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Ubu Rei

Alfred Jarry é considerado o pai do teatro do absurdo. Nasceu em Laval, na França, filho de um caixeiro-viajante chamado Anselme, casou-se com a filha de um juiz chamada Caroline. Viveu sempre pobre. Recusou todas as oportunidades devido a uma incapacidade de fazer concessões, aos hábitos da vida burguesa e às convenções literárias da vida parisiense. Jarry viveu numa solidão suicida, bebendo sistematicamente até o fim, quando morreu aos 34 anos, na mesma solidão.

No entanto, Jarry nos deu mais do que a peça de que falaremos hoje, “Ubu Rei”. Ele foi um jornalista romancista e pioneiro no design de livros. E inventou a patafísica. E o que vem a ser isso? É uma brincadeira filosófica que ajudou a pavimentar o caminho para o dadaísmo, o futurismo, o surrealismo e o Teatro do Absurdo.

A patafísica é uma crítica à lógica racional. Examina as leis que regem as exceções. Nas palavras do próprio Jarry, é “a ciência das soluções imaginárias”. A patafísica de Jarry é algo além da metafísica e além da física. Pode também ser vista como paródia, uma brincadeira: uma celebração bem-humorada do paradoxo. Mas essa pseudociência de Jarry atraiu muitos intelectuais de respeito, como os irmãos Marx, Marcel Duchamp, Jean Baudrillard, Becket, Borges e Ballard e o brasileiro Oswald de Andrade (com a sua famosa peça “O Rei Da Vela”), entre muitos outros intelectuais que possuem dívidas com Jarry.

A patafísica explora “elementos dissonantes” de modo a criar não uma síntese, mas uma situação em que as incongruências podem coexistir. Uma tentativa de elucidar o cosmo imaginário. A consciência das soluções imaginárias que combina o racional com o absurdo. Atrás de toda a lógica, esconde-se o monstruoso.

 

A popularidade da peça Ubu Rei, de que falaremos a seguir faz parte dessa patafísica que mencionamos, pois os personagens monstruosos como Pai Ubu existem. São, segundo Jarry, retratos do homem comum. A patafísica torna todos os opostos iguais e, por meio do jogo de palavras, leva a racionalidade ao extremo da irracionalidade.

Em 1948 foi fundado o Cóllege de Pataphysique, dedicado a estudar essa ciência bem como a obra de Alfred Jarry, que se tornou mundialmente conhecido através do teatro. Ubu Rei é uma das obras importantes do teatro moderno.

 Vamos ao que interessa: “Ubu Rei”.

Quando Jarry apresentou essa peça foi um escândalo. E as consequências foram muitas.  No entanto, uma coisa era certa: Jarry estava determinado a revolucionar a prática teatral francesa. A reação do público foi de perplexidade. Na plateia, não estava a burguesia atrás de entretenimento; ao contrário, um público, como poderemos dizer..., com ideias nem tão convencionais ou conservadoras, que já existia em Paris nessa época. As intenções de Jarry eram ao mesmo tempo sérias e engraçadas. A peça foi tão polêmica que sua estreia, em dezembro de 1896, foi também a sua noite de encerramento. Todos que viram se sentiram ofendidos. Ironicamente isso prefigurou o modernismo, o surrealismo, o dadaísmo e o Teatro do Absurdo.

Ubu Rei é uma referência a Édipo Rei, de Sófocles. Pai Ubu, personagem da peça juntamente com mãe Ubu, é uma paródia de Macbeth. A primeira cena é idêntica a Macbeth: Pai Ubu, Mãe Ubu e o capitão Bordura planejam o assassinato do Rei da Polônia. Só que aparece um elemento grotesco nessa cena. Todos se reúnem para um suntuoso banquete, fornecendo uma refeição onde constava: couve-flor à la merdra.

Pai Ubu: Então, capitão, jantou bem?

Capitão Bordura: Muito bem senhor, a não ser pela merdra.

Pai Ubu: Ah! A merdra não estava ruim.

 Mãe Ubu: Gosto não se discute/ (pg 37)

Ah! Estava me esquecendo.

Esse palavrão (merdra) foi o suficiente para fazer a maior parte do público de 1896 espumar pela boca. E, para piorar as coisas, todos os atores estavam de máscara, o cenário era simples e os adereços eram todos feitos de papelão. A multidão começou a urrar. Entre aqueles que vaiavam e os que aplaudiam, a vaia venceu. Uma pancadaria começou após a cortina baixar.

O personagem Pai Ubu representa tudo o que há de errado e repulsivo no mundo moderno. Ele é grotesco, rude, ganancioso, glutão, estúpido, arrogante e muito mais – ele é todo o ego desinibido do Id (do inconsciente da mente). Sua esposa, Mãe Ubu, é tão repulsiva em sua aparência como em suas atitudes, e ela cozinha sua comida com fezes.

Ele é desprezível, por isso se assemelha a todos nós. A covardia e a crueldade são os seus traços principais de caráter, se o despirmos de toda a compreensão psicológica que elimina toda a sutileza: cabeça em forma de pera, com orelhas pequenas e olhos caído. Possui uma espiral na barriga. Carrega o seu bastão. Ubu Rei é uma figura de linguagem, sua própria linguagem falada, uma mistura de paródias literárias e invenção pastelão, pontuado por um “palavrão” que aparece como um  refrão de Pai Ubu: “Merdre!”

Esse é o retrato desenhado por Alfred Jarry de como ele via o Pai Ubu.

A personagem da Mãe Ubu encontra equivalência em Lady Macbeth. Ela incita seu marido (Pai Ubu) a assassinar um rei inocente e acaba desafiado pelo filho do rei morto. Jarry incorpora paródia em várias peças de Shakespeare. Pai Ubu e Mãe Ubu representam as ambições políticas como Macbeth e Lady Macbeth. Vemos os fantasmas de reis ancestrais como em Hamlet e suas premonições.

Bem, como já falamos, Mãe Ubu convence Pai Ubu, o capitão dos dragões, de que ele deve se tornar o rei da Polônia matando o Rei Venceslau e toda a sua família. O casal convida o capitão Bordura para jantar e informa o plano; Bordura concorda em ajudar. Em troca, Pai Ubu promete lhe dar o reino da Lituânia, e o capitão responde:

 “Se é para matar Venceslau, conte comigo. Sou inimigo mortal dele e respondo também pelos meus homens. (pg 38)

O Rei Venceslau convida Pai Ubu a seu palácio e recompensa Pai Ubu por seus serviços, tornando-o Conde de Sandormir. Pai Ubu, no entanto, não se deixa ludibriar com essas honras. Mantém o seu plano; ele se reúne com Bordura e um grupo de homens, que planejam matar Venceslau e sua família no dia seguinte em um desfile pulando sobre o rei de uma vez.

O rei proíbe o filho Bugrelau de comparecer ao desfile devido a uma impertinência com o Pai Ubu:

Cale-se, pirralho. Madame, para lhe provar que não tenho o menor medo do senhor Ubu, vou sair de revista às tropas. (pg51)

A rainha Rosamunda tenta alertar o rei Venceslau contando um de seus sonhos. No sonho, Pai Ubu mata Venceslau e se torna rei da Polônia.

O rei não acredita. E acaba sendo morto. A rainha escapa pela escada secreta com seu filho Burgrelau, mas morre logo depois em uma caverna das montanhas. Bugrelau, desesperado, recebe a visita de um fantasma, que diz:

Saiba Bugrelau, que em vida eu fui o senhor Mathias de Koenigsberg, o primeiro rei fundador desta estirpe. Eu te encarrego de levar a cabo nossa vingança. (entrega ao jovem uma grande espada.) E que essa espada que te dou não descanse enquanto não golpear mortalmente o usurpador. (pg 61)

No início Pai Ubu é persuadido a ser generoso com seus constituintes distribuindo comida e dinheiro a pedido de Mãe Ubu. Mas essa generosidade logo termina; Pai Ubu diz que não vai dar a Bordura o reino da Lituânia. Pai Ubu não precisa mais dele. Pai Ubu reúne todos os nobres do reino e os condena à morte para que ele possa confiscar todas as propriedades. Ele então faz o mesmo com todos os magistrados e financistas depois que eles se recusam a seguir seu plano de mudar as leis e aumentar os impostos. Pai Ubu cobra a parte aos camponeses com aumento dos impostos e ameaça destruir suas casas quando eles se recusam a pagar.

Enquanto isso, Pai Ubu comete uma traição com Bordura (seu antigo colaborador). Ele havia prometido o reino da Lituânia, mas não dá nada para ele. Bordura sai de cena e vai procurar o Czar em busca de ajuda. Ele o acolhe com restrições e tenta derrubar a tirania de Ubu. A situação de Ubu começa a ficar perigosa. Mas ele parece que não está nem aí. Ocupa seu tempo criando sistemas para trazer bom tempo e exorcizar a chuva.

Pai Ubu: Senhores está aberta a sessão e tratem de escutar bem e permanecer tranquilos. Primeiro, vamos tratar das finanças, depois falaremos dum peque no sistema que imaginei para trazer bom tempo e afastar a chuva. (pg 88, pg 89)

Mãe Ubu explica que sua situação é terrível. Ubu chora, mas concorda em fazer a guerra contra Czar. Mãe Ubu se despede do marido:

Mãe Ubu: Boa sorte, senhor Ubu

Pai Ubu: Esqueci de dizer que te confio a regência. Mas estou levando comigo o livro de finanças, pior para você se você me roubar. Te deixo como ajudante o palotim Girão Adeus, Mãe Ubu.

Mãe Ubu: Adeus, Pai Ubu. Mate bem matado o czar. (pg 95)

Em seguida, ela se volta para assuntos mais importantes: roubar o tesouro real para si mesma.

Mãe Ubu: (sozinha) Agora que esse grande paspalho foi embora, tratemos dos nossos negócios: matar Bugrelau e nos apossar do tesouro (pg 95)

No front, Ubu, tão incompetente quanto guloso, prefere comer a se preparar para o ataque ao czar. Apesar de ter sido baleado por um soldado russo, Ubu corta seu agressor em pedaços. Um segundo tiro e Ubu acredita estar mortalmente ferido. Ele se recupera e mata o seu ex-aliado, Bordura, em pedaços. Quando do nada aparece um enorme urso:

Pai Ubu: Um urso! Ah, a besta atroz. Oh! Pobre de mim, eis-me comido. Que Deus me proteja. Vem vindo pra cima de mim. Não, ele se pegou o Cotica. Ah! Que alívio. (o urso atira-se sobre Cotica, Pila ataca-o a facadas. Ubu se refugia sobre um rochedo)

Cotica: Me ajude, Pila! Me ajude! Socorro, senhoire Ubu!

Pai Ubu: Babau! Vire-se, meu amigo: no momento, estamos rezando o Padre Nosso. A cada um sua vez de ser comido. (pg 115)

Naquela noite, Pile e Lotice discutem se devem ficar com seu rei ou abandoná-lo. Sob o manto da escuridão, e com Ubu dormindo, eles partem.

Quando o quinto e último ato começa, Mãe Ubu entra em uma caverna e percebe que o marido está falando sozinho enquanto dorme. Alegando ser São Gabriel (o arcanjo), ela ordena a ele que perdoe sua esposa. Enquanto eles estão na caverna, entra Bugrelau e seus homens enfrentam os Palotinos de Ubu. Eles conseguem escapar, pegam o navio e são vistos passando pelo castelo de Elsinore de Hamlet, voltando alegremente para casa:

Mãe Ubu: Ah! Que delícia vai ser logo rever a doce França, nossos velhos amigos e nosso castelo de Mondragão.

Pai Ubu: É Vamos chegar logo. Dentro de instantes estaremos chegando ao castelo de Elsinor.

Pila: Sinto-me feliz com a ideia de rever minha querida Espanha

Cotica: Vamos deslumbrar nossos compatriotas com as narrativas de nossas maravilhosas aventuras.

Pai Ubu: Oh! Evidentemente! E eu vou me nomear mestre das Finanças em Paris

 Mãe Ubu: É isso aí! Ah! Que marola!

Cotice: Não é nada. Acabamos de dobrar a ponta de Elsinor

Pila: E agora o nosso navio desliza a toda velocidade sobre as ondas sombrias do mar do Norte.

Pai Ubu: Mar bravio e insopitável que banha um país chamado Germânia, assim chamado porque os habitantes desse Pís são todos primos “germãos”.

Mãe Ubu: Isso é o que eu chamo de erudição. Dizem que é um país muito bonito.

Pai Ubu: Ah! Senhores! Por mais belo que seja não vale a Polônia. Se não existisse a Polônia, não existiriam os poloneses! (pg 142, pg143, pg 144)

Ubu Rei é uma peça em que a escova do banheiro substitui o cetro. A intenção do autor, quando montou a peça, não era o entretenimento. Fica claro que ele montou sua peça para subverter as suposições e as expectativas do público sobre o teatro e a humanidade. Ele mostra, através de um espelho, uma imagem exagerada de “seu outro eu ignóbil”. Para Jarry, o público que vai ao teatro guarda semelhanças com Pai Ubu. Todos se parecem como massa inerte, obtusa e passiva. E Alfred Jarry sacode o público com o grotesco. Ele oferece um teatro carnavalesco, da mesma forma que Oswald em “O Rei Da Vela” através do personagem Abelardo I.

Não é uma peça para rir. É mais satírico do que cômico. Ubu ridiculariza e menospreza a tudo e a todos com o propósito de destruir. Um carnaval cheio de ambivalências, ou seja, o aniquilamento do pensamento oficial em favor do nascimento de uma nova verdade, irônica, chamada patafísica.

A ironia não é sarcástica apenas, mas um carnaval. Ao contrário do humor, que busca zombar de forma puramente negativa e que inclui a ironia e a sátira, Ubu Rei mostra as festas dos bufões e do burlesco, cujo objetivo é zombar de todo mundo.

Recomendo muito a leitura de “Ubu Rei”, de Alfred Jarry, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 01 abril 2021 | Tags: Teatro


< O Rei da Vela Auto da Compadecida >
Ubu Rei
autor: Alfred Jarry
editora: Max Limonad LTDA
tradutor: José Rubens Siqueira, Vivien Lando

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