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Carmen Miranda: A Vida de Carmen Miranda a brasileira mais famosa do século XX

Com uma bibliografia extensa, seguidos de uma discografia e de uma filmografia, “Carmen: a vida de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX” é uma das biografias mais espetaculares que eu li nos últimos anos. Para ser bem sincero, Ruy Castro tem o poder de te levar, através de sua narrativa, ao início do século XX, como se estivéssemos assistindo a um filme. Sua paixão revela-se em cada página. Uma viagem inesquecível. Às vezes me lembra, por exemplo, Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote, que fazem parte daquele time do gênero que combina reportagem com literatura. Ruy é um biógrafo cinematográfico.

Ruy Castro constrói cena a cena e nos conta essa história maravilhosa, proporcionando ao leitor a sensação de testemunhar os fatos no momento em que eles ocorrem. Ruy estava lá em espírito. Não é reportagem, é biografia. A voz de Ruy em “Carmen: A vida de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX” nos dá a sensação de visualizarmos o que acontece no momento em que lemos o texto. É perfeito.

Carmen estava em minha lista na minha estante fazia algum tempo. Sabia que iria gostar de ler, mas não pensava que iria gostar tanto. Se tivesse mais 500 páginas, eu encarava rindo. Uma aula de Rio de Janeiro, uma aula de música popular brasileira. Já havia lido “A Noite do Meu Bem”, de Ruy Castro, que, de uma certa forma, é a continuação da vida pós-Carmen depois do fechamento do Cassino da Urca. E Copacabana entrando no cenário musical de uma forma contundente, através do samba-canção, seguido da bossa nova.

Quando lemos a biografia de Carmen, percebemos que Ruy fez um trabalho hercúleo, foi fundo em sua pesquisa. Foram mais de cinco anos de pesquisa de uma das mais espetaculares artistas da música popular brasileira. A biografia de 597 páginas nos revela os segredos da “Pequena Notável”, a mulher que inspirou mulheres no mundo inteiro durante décadas e que representou a legítima baiana.

“Pele morena, olhos verdes e muito vivos, boca rasgada, dentes brancos e perfeitos, farto cabelo castanho claro. Pequenina, é verdade – 1,52 metro e nunca passaria disso –, mas um pitéu: seios de granito, quadris anchos, pernas grossas e firmes, Carmen já estava pronta desde a adolescência. Só não gostava de seu nariz, que, de tão arrebitado, comparava ao de Cyrano e de uma pinta amarela que trazia no olho esquerdo. Mas era coquete – sabia de seu poder de sedução e gostava disso. Deixava-se ficar conversando com algum rapaz na porta do sobrado e não via o tempo passar. Sua mãe chegava à janela e gritava: “Suba, Carmen!”. Mas dona Maria tinha de dar a ordem várias vezes até que ela subisse. (pg 20, pg 21)

A bibliografia de Carmem é extensa e revela muitos detalhes acerca da protagonista. Para escrever esta resenha, foi preciso escolher uma direção a tomar, pois a riqueza de detalhes é gigantesca. E a direção que eu vou dar não será a dos amores e de sua vida pessoal. Falarei mais da carreira, e de uma forma geral.

A lista de agradecimentos do livro é enorme. Muitos ainda estavam vivos, como Aurora, sua irmã mais nova que morreu em 2005. E outras fontes documentais. Uma coisa é certa: Ruy Castro é incansável na busca dos fatos. Não é papinho de internet, é fonte mesmo.

Vamos ao livro?

Para os mais jovens, uma notícia: o Brasil não começou hoje. O Brasil já existe há muito tempo. Somos frutos de nossa história. E ela, apesar de todas as nossas idiossincrasias, é muito bacana. Pelo menos, parte dela, no que se refere à nossa história cultural.

O livro começa com o assassinato do rei de Portugal Dom Carlos I no dia 1º de fevereiro de 1908. Foi o aviso para que José Maria da Cunha e mais tarde Maria Emília, recém-casados, imigrassem para o Brasil com sua filha Maria do Carmo Miranda da Cunha, a Carmem. As trinta seções seguintes abordam a vida de Carmen Miranda, ano a ano, até sua morte.

Carmem tinha quatro irmãs. Aurora, a mais nova, foi sua amiga inseparável, que também era cantora e atriz, fez uma carreira paralela. Olinda, a mais velha, por uma dessas infelicidades, teve uma vida trágica. Era supertalentosa, era a mais bonita das irmãs e a que tinha a melhor voz das três irmãs, fato esse reconhecido por toda a família, e dona de um temperamento exultante, independente e feliz, mas que acabou falecendo de tuberculose por causa de uma paixão, aos 23 anos, em Portugal. E tinha dois irmãos, Oscar e Amaro.

Dizem que Carmem se espelhou na irmã. Foi Olinda que ensinou a Carmem os sambas, os tangos e as modinhas que aprendeu na rua. Ensinou-a a costurar e a fazer de qualquer pedaço de pano uma saia ou uma blusa, a combinar as roupas, a se maquiar, a explorar os pontos fortes e esconder os fracos.

A vida de Carmem Miranda pode ser dividida como as estações do ano, ou seja, a primavera, que vai de 1909 a 1930, período de sua formação na Lapa, no Rio, seus primeiros sucessos. Verão, de 1930 a 1940, quando ela deixa o Brasil e sua carreira internacional simplesmente decola. O outono, de 1940 a 1950, período de consolidação de sua carreira internacional, quando ela fez muitos filmes. Nesse período, Carmem despontou com grandes apresentações em teatros, cassinos, night clubs, cinemas, estádios. Seu estrelato em Hollywood aumentava, o céu era o limite. Foram quatorze filmes pela Fox. United Artists, MGM e Paramount. Para a gravadora Decca americana. Suas aparições no cinema tiveram alcance internacional. E o inverno, de 1950 a 1955, ano de sua morte prematura.

A Lapa carioca dos anos de 1920 era um bairro noturno e cosmopolita. Era uma Lapa moderna, com Di Cavalcanti, Villa Lobos, entre outros artistas e músicos. A indústria cultural transformou-se em um fenômeno global. Foi nesse ambiente que Carmem Miranda teve a sua formação. Onde aprendeu as gírias e palavrões.

“Era uma Lapa noturna e cosmopolita, frequentada ao mesmo tempo por homens de smoking e cavanhaque e por apaches de dente furado e chinelo, e em que marcavam encontros para as três da manhã, em restaurantes que serviam lagostas ou canja de galinha. Discutia-se Mallarmé em cabarés de luxo, regado a champanhe e pernod, ao som da valsa francesa como “Amoureuse” e “Frou- frou”. A cocaína, fabricada pelos grandes laboratórios e chamada de “fubá Mimoso”, era vendida as claras em vidrinhos. Não faltava na Lapa uma célula leninista, nos fundos de uma banca de sapateiro na rua do Lavradio, onde a queda de Kerenski, em outubro de 1917, foi ruidosamente comemorada. Era a Lapa ultra moderna de Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Jaime Ovalhe, Ribeiro Couto, Zeca Patrocínio e de outros músicos pintores e poetas, cronistas e jornalistas que começavam a fazer dela uma Montmartre guanabarina, e das mulheres de lábios pintados e vestidos coloridos, cuja presença já fora percebida pelo escritor Lima Barreto” (pg 19, pg 20)

Carmen Miranda, nos anos 1930, se adapta a todos os meios de comunicação, sendo eles: rádio, revista e cinema. Entre 1929 e 1930, foram gravados 230 sambas e marchas e cinco filmes nacionais, tornando-a a artista mais importante da América Latina nos anos de 1930. Já em 1939, em Hollywood, cantando em português, foi expoente da música popular brasileira como só a Bossa Nova faria 20 anos depois.

Um dado que precisa ser colocado aqui é que, quando Getúlio Vargas assumiu o poder, ele modificou drasticamente a estrutura do rádio, dando-lhe um formato mais popular, pois até então a programação era voltada para o público da elite, com músicas eruditas, conferências, palestras. E com essa popularização, a música popular começou a ocupar um lugar de destaque nas programações. Foi exatamente aí que a carreira de Carmem começa a decolar. Sendo um veículo que transmitia informações em alta velocidade (para os padrões da época) e atingia uma grande massa que não sabia ler, percebeu-se nele um grande potencial para propaganda política e disseminação de ideologias.

Carmem Miranda absorveu os dois lados do Rio de Janeiro: de um lado, a cidade; do outro lado, o morro. Com 16 anos, Carmem conhece Donga e Pixinguinha. Foi a única parceira feminina de Pixinguinha. Josué de Barros, que era conhecido como o professor depois de viver anos na mais plena calaçaria, descobriu, nas palavras de Ruy Castro, um “diamante bruto” – Carmem Miranda. Ela começou a cantar de graça, até sair seu disco pela RCA:

“Conforme a história muito contada, o educado e retraído Joubert de Carvalho, então famoso pela canção “Tutu marambá”, passava pela rua Gonçalves Dias quando foi chamado pelo sr. Abreu, gerente de A Melodia, loja de discos e partituras ao lado da Confeitaria Colombo, para ouvi um disco que acabara de sair. O disco era “ Triste Jandaia”, com a desconhecida Carmem Miranda. Segundo Joubert, a audição lhe provocou uma sensação inédita: a de estar vendo a cantora, como se “ ela estivesse dentro da vitrola” Joubert fez Abreu tocar o disco várias vezes, sempre gostando mais, e lhe pediu que, um dia, apresentasse à garota. Abreu respondeu que não haveria dificuldades nisso, porque Carmem, como muitos cantores e compositores, ia com frequência à loja. O acaso então fez das suas, e Carmem em pessoa – maquiada, saltos altos, elegantíssima – entrou pela porta da Melodia.

 “Taí a nova cantora”, exclamou Abreu.

Os dois foram apresentados e Joubert Falou de seu interesse em compor algo para ela. Carmem encantada, deu-lhe o endereço, e os dois se despediram Joubert saiu da loja com uma palavra – “ Taí “ - e uma melodia na cabeça. Menos de 24 horas depois a partitura debaixo do braço, tocou a campainha de Carmem na travessa do Comércio.

A porta se abriu lá em cima e Carmem surgiu no alto da escada com um vestido caseiro, sem pintura e descalça. A princípio Joubert não a identificou.

“Sou eu mesma, disse Carmem. “ Você não está me reconhecendo porque estou sem máscara de ontem. Vamos lá, suba!

A música era uma marchinha, “Pra você gostar de mim”, não necessariamente carnavalesca. Não havia piano em casa – sintoma de pobreza numa família cheia de moças -, donde Joubert cantou-a para Carmem em seu estilo seresteiro:

Taí! Eu fiz tudo pra você gostar de mim

Oh, meu bem, não faz assim comigo, não...

Carmem aprendeu logo e, quando Joubert tentou orientar sua interpretação, ela disse com o brilho no olhar:

“Não precisa me ensinar, não que, na hora da bossa, eu entro com a boçalidade” (pg 51, pg 52)

Com “Taí”, Carmen vendeu 35 mil discos, o maior sucesso carnavalesco. Em um ano já estava famosa, equiparava-se a Francisco Alves, o maior artista brasileiro da época. Em setembro de 1930, já famosa no Brasil, estreou no teatro “Vai dar o que falar”, no Teatro João Caetano, a nova revista musical da cidade que falava de prostituição. O que causou o maior rebuliço. Só se aguentou por uma semana em cartaz.

Carmen fez história no rádio. Iniciou a sua carreira com apresentações nas rádios na década de 1930. Nunca teve aulas de canto, mas possuía uma voz que era familiar. Sua popularidade crescia, e ao mesmo tempo crescia a venda de aparelhos de rádios. Carmen tinha uma empatia e uma espontaneidade. Com ela, o Brasil parecia adquirir voz própria, palavras do Ruy.

E a rádio que fez muito sucesso na época foi a rádio Mayrink Veiga, reduto dos grandes cantores e compositores. Carmen foi a pioneira no quesito profissionalização, concedendo benefícios trabalhistas a seus funcionários. Bem, tudo isso tinha um motivo, quando Cesar Ladeira substituiu Felício Mastrangelo, e a rádio tornou-se a mais ouvida em todo o país. Foi ele que criou o bordão que eternizou Carmen: “A Pequena Notável”.

A Mayrink Veiga foi a primeira rádio a ficar 24 horas no ar. De rádio-novelas a programas humorísticos. Carmem foi um dos poucos artistas que triunfou em todos os veículos de comunicação por onde passou.

O rádio inventava-se no Rio, com shows ao vivo e um elenco de artistas contratados, suplantando o comércio de partituras e o teatro de revista no papel de divulgador do disco. Carmen Miranda era disputada pelas principais gravadoras e rádio-emissoras do país.

Muitos compositores escreviam especialmente para Carmen, pois, com sua interpretação única, fazia de qualquer música um sucesso e significava uma redenção da profissão, que ainda não era bem vista pela sociedade. Daí em diante Carmen passou a ser convidada de honra de muitos eventos, solicitada em “tardes de arte” e “de samba e violão”, festivais, festas e para inaugurações, como a da piscina do clube do Fluminense. Havia se tornado uma figura muito cativante, e sua presença parecia refletir a unidade de toda a cidade, era o símbolo que queriam do Rio de Janeiro.

O sucesso na indústria fonográfica lhe garantiu um lugar nos primeiros filmes sonoros lançados nos anos 1930. Carmen Miranda participou de cinco musicais carnavalescos lançados nesse período, como “Alô, Alô, Alô Brasil” (em 1935) e “Alô, Alô, Alô, Carnaval” (em 1936). Em 1939, caracterizada de baiana, fez um filme dirigido por Ruy Costa que a lançou internacionalmente, nome do filme: “Banana da Terra”. Nesse musical apresentava clássicos como “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi.

Getúlio Vargas autoriza propagandas na rádio, que se tornou um fenômeno social. Surgem os cantores de rádio. E as propagandas.

“Ali também Carmem começou sua associação com o Leite de Rosas. O desodorante tinha sido criado no Rio havia apenas dois anos e ainda era fabricado no quintal da casa de seu inventor, na Estrada das Paineiras. Com toda essa simplicidade, ele surpreendeu os potentados concorrentes e foi o primeiro produto a explorar a imagem de Carmem num anúncio. Se Carmem era sinônimo de “it”, o Leite de Rosas prometia dar “it” a quem usasse. (pg 61)

Em 1934, cantou pela primeira vez em São Paulo no Teatro Santana com músicas de Ary Barroso. Desceu do palco, o que foi um acontecimento. As rádios, com o apoio do Estado, começaram a se especializar. De 1932 a 1937, existiam 63 estações, pulando para 106 em 1944, e 111 em 1945. As rádios começaram a competir pelas melhores atrações, Carmem ganha um programa semanal na Mayrink Veiga. Sua participação no rádio valia cinquenta mil réis, o maior cachê da praça. Ela era um outdoor de uma  proposta de  uma nova mulher brasileira.

Quando Carmem Miranda embarcou para Nova York, em 4 de maio de 1939, deixou para trás uma carreira de sucesso, simplesmente impecável. Em dez anos, gravara 281 músicas, recorde absoluto entre as cantoras brasileiras – sambas e marchas na imensa maioria, mas também choros, canções e até ritmos exóticos, como rumbas, foxes e tangos. Os sucessos eram incontáveis. Fizera dupla com os maiores cartazes de sua geração – como Chico Alves, Mário Reis, Sylvio Caldas, Carlos Galhardo, Almirante, Ary Barroso, Lamartine Babo, Assis Valente e Dorival Caymmi. Todos os grandes compositores brasileiros tinham passado pela sua voz.

“Os shows nos cassinos, os programas de Rádio, as apresentações em cinema e teatros, tudo isso passara sem registro e seria privilégio exclusivo da memória de quem estivera lá para vê-lo e ouvi-los. E os próprios filmes iriam se perder. Só os discos ficariam. Foi sorte que Carmem tivesse guardado em tal abundância durante sua carreira brasileira. E, boy, como nós, um dia iríamos precisar desses discos.” (pg 196)

Anotem este nome: Lee Shubert. Em 1939, o americano Lee Shubert, o ator Tyron Power e a atriz Sonja Heine vieram ao Rio e foram ver o espetáculo de Carmem Miranda no célebre Cassino da Urca no Rio, onde cantava “O que é que a baiana tem?” com Dorival Caymmi.

Quem era Lee Shubert? Era simplesmente o proprietário de cerca de cem teatros nos Estados Unidos – metade da Broadway era dele. Além de teatros em Londres. Em seu cast de artistas famosos, havia desde Sarah Bernhardt, passando pelos irmãos Marx, Al Jolson, Mae West, Bob Hope toda a família Barrymore. Isso só para lembrar. Quando viu Carmem Miranda pela primeira vez, sentiu que ali tinha alguma coisa que ele (apesar de não entender as letras das músicas), tinha algo de impactante.

 “ Não havia nada de acaso na presença de Shubert na Urca, nem ele estava ali somente a passeio. Nos últimos anos, ouvira falar insistentemente de Carmem Miranda pelas cartas que uma amiga, a ex-atriz Clairborne Foster, residente no Rio, mandava para Claude P.Greneke, seu chefe de imprensa em Nova York. No passado Clairborne fora um grande nome dos palcos, em The bluebird de Maeterlinck, e outras peças produzidas por Shubert, que sempre a tivera em alta estima. Em 1932, Clairborne abandonara o teatro para se casar com Maxwell Jay Rice, executivo da empresa de aviação Pan American junto à Panair no Rio e se apaixonara pela cidade: “ As praias, a baia, os nightclubs, a comunidade diplomática – a mais chique do mundo”, ela dizia. Para Clairborne, os Shuberts deveriam contratar Carmem, imediatamente antes que outro americano a levasse, e por isso bombardeava Grenekerr com cartas com cartas. Sua fé no sucesso de Carmem nos Estados Unidos era absoluta, mas, para não dizerem que era parcial, Claireborne às vezes acrescentava testemunhos de americanos de passagem por aqui – o último fora Tyrone Power. Assim ao tomar o Normandie em Nova York, rumo ao que seria sua viagem de lazer pela América do Sul, Shubert pediu a Clairborne e Maxwell que lhe reservassem uma mesa onde Carmem estivesse se apresentando” (pg 183)

Bem, vamos resumindo a história. Ele adorou. No entanto, havia um problema. Para ser mais específico, havia uma exigência. O Bando da Lua que já havia se apresentado com Carmem em Buenos Aires e Montevidéu não poderia seguir com ela. As negociações não foram fáceis. Mas a vontade de Carmem prevaleceu, e O Bando da Lua foi com Carmem para os Estados Unidos.

Quando Carmem foi contratada, precisava criar uma falsa história para o público americano. A primeira era que Carmem tinha “vinte e cinco anos”. e não trinta, ela já tinha 30 anos. Uma outra história era que Carmem havia sido criada em um convento. Os americanos tinham uma fixação por pureza e nada melhor do que um convento para dar à Carmem uma aura de pureza. Coisa que passava longe de Carmem. Mas se o jogo era esse, Carmem resolveu jogar.

Juntamente com o Bando da Lua Carmem, fez um circuito bem intenso com um show chamado Streets of Paris. Tudo seria um pequeno aperitivo para chegar até a Broadway. Bem, a apresentação aconteceu e foi bem recebida, e Carmem Miranda foi retratada pelos jornais americanos como “Brazilian Bombshell”.

“Em Streets of Paris, a única região da anatomia de Carmem à mostra na baiana foi mapeada pelo repórter Robert Sullivan como “entre a sétima costela e um ponto acima da cintura” – ou seja, acima do umbigo, este pudicamente coberto. Mesmo assim, Sullivan classificou aquela região de “zona tórrida”. Outro a falar das mãos de Carmem escreveu que elas podiam fazer do mais inocente e decorativo, essa violação dos estatutos não estaria na cabeça do repórter?” (pg 214)

Com as bênçãos de Dorival Caymmi, Carmen forjou uma nova baiana. Uma mistura das baianas clássicas do Carnaval do Rio – parentes das vendedoras de acarajé da rua – com o seu indefectível sapato plataforma, que ela já inventara por ser baixinha, e um figurino imaginado por ela, pois era costureira e havia sido vendedora de roupas – e com aquela dança original dirigida pelo mesmo autor de “O que que a baiana tem?”, de Caymmi, somados às marchinhas, e à genial “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Uma verdadeira salada de ritmos desembarcou em plena Broadway, causando furor.

Bem, foi algo avassalador. Carmem Miranda tornou-se um consenso entre o público e a crítica americana. No entanto, pelas bandas de cá, não havia consenso. O Brasil começou a namorar com o nazismo de Hitler.

[...] Marchamos para um futuro diverso de quanto conhecíamos, em matéria de organização econômica, social ou política, e sentimos que os velhos sistemas e formas antiquadas entram em declínio. Não é, porém, o fim da civilização, mas o início tumultuoso e fecundo de uma nova era. Os povos vigorosos, aptos à vida, necessitam seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se deterem na contemplação do que se desmorona e tomba em ruína. É preciso, portanto, compreender nossa época e remover o entulho das ideias mortas e dos ideais estéreis” E mais adiante:  “Passou a época dos liberalismos imprevidentes”. (pg 242).

O discurso de Getúlio foi recebido como um bálsamo nas repartições alemãs. Os germanófilos do governo brasileiro, entre eles Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, e Goes Monteiro, chefe do Estado Maior do Exército (que, em 1939, fora a Berlim para assistir a manobras do Exército alemão), o major Filinto Muller, chefe da polícia do Distrito Federal, e Lourival Fontes. Em 1940 a Alemanha tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil. O “nacionalismo” da elite brasileira também era para alemão ver. Na volta dos Estados Unidos, onde ficou um ano afastada do Brasil e já era a personalidade mais conhecida dos EUA, Carmen Miranda fez o seu primeiro show, no Cassino da Urca.

E o sucesso de Carmen nos EUA. não era mais bem-vindo entre os generais da época. Em seu primeiro show no Cassino da Urca, sentiu uma frieza alemã na plateia. Quando desembarcou para um show no Cassino da Urca, cumprimentou o público com o famoso “Hello, People” para cantar logo em seguida “South American Way”. A reação foi glacial.

[...] Presentes, além da primeira-dama, dona Darcy Vargas, estavam sua filha Alzirinha e o marido desta, Ernani do Amaral Peixoto, interventor do estado do Rio; general Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra; general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército; Francisco Campos, ministro da Justiça; Waldemar Cromwell Falcão, ministro do Trabalho; Gustavo Capanema, ministro da Educação; vice-almirante Aristides Guilhem, ministro da Marinha; coronel Cordeiro de Faria, interventor do Rio Grande do Sul; capitão Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal; capitão Batista Teixeira, do Departamento de Segurança Política e Social; “coronel” Bejo Vargas, bonvivant, lobista e primeiro-irmão; Lourival Fontes, chefe do DIP; Júlio Barata, diretor da Divisão de Rádio do DIP; Assis Figueiredo, diretor da Divisão de Turismo do DIP; e o radialista Felicio Mastrangelo, italiano nato e mais tarde acusado de quinta-coluna no Brasil por vários jornalistas (pg. 250).

Carmem representava o Brasil no exterior, o nosso samba, a cultura brasileira. Para os presentes. a nossa cultura deveria prevalecer e não se submeter. Sua performance naquele primeiro show foi constrangedora para o Estado, devido ao seu tom internacional. No entanto, para Carmen era prova de sucesso pessoal e do sucesso do Brasil. No entanto, a visão dos que estavam naquele show era outra. Um mal-estar, que a levou a se reunir com a nata do samba em sua casa. Algo precisava ser feito.

Bem, ela se fez de desentendida, após o incidente. O que ela fez? Reuniu os grandes compositores da época. Compareceram em sua casa na Urca Braguinha, Alcyr Pires Vermelho, Nássara, Haroldo Lobo, Mario Lago, Oswaldo Santiago e David Nasser. Com a exceção de Nasser, todos ali eram íntimos de Carmem. Nos dias 2, 6 e 27 de setembro de 1940, Carmem Miranda realizou seus últimos trabalhos para Odeon: dez músicas novas, quase todas preparadas para a estreia, em 12 de setembro, no Cassino da Urca, show com o qual se despedira do Brasil.

Em defesa de Carmen Miranda vieram Ataulpho Alves e Torres Homem com “É um que, a gente tem”; Dorival Caymmi com o “O dengo que a nega tem”; Assis Valente com “Recenseamento”; Vicente Paiva e Luiz Peixoto com “Voltei pro morro”, “Disso que eu gosto” e “Disseram que eu voltei americanizada”.

A resposta veio na lata no show no Cassino da Urca:

Samba de Luís Peixoto e Vicente Paiva:

 

Me disseram que eu voltei americanizada

Com o burro do dinheiro, que estou muito rica

Que não suporto mais o breque de um pandeiro

E fico arrepiada ouvindo uma cuíca.

 

Disseram que, com as mãos, estou preocupada

Que já não tenho molho, ritmo, nem nada

E corre por aí que eu sei certo zum zum

E dos balangandãs já nem existe nenhum

 

Mas pra cima de mim pra que tanto veneno?

E eu posso lá ficar americanizada?

Eu que nasci com o samba e vivo no sereno

Topando a noite inteira a velha batucada

Nas rodas de malandro, minhas preferidas

Eu digo é mesmo: eu te amo; e nunca: I love you

Enquanto houver Brasil na hora das comidas

Eu sou do camarão, ensopadinho com chuchu

Eu sou do camarão, ensopadinho com chuchu

Com o burro do dinheiro, que estou muito rica

Que não…

Observem uma coisa nessa letra. Uma delas é a americanização, que é – diga-se de passagem – o mote da canção. Aqueles que fizeram questão de se comportar de uma maneira fria e crítica, no show do Cassino da Urca, no fundo tinham um desprezo pelas rodas de samba, celebradas muitas vezes no sereno da noite. A elite brasileira sempre desprezou a cultura nacional. Muitos músicos eram presos por estarem com seus instrumentos musicais como o violão. Como foi o caso de Josué de Barros. Essa canção composta por Vicente Paiva e Luís Peixoto foi a forma de reafirmar os valores populares de Carmen. Afinal, ela nunca ignorou as diferenças entre os estilos de vida populares, do brasileiro típico, de onde ela veio, e daqueles que a receberam friamente naquela noite no Cassino da Urca.

“E Voltei pro Morro”, de Vicente Paiva e Luís Peixoto

Voltando ao berço do samba

 Que em outras terras cantei

Pela luz que me alumia eu juro

Que sem a nossa melodia e a cadência dos pandeiros

Muitas vezes eu chorei, chorei

 

O show foi um sucesso:

Nada de black-tie, de gente do governo ou de bandeirinhas verde-amarelas. Em vez disso, lá estaria o seu público, vestido como pudesse. Como cenário, um painel mostrando uma série de Carmens em efeitos luminosos. E ela própria estava com o gogó tinindo. Quanto à reação da plateia, já tiver uma prova na véspera, à tarde, durante o último ensaio – assistido por dezenas. Ao entrar no palco na noite de estreia, sabia-se amada como sempre. (pg 256)

E ela teve que voltar para os Estados Unidos para cumprir uma agenda enorme de shows e filmagens. Em 1941 já ostentava uma mansão em Beverly Hills. Usava frases em português em seus filmes, dando o tom da sua identidade brasileira em Hollywood.

E houve contratempos com Lee Shubert, que se mostrava muito guloso quanto às suas percentagens. Faturava 50% de tudo que ela faturava. E o Bando da Lua, com Aloysio Oliveira juntamente com Carmem Miranda. rodou os Estados Unidos. Teatros, hotéis e restaurantes. Mais de dois shows por dia. Logo o cinema a descobriu, gravando seu nome na calçada da fama em Hollywood. Mas Lee Shubert e Carmen acabaram se separando,  para o bem de Carmem.

Só que a vida real está um pouco longe dos finais felizes de Hollywood. Para ser Carmen Miranda, tinha que trabalhar muito. Shows seguidos a outros a levaram a ter que se manter na base das famosas “cápsulas mágicas”: anfetaminas e calmantes, e no fim o álcool. Tudo isso associado a um péssimo casamento, a uma carência e a uma agenda excessiva que a levaram a vivenciar o inverno em meados da década de 1950, vindo a falecer em 1955.

A Indústria Cultural da época mastigava e cuspia quando não queria mais. Carmen não foi esse caso. Seus problemas pessoais somados aos remédios que tomava para se manter viva a derrotaram. Nunca fugiu do trabalho. Era um vulcão, sempre foi um vulcão. E Ruy Castro nos dá esse presente. Uma história tocante cheia de pontos de virada e cheia de vida. Carmen foi a maior artista brasileira do século XX. Carmen Miranda deve ter ficado feliz ao ver-se retratada com tanta paixão e intensidade.

Só para lembrar que é impossível dar spoiler numa resenha. É preciso ler e saborear, pois tem muito, mas muito mais nessa biografia.

Fico por aqui. “Carmen: a vida de Carmen Miranda, a brasileira mais famosa do século XX” merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 25 maro 2021 | Tags: Biografias


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Carmen Miranda: A Vida de Carmen Miranda a brasileira mais famosa do século XX
autor: Ruy Castro
editora: Companhia das Letras

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