hipocrisia religiosa, mas, no entanto, os críticos viram como um ataque à religião. Tartufo atingiu um nervo sensível, ou seja, a distinção entre a verdadeira piedade e a farsa escondida que pretensamente se diz santa. Podemos dizer sem medo de ser leviano que “Tartufo” nos diz muito sobre os dias de hoje. Isso é certo. Partes da igreja evangélica e católica não me deixam mentir.
Moliére aperfeiçoou seu ofício como farsista cômico e dramaturgo, convertendo os elementos da farsa tradicional francesa e da commedia dell arte italiana em um drama cômico radicalmente novo que desafiava a tragédia como a forma de mostrar as verdades mais sérias e profundas.
Moliére desenvolveu suas habilidades no palco popular revolucionando a comédia francesa ao fundir o ridículo com elementos prescritos do drama neoclássico e aspirações do drama sério. Ele mostrou como a comédia, assim como a tragédia, pode atingir profundidades psicológicas e temas humanos essenciais e que as distorções caricaturais da farsa ajudaram, em vez de impedir, a exploração da natureza humana e a experiência social. Era uma comédia de personagens baseada no retrato realista dos costumes contemporâneos, aliada a uma inventividade teatral que provocava gargalhadas diante das fraquezas e pretensões humanas.
Claro que muitos não se divertiam durante as apresentações. No caso de “Tartufo”, foram os oficiais da Igreja, a polícia do pensamento espiritual da época engajada na proteção da moralidade ortodoxa. Nas garras da Contrarreforma, a Igreja católica da França dividida em duas facções rivais dominantes: de um lado os jesuítas e do outro os jansenistas puritanos. Ambos os lados se viram alvo da sátira de Moliére e, menos de uma semana após a apresentação, grupos de pressão religiosa e moral forçaram a proibição da apresentação da peça.
Molière foi condenado como “um demônio vestido de carne e vestido de homem, e o libertino mais escandalosamente ímpio que já apareceu em séculos” por um clérigo que pediu que o dramaturgo fosse queimado na fogueira. Pois bem, a proibição de Tartufo durou anos. Para obter a permissão para encenar a peça por ele escrita, Moliére alegou que na verdade o alvo não era a religião nem os verdadeiros piedosos, mas aqueles que fingiam ser e que usavam a religião para esconder ou justificar seus vícios. Em outras palavras, ao invés de menosprezar os valores morais, sua peça era a maneira mais eficaz de apoiar a moralidade atacando os vícios daquele tempo. Claro que não convenceu ninguém. Sua peça foi considerada obscena e quem lesse ou colocasse ela em cena seria excomungado.
Vamos à história?
Madame Pernelle está pronta para deixar a casa de seu filho Orgon, pois alega que ninguém lhe dá atenção. A todos ela deixa os seus conselhos e críticas, e todos a ignoram. Para a sua neta Mariane, ela crítica por ser muito frágil. Para o seu neto Damis, ela diz que ele é um idiota. Sua nora Elmire é censurada por causa de sua relação com o dinheiro. No entanto, a única pessoa que é considerada sacrossanta, a epítome da perfeição, era Tartufo.
Após a partida de Madame Pernelle, Dorine, que é a empregada, e Damis falam coisas muito pouco favoráveis a Tartufo. Chamando-o de hipócrita e fanático. Madame Pernelle e seu filho Orgon têm a certeza de que as críticas recebidas por parte da família a Tartufo devem-se a:
Madame Pernelle: “... Vocês lhe querem mal e o repelem só porque ele diz a verdade a todos vocês. O coração se lhe irrita contra o pecado, e o que o guia é somente o interesse do céu. “(pg13).
Ela também afirma que há muitos visitantes que chegam e, ao sair, fofocam sobre a família.
“Senhora Pernelle: Aí estão os contos da carochinha em que você se compraz. Minha nora, a gente em sua casa sente-se obrigada a calar a boca, pois a dona não se cansa de tagarelar o tempo inteiro. Mas afinal de contas, também pretendo discorrer por minha vez. Devo dizer-lhe que meu filho não fez nada de mais sensato do que recolher na própria casa tão devoto personagem; que o Céu aqui o enviou, por necessidade, para conduzir ao bom caminho o espírito transviado de todos; vocês devem ouvi-lo para a própria salvação e ele nada que não se deva censurar. Estas visitas, estes bailes, estas conversas, são invenções do espírito maligno. Nunca se ouvem palavras piedosas; são assuntos ociosos. Canções e frioleiras; quase sempre o próximo é o mais visado e lá se fala mal de um terceiro tanto quanto de um quarto. Enfim, as pessoas sensatas ficam até tontas com a confusão dessas reuniões. Num abrir e fechar de olhos, lá se fazem mil mexericos. E como outro dia disse muito bem um doutor, é verdadeiramente a torre de Babel, todo mundo tagarela a propósito de tudo e para contar a história a que o levou essa questão..., Mas não é que aquele senhor já está rindo com ar de mofa! Procure outros palhaços que o façam rir. E sem mais... Adeus, minha nora; não quero dizer mais nada. Fiquem sabendo que reduzirei a metade minhas visitas a esta casa e decorrerá bom tempo antes que aqui ponha os pés novamente. (dando uma bofetada em Flipole) Vamos, você com esse ar de embasbacado, aí sonhando! Hei de dar-lhe uma lição. Vamos porcalhona, anda.” (Pg16; pg17)
Após a partida de Madame Pernelle, Cléante e Dorine conversam sobre Tartufo e ambas concordam que ele não é flor que se cheire. Cléante e a empregada Dorine funcionam na peça como pessoas razoáveis. Madame Pernelle, no entanto, tem uma mente fechada e insiste apenas que as pessoas devem se orgulhar de ter um homem tão virtuoso como Tartufo vivendo com elas.
Quando Madame Pernelle sai, Cléante se recusa a acompanhá-la até a porta porque já ouviu o suficiente de sua tagarelice. Ele não consegue entender como Tartufo enganou não só a Madame Pernenell, mas também o seu filho Orgon, que nutre por Tartufo uma verdadeira devoção cega. A defesa de Orgon a Tartufo chega às raias do absurdo.
Quando Orgon volta para casa, ele imediatamente pergunta, não pela sua esposa que está indisposta, mas, em vez disso, pergunta sobre a saúde de Tartufo. Dorine (a empregada) dá más notícias sobre sua esposa.
“Dorine: Ela passou a noite inteira sem poder pregar o olho; uns calores que sentia impediram-na de cochilar e foi preciso ficar perto dela até o amanhecer
Orgon: E Tartufo? (pág. 22)
Totalmente indiferente aos problemas de sua esposa, Orgon continuamente sente tristeza por Tartufo, que se saiu bem na ausência de seu anfitrião. Depois que Dorine sai, Cléante tenta fazer com que Orgon seja mais razoável. Orgon, no entanto, não ouvirá críticas contra Tartufo e o caracteriza como um homem abençoado. Orgon descreve algumas das coisas piedosas que o tornaram querido por Tartufo e, quando Cléante tenta apontar que alguns desses atos são obviamente falsa piedade, Orgon não concorda. Cléante aponta que boas ações caracterizam um homem religioso, não altos protestos de devoção.
Orgon encontra sua filha Mariane sozinha e pergunta se ela lhe obedeceria caso ele fizesse um pedido. Sendo uma filha obediente, ela lhe diz que é sempre um prazer agradar seu pai. Orgon faz milhões de elogios a Tartufo e pede que sua filha se case com Tartufo.
Dorine, ao saber que Mariane aceitou o pedido do pai, conversa com ela. Marine se defende dizendo que sempre obedeceu a seu pai, mas agora não pode se opor a ele. Dorine faz de tudo para convencer. E começa a pintar um quadro de como será a sua vida com Tartufo, e faz Mariane dizer o seguinte:
“Mariane: Ah! por favor, deixe essas palavras e auxilie-me contra esse casamento: pronto entrego-me, estou pronta a fazer tudo.” (pg52)
O filho de Orgon, Damis, entra em parafuso quando sabe da notícia de que seu pai quer forçar Mariane a se casar com Tartufo. Combina com Dorine que é chegada a hora de mostrar quem é Tartufo; um canalha hipócrita. Dorine havia contado para a mulher de Orgon, Elmire. Todos sabem que Tartufo tem uma certa queda pela esposa de Orgon. Dorine prepara uma emboscada. Damis se esconde no armário, quando Tartufo chega.
“Tartufo: Ah! meu Deus, por favor antes de falar, tome esse lenço.
Dorine: Como?
Tartufo: cubra os seus seios que eu não poderia ver: coisas como essas ferem-nos a alma e dão origem a pensamentos culposos.
Dorine: Então o senhor cede facilmente à tentação, e a carne exerce grande impressão sobre os seus sentidos? Com certeza, não sei bem o que lhe sobe à cabeça; quanto a mim, felizmente, não sou tão pronta na cobiça e poderia vê-lo nu dos pés a cabeça, que toda a sua pele não me tentaria.” (pg 74)
Tartufo chega fazendo comentários piedosos e, quando vê Dorine, não a olha até que ela pegue seu lenço e cubra o peito com ele porque "a carne é fraca" e não pode resistir a muitas tentações. Dorine diz a ele que ela poderia vê-lo completamente nu e não ter pensamentos impuros. Ela então anuncia que Elmire está chegando e se desculpa.
Ele pergunta pela saúde de Elmire e faz alguns elogios e expressa a sua alegria por estar sozinho com ela. Ela insinua que quer lhe confidenciar um segredo. Tartufo responde que há muito tempo queria desfrutar desse momento a dois e acaba abrindo o seu coração. Ao pegar a sua mão, comenta sobre a maciez de seu vestido. E acaba revelando a sua paixão. E diz que mesmo os homens religiosos podem sentir o poder de se encantar como no caso dele por Elmire.
Em troca desse amor, Tartufo garante que essa paixão estará a salvo das fofocas e calúnias, porque ele desejará proteger o seu nome. Podemos traduzir essa proposta da seguinte forma: fique comigo, pois eu te protegerei contra tudo e contra todos. O céu está me dando apoio.
Elmire, ao ouvir tal proposta, pergunta se ele vai acabar com o casamento com Mariane. Nesse momento quem surge depois de ouvir tudo? Ele mesmo, Damis, que estava escondido e ameaça Tartufo de desmacará-lo e mostrar quem de fato ele é. Elmire tenta contê-lo, mas seu temperamento o impede de seguir os conselhos de Elmire.
É quando chega Orgon no momento exato. Damis tenta revelar que Tartufo havia tentado seduzir sua mulher, Elmire, e, portanto, Tartufo é um traidor. Orgon o repreende por tentar macular o nome de um homem como Tartufo. Ele corre em direção de Tartufo pedindo desculpas por todo esse problema causado por Damis:
“Orgon: Ofender dessa maneira um verdadeiro santo
Tartufo: O céu perdoa-lhe a dor que me causa! Se pudesse imaginar com que desgosto vejo que se esforçam por caluniar-me junto a meu irmão
Orgon: Ai de mim!
Tartufo: Só em pensar nessa ingratidão minha alma passa por rude suplício... O horror que sinto... Tenho o coração amargurado que nem posso falar, e acho que vou morrer
Orgon: Canalha! Arrependo-me de não lhe ter metido a mão na cara, de não lhe ter dado uma surra aqui mesmo.
Tartufo: Vamos acabar, agora mesmo, com toda essa discussão. Estou vendo quanto incômodo provoco; meu irmão, acho que seria conveniente ir embora.
Orgon: Como? Você está brincando?
Tartufo: Odeiam-me e vejo que procuram fazê-lo suspeitar de minha fé.
Orgon: Que importa? O senhor acha que dou ouvidos ao que dizem?” (pg91; pg92)
Orgon se volta contra o filho, chamando-o de vilão e ingrato. Tartufo falsamente implora que Orgon perdoe o filho. E quanto mais Tartufo implora por tolerância para o seu filho Damis, Orgon se recusa a perdoar o filho. E pede que ele peça desculpas a Tartufo, que é prontamente recusado por Damis.
Orgon afirma sua crença de que Tartufo vale mais do que sua esposa, seus filhos e parentes. Cléante confronta Tartufo, e aponta o raciocínio distorcido neste argumento e sugere que ele deixe a sua vingança para Deus. Tartufo cinicamente afirma que perdoou Damis, mas acha errado viver com alguém que difama o seu nome.
Ele também explica que despreza a riqueza e a única razão pela qual ele permite que Orgon transfira sua propriedade para ele é para que ele não caia em mãos perversas. É aí que Cléanter enxerga a falácia do argumento de Tartufo, que sai dizendo que vai atender a certos-ofícios piedosos.
No meio a um impasse, Elmire manda todos irem embora e diz a Orgon para se esconder debaixo da mesa e observar o que está prestes a acontecer. Quando Tartufo chega, encontra um Elmire diferente. Ela fecha a porta. Tartufo fica confuso com sua mudança. Ela confessa seu amor por Tartufo. Ele vai na direção dela, mas ela consegue retardar seus avanços. Tartufo garante a ela que sua pureza de intenção será aceita aos olhos do céu e que não há pecado quando esse pecado é cometido em segredo.
“Tartufo: Enfim é fácil destruir seus escrúpulos: posso garantir-lhe um segredo absoluto; mal está apenas no escândalo que se faz; este é que faz o mal e não é pecar quando fazê-lo em silêncio.” (pg106)
Depois de Tartufo, Orgon emerge de seu esconderijo, completamente surpreso e convencido da hipocrisia de Tartufo. Orgon fica sozinho com sua esposa e confessa que está assustado com a escritura que assinou e também com um certo cofre que deveria estar no quarto de Tartufo no andar de cima. E esse cofre contém papéis que foram deixados que poderia deixá-lo em sérios apuros.
Tartufo havia pego os papéis secretos e foi embora. Um oficial de Justiça aparece com uma ordem de despejo. Valére, o grande amor de Mariane, aparece e diz que Orgon está em perigo e oferece ajuda para se refugiar fora do país. Mas é interceptado por Tartufo, que anuncia que seu primeiro dever é servir ao rei e para isso ele sacrificaria qualquer coisa. Os oficiais de Justiça cumprem o dever.
Mas o dever acaba sendo o contrário, ou seja, prendem Tartufo, pois o rei vê o coração de todos os seus súditos. E sabe que, graças à sua sabedoria, nunca poderá ser ludibriado por um impostor. O rei invalidou a escritura e perdoou Orgon.
Fico por aqui e indico “Tartufo”, de Moliére, como uma comédia deliciosa, que merece um lugar de HONRA na sua estante.
Repetindo “verdadeira”.