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O Rei da Vela

A peça “O Rei da Vela”, escrita em 1933 e publicada em 1937, só foi encenada 30 anos após sua publicação e refletiu, por meio da visão do autor, a sociedade brasileira de sua época de criação. Essa peça foi encenada apenas em 1967 pelo grupo teatral Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, e causou uma verdadeira revolução da arte dramática brasileira. Vou contar uma coisa para vocês: essa peça é atualíssima, mesmo para os dias de hoje, no tocante à história do Brasil. Oswald não chegou a assistir à montagem de suas peças, morreu em 1954.

Vamos a ela?

A Semana de Arte Moderna de 1922 foi uma quebra de paradigma que revolucionou o perfil da arte no Brasil. O objetivo sempre foi claro, ou seja, romper com os padrões artísticos no país, estabelecendo novos modos de conceber a arte, utilizando-se dos movimentos vanguardistas europeus. Os pensadores daquele período propunham um profundo rompimento com os modelos estéticos e ideológicos da época.  No caso do texto “O Rei da Vela”, nas palavras de Sábato Magaldi, era:

“Se já não incidisse em lugar-comum mencionar, a propósito de tudo, a carnavalização, seria evidente dizer que Oswald carnavaliza, em O Rei de Vela, o Brasil colonizado. A mola propulsora da peça – o autor deixou bem claro- é a espinafração.” (pg 14)

“O Rei da Vela” é uma peça escrita em três atos que apresenta a ascensão e a queda de Abelardo I, o personagem principal. De origem humilde, o protagonista, ao longo da trama, revela sua elevação a homem de negócios, proprietário de terra, de uma fábrica de velas – que simboliza “o resíduo religioso de um país feudal” – e um escritório de agiotagem.

O primeiro ato começa com a seguinte cena:

“Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Um retrato de Gioconda. Caixas amontoadas. Um divã futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone. Sinal de Alarma. Um mostruário de velas de todos os tamanhos e de todas as cores. Porta enorme de ferro à direita correndo sobre as rodas horizontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula. O Prontuário, peça de gavetas com os seguintes rótulos: Malandros – impontuais – prontos – protestados. Na outra divisão: penhoras – liquidações – suicídios – tangas.

Pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai das máquinas de escrever da antessala” (pg 37)

A primeira cena se passa no escritório de Abelardo I. O cenário assemelha-se a um zoológico, os devedores estão enjaulados, e Abelardo II, empregado de Abelardo I, estala um chicote como se domasse os animais enjaulados. Em outro momento, a situação de cada cliente é analisada, dando uma ideia de como funciona o “esquema”. Abelardo I executa todos clientes que lhe devem.

Abelardo I é um burguês que representa a burguesia ascendente da época. Seu oportunismo está intimamente ligado à crise da bolsa de 1929, o que lhe permite todo tipo de especulação.

ABELARDO I — Que importa? Para nós, homens adiantados que só conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país medieval como o nosso! O senhor sabe que São Paulo só tem dez famílias? ABELARDO II — E o resto da população? ABELARDO I — O resto é prole. O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é novo. (pg. 44)

Na verdade, Abelardo I é um agiota. Sua caracterização como Rei da Vela é de uma ironia significativa: ele vende velas, pois as empresas elétricas fecharam com a crise e as empresas não podem pagar o preço da luz. Simboliza “o resíduo religioso de um país feudal”. Como também o costume popular de colocar uma vela na mão de cada defunto, assim Abelardo herda o tostão de cada morto.

Abelardo I é um burguês emergente que nunca desfrutou da origem nobre. Daí a necessidade de legitimar sua posição social através de um casamento. A escolhida é Heloísa de Lesbos, aristocrata decadente, filha do coronel Belarmino, cafeicultor paulista falido com a crise de 1929.

O Brasil do século XX passava por grandes inovações industriais, do comércio e da indústria e da tecnologia. Com a industrialização e a chegada do capital vindo de fora, encontrou no Brasil uma mão de obra barata, o que levava a lucros desmedidos.

O teatro de Oswald capta esse movimento das relações capitalistas de forma pontual, ou seja, faz uma crítica contundente para chegar ao busílis da questão, que faz Abelardo dizer:

Abelardo I: É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que trabalhar para os países superiores como pobres trabalham para os ricos. Você acredita que Nova York teria aquelas babéis vivas de arranha céus e vinte mil pernas mais bonitas da terra se não trabalhasse por Wall Street de Ribeirão Preto e Cingapura, de Manaus à Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio se quiserem! Mas não me queixo. É por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você... (Pg 63, pg 64)

Um outro ponto da peça “ O Rei da Vela” diz respeito à origem do nome Abelardo. O nome não é gratuito, vem de um mito romântico, Abelardo e Heloísa, casal trágico de século XII. Uma história de amor que marcou o romantismo, e representa a busca da espiritualidade. Os restos mortais do casal estão enterrados no cemitério Pére Lachaise, em Paris.

No entanto, Abelardo e Heloísa, de Oswald, é uma paródia dessa lenda romântica. Só que Oswald subtrai toda a paixão e o amor, proclamando que esse matrimônio nada mais é do que um negócio.

Abelardo tem muito dinheiro, mas não tem o peso da família de tradição, e ela, apesar de pertencer a uma família “nobre”, com a falência dos negócios de seu pai, devido à crise das oligarquias agrárias, não tem capital para manter o padrão de vida no qual foi criada, padrão esse que tinha por objetivo manter determinada cultura do comprometimento implantado pela colônia e não condizente com a realidade de um país pobre. E o casamento nada mais é do que um negócio:

Heloísa – Em troca da minha liberdade. Chegamos ao casamento... Que você no começo dizia ser a mais imoral das instituições humanas. Abelardo I – E a mais útil à nossa classe... A que defende a herança.... Heloísa – Enfim... Aqui estou... Negociada. Como uma mercadoria valiosa... Não nego, o meu ser mal-educado nos pensionatos milionários da Suíça, nos salões atapetados de São Paulo... vivendo entre ressacas e preguiças, aventuras... não pôde suportar por mais de dois anos a ronda da miséria... (Silêncio) E a admiração que provocou em mim, com seu ar calculado e frio e sua espantosa vitória no meio da derrocada geral... O conhecimento que tive do seu cinismo e da sua indiferença diante dos sofrimentos humanos... (p.60).

Na peça de Oswald, eles são representantes da burguesia e da aristocracia rural e pensam no casamento como a solução para seus problemas econômicos.

Um outro personagem que dialoga com Abelardo I é o Abelardo II. O Abelardo II se declara socialista, porém não é contra o sistema, apenas o mantém. E tem consciência que é um personagem nessa representação. O espectador tem a chance de ver a degeneração da estrutura da sociedade sem ter envolvimento emocional.

Para completar, surge um intelectual com nome de Pinote, e o autor aproveita para mostrar as relações dos intelectuais e artistas com o poder: o artista precisa decidir qual será seu compromisso social. E ele opta pela burguesia:

Abelardo I: É um revoltado?

Pinote: Absolutamente não! Fui no colégio. Hoje eu sou quase um conservador! O que me falta é convicção;

Abelardo I : Tem veleidades sociais... quero dizer bolchevistas?

 Pinote: Não senhor! Olhe tenho até nojo de gente baixa... gente de trabalho... Não vai comigo!

Abelardo I: Muito bem!

 Pinote: gente que cheira mal...

 Heloísa: Ninguém dá são para eles se lavarem.

Abelardo II (tranquilizando Pinote que se voltou) - Não se incomode. Ele é socialista. Mas moderado, de faca também (sorriso dos dois). Mas, afinal, qual é o gênero literário que cultiva, meu amigo?

Pinote: Os grandes homens! Pretendo fazer como Ludwig. Escrever as grandes vidas! Não há mais nobre missão no planeta! Os heróis de época

Abelardo I: Pode ser extremamente perigoso. Se nas suas biografias exaltar os heróis populares e inimigos da sociedade. Imagine se o senhor escreve sobre a revolta dos marinheiros pondo em relevo o João Cândido... ou algum comunista morto num comício!

 Pinote: - Não há perigo. A polícia me perseguiria.

Abelardo I: É então um intelectual policiado...

Pinote: Faço questão de manter uma atitude moderada e distinta!

Abelardo I: Já publicou alguma coisa?

Pinote: Já. Um livrinho de Estácio de Sá. Não saiu muito bem. Mas estou fazendo outro... Vai sair melhor...

Abelardo: A vida de Carlos Magno.

Pinote: Não de Pascoal Carlos Magno. Uma coisa inofensiva...

Heloísa: - Então os seus livros podem ser lidos por moças...

Pinote: Decerto! Eu quero ser um Delhi social! Entenderam?

Abelardo I: Perfeitamente! Uma literatura bestificante. Iludindo as coitadinhas sobre a vida. Transferindo as soluções da existência para as soluções “no livro” ou “no teatro”. Freud...

Pinote: Oh! Freud é subversivo

Abelardo I: Um bocadinho. Mas olhe que, se não fosse ele, nós estávamos muito mais desmascarados. Ele ignora a luta de classes! Ou finge ignorar. É uma grande coisa!

Heloísa: - Distrai muito, quando a gente é emancipada. (tira um cigarro e fuma)

Pinote: Eu prefiro as vidas!

Abelardo I: Não pratica literatura de ficção?...

Pinote: No Brasil isso não dá nada!

 Abelardo I: Sim, a de fricção é que rende. É preciso ser assim meu amigo. Imagine se vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão total. O dinheiro só é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês escritores, artistas, precisam ser mantidos pela sociedade na mais pura e permanente miséria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e prestimosos. É a vossa função social (pg 57, pg 58, pg 59)

No Segundo Ato:

Logo no início do segundo ato, que se passa em uma ilha tropical na Baía da Guanabara, surge Heloísa flertando com Mr Jones. José Celso Martinez Corrêa chamará o “O Rei da Vela Manifesto do Oficina” de “frente única sexual”. E o que vem a ser isso? Diz respeito a todas as “aberrações” (no modo de ver de Oswald) de ordem sexual e moral que fazem parte do declínio social de uma classe decadente.

Cabe aqui cabe uma observação. A família de Heloísa está cheia de personagens estranhos, que Oswald faz questão de mostrar como sinais de decadência da aristocracia rural. Entre eles, a própria Heloísa de Lesbos, que possui, como o próprio nome indica, tendências homossexuais. Dona Cesarina, sua mãe, mostra-se francamente flertando com Abelardo I (marido de sua filha). Totó Fruta do Conde, o irmão homossexual, acaba de roubar o amante da irmã. Joana, é sarcasticamente apelidado de João dos Divãs.

O coronel Belarmino, pai de Heloísa e chefe da família, assiste à decadência da família e da aristocracia rural. E Perdigoto, outro irmão da moça, bêbado e jogador, é um fascista que planeja organizar uma “milícia patriótica” para conter colonos descontentes – ideia que encontra total apoio em Abelardo I, pois a forma que ele encontra de manter a sua riqueza é a sua ordem social de que depende sua riqueza.

No terceiro ato, Abelardo I é roubado por Abelardo II. Perdeu tudo que tinha e se suicida. Abelardo I lembra Heloísa que ela se casará Abelardo II, o ladrão. Abelardo I morre, mas o sistema prevalece. A burguesia nacional continuará submetida ao capital estrangeiro. E o mito de Abelardo e Heloísa permanece, ou seja, Heloísa e Abelardo estarão sempre juntos.

Abelardo pede uma vela antes de morrer. Recebe uma vela barata e, totalmente falido, será enterrado na vala comum. O fim da peça se dá no casamento de Abelardo II com Heloísa. E o americano com Mr Jones, o americano, dizendo: “Oh! Good Business”.

Em seu “Rei da Vela Manifesto do Oficina”, José Celso Martinez Corrêa pergunta: “Senilidade nossa? Modernidade absoluta de Oswald? Ou pior, estagnação da realidade nacional?”. José Celso nos diz em suas reflexões:

“E o Rei da Vela (viva o mal gosto da imagem!) iluminou um escuro enorme do que chamamos realidade brasileira, numa síntese quase inimaginável. E ficamos bestificados quando percebemos que o teto desse edifício nos cobria também. Era a nossa mesma realidade brasileira que ele ainda ilumina. Sob ele encontramos o Oswald grosso, antropófago, cruel muito especial.” Esculhambo logo existo”! E esse esculhambo era o meio de conhecimento e expressão de uma estrutura que sua consciência captava como inviável. Por essa consciência se inspirava numa utopia de um país desligado dos seus centros de controle externo e consequentemente do escândalo de sua massa marginal faminta. Para captar os sentimentos brejeiros luso-brasileiros. Era preciso então reinventar o teatro” (pg 22)

E no seu manifesto, José Celso elogia a falta de medo de Oswald. Seu anarquismo, sua grossura são os elementos que ele usa para captar a vida do homem recalcado do Brasil, a ideologia do oportunismo. O tempo passa e a peça permanece atual, apenas trocam-se as plumas, mas a estrutura viciada permanece intocável, a farsa estrutural.

“O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, merece ser lido para entendermos o Brasil. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 29 maro 2021 | Tags: Teatro


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O Rei da Vela
autor: Oswald de Andrade
editora: Editora Globo

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