Livros > Resenhas

Auto da Compadecida

Há muito tempo eu estava para ler e resenhar a peça “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna. Recebi uma mensagem de um leitor do site (Bons Livros para Ler) pedindo que eu lesse e resenhasse esse livro. Eu estava com isso encasquetado na minha cabeça. Eu sabia que iria gostar. É uma obra muito importante. E, depois que eu acabei de ler, resolvi comprar mais dois livros de Ariano: “O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta” e “Fernando e Isaura”. Espero ler ainda neste ano.

Bem, promessa é dívida. Cumpri não só a minha palavra com o leitor deste site como paguei a dívida para comigo mesmo também. Não poderia ser diferente. Eu adorei.

Antes de começarmos a falar sobre o “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, é necessário dizer que intelectuais como Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Hollanda, Luís Câmara Cascudo, entre outros, pesquisaram sobre as raízes do nosso imaginário nas formas mentais europeias de visão do mundo. Muitas dessas visões europeias foram adaptadas a uma visão brasileira, onde os elementos indígenas e africanos ajudaram a compor esse imaginário.

Em 1956, João Guimarães Rosa e sua obra magistral “O Grande Sertão: Veredas” (já resenhado aqui) nos mostra um Brasil profundo de histórias populares, onde sertanejos e cangaceiros aparecem na sua história adaptada em uma lenda medieval chamada “Donzela Guerreira”.

Só para recordar, Diadorim (personagem de “O Grande Sertão: Veredas”) cumpre os requisitos para efetuar sua transformação mítica: corta os cabelos; aperta os seios; supera o medo, as fraquezas femininas e vai à guerra com homem. Filha de Joca Ramiro (seu cúmplice, pois sabia que ela era mulher), essa personagem tem a necessidade de manter sua falsa identidade: para ser respeitada pelos cabras.

Veja que Joana D’Arc, Iansã, roubou o raio de dentro da boca de Xangô, tornando-se senhora das tempestades e das mulheres fortes. São alguns exemplos dos mitos antigos povoando o imaginário brasileiro.

No caso de “O Auto da Compadecida”, existe uma relação mimética entre essa peça e a tradição do romance picaresco espanhol, ambas influenciadas, de modo geral, pela literatura medieval de matriz ibérica. O Nordeste, por conta de sua história peculiar, tornou-se ambiente propício tanto para a observação da permanência de marcas dessa influência como dos processos através dos quais se transformam e alcançam características próprias.

Ariano Suassuna emprega certos elementos do pícaro da tradição espanhola para caracterização de seu protagonista João Grilo, que é um personagem identificado com a galeria de malandros, na literatura brasileira. Tanto João Grilo quanto o pícaro são personagens marginalizados que empregam a astúcia para ludibriar uma realidade hostil.

O pícaro aprende desde a infância que pouco ou nada pode esperar das pessoas à sua volta, de uma sociedade que simplesmente o rejeita. Ele está preso a um determinismo social. Daí a sua falta de escrúpulos com qualquer um, o que inclui todos que estão a seu redor. O riso proveniente dos pícaros é proveniente do fato de eles rirem de si mesmo, por verem em suas obras o reflexo de suas ações. E o riso aparece na medida em que a forma do pícaro age contra os pilares da sociedade, a quem todo cidadão está aprisionado. Naquele instante, a vingança é realizada por todos, através das mãos do personagem.

O enredo de “O Auto da Compadecida” baseia-se no personagem João Grilo e em sua luta pela sobrevivência. Para isso, o personagem cria as situações mais picarescas; e ao lançar-se a uma história, vê-se obrigado a criar outra situação mais complexa para se livrar da anterior, e assim ele sobrevive.

O nome João, que leva um inseto de nome Grilo, e como grilo possui um som estridente, João Grilo é um incômodo com sua presença e artimanhas. E uma das artimanhas é a mentira. Bem, a arte de mentir encontra em Sherazade um personagem que, para sobreviver a um rei cruel, teve que inventar Mil e uma noites. A heroína mentia para sobreviver e foi tão bem-sucedida que o rei se apaixonou por ela.

Suassuna nos mostra que o riso e a mentira são a queda e a salvação do homem. Ele admite que todos os homens são pecadores, tenta mostrar um caminho para a salvação e se vale do riso para ganhar.

A peça “O Auto da Compadecida”, em três atos, foi escrita por Ariano Suassuna em 1955 e transformada em livro no ano seguinte. A estreia da representação da peça, um grande marco, foi em 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo grupo de Teatro Adolescente do Recife, sob a direção de Clênio Wanderley. Em janeiro de 1957, o Grupo de Teatro Adolescente do Recife apresentou-se no Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado no Rio de Janeiro. A peça venceu o festival e recebeu a medalha de ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais.  O Auto da Compadecida” fez um grande sucesso no cinema,  dirigido por Guel Arraes.

Vamos a ela?

No sertão nordestino, onde a pobreza, a violência e a fome são a realidade, João Grilo e Chicó estão procurando um emprego na padaria da cidade. O cachorro da mulher do padeiro fica doente e eles pedem que o padre benza o cachorro, mas o padre se recusa a fazê-lo. Para que eles consigam a bênção do padre, eles alegam que o animal é do fazendeiro do Major Antônio Morais. Sabendo do poder que ele exerce na região, o padre resolve dar a bênção.

Só que o cachorro acaba morrendo e a mulher do padeiro pede que o velório seja rezado em latim. E João Grilo e Chicó fazem um novo pedido ao padre, para a realização do velório do animal. Para isso eles mentem e dizem que o cachorro tem um testamento em que a arquidiocese e a paróquia dividiriam uma quantia relativa à herança do cachorro.

“JOÃO GRILO: Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a bênção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão.” (pg 63)

O bispo, vendo a oportunidade de faturar um dinheiro, acaba deixando que o velório do cachorro seja rezado em latim. Vendo que poderiam faturar com tudo aquilo, João Grilo e Chicó armam para tirar vantagem da situação. E Chicó esconde uma bexiga (tirada do cachorro defunto) de sangue debaixo da camisa.

Só que não contavam com a chegada do bando de cangaceiro de Severino, que invadira a cidade. O resultado é que ele mata o bispo, o padre, a sacristão, o padeiro e a mulher.

Quando João Grilo e Chicó iam ser mortos, eles encontram uma saída. João Grilo diz que tem uma gaita benzida pelo padre Cícero que ressuscitava os mortos quando tocada. Para comprovar que estava certo, ele esfaqueia Chicó. Como ele tinha debaixo da camisa uma bexiga cheia de sangue, ele cai como se estivesse morto e ensanguentado. Quando João Grilo toca a gaita, Chicó se levanta e é ressuscitado.

Severino cangaceiro acredita na história e pede que um de seus homens lhe dê um tiro e depois toque a gaita. Ele faz isso, dá um tiro em Severino, que morre, mas, quando a gaita é tocada, ele não ressuscita. João Grilo e Chicó resolvem fugir e pegam o dinheiro do cangaceiro. Só que, ainda vivo, o capanga pega um rifle e dispara. João Grilo é morto.

E todos que morreram tem um encontro marcado no juízo final. Inicia-se o julgamento. Nossa Senhora intercede por todos os personagens. A primeira leva (o padre, o sacristão, o padeiro e sua mulher) vão para o purgatório. E Severino, o cangaceiro? Bem, para espanto de todos, ele é condenado ao paraíso. A alegação da defesa der Nossa Senhora sobre os cangaceiros é quase toda ela baseada em Rousseau, ou seja, os cangaceiros nasceram bons, mas foram corrompidos pelo sistema. Rousseau falava que o homem tem uma natureza boa que foi corrompida pelo processo civilizador.

João Grilo volta para o seu próprio corpo. Só que, quando ele volta, vê seu melhor amigo Chicó enterrando seu próprio corpo. Chicó havia feito uma promessa que entregaria todo o dinheiro que tinha na igreja caso João Grilo sobrevivesse. Como João Grilo ressuscitou, a promessa deve ser mantida, e o dinheiro devolvido.

No Auto da Compadecida, há umas poucas figuras que representam o universo popular da cultura nordestina com as quais João Grilo terá que se relacionar: o padre, o bispo e o sacristão, que remontam à hierarquia eclesiástica, e o padeiro e sua mulher, que simbolizam as classes sociais ligadas ao comércio, assim como o Major Antônio Morais, que traduz o poder político e econômico.

Como nos romances picarescos, vemos aqui uma crítica social dirigida aos diversos estamentos da sociedade. Vemos isso em “O Auto da Compadecida”, onde um dos estamentos (no caso, o clero) é corrompido pela subserviência em relação a todos que detém o poder político e, ao mesmo tempo, desfruta de uma soberba em relação aos pobres.

Fico por aqui. Indico “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, como um livro que merece um lugar na sua estante.


Data: 06 abril 2021 | Tags: Teatro


< Ubu Rei Do amor e outros demônios >
Auto da Compadecida
autor: Ariano Suassuna
editora: Editora Agir

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Entre Quatro Paredes

Resenhas

Muito Barulho por nada

Resenhas

O Inspetor Geral