Paixão Pagu: A autobiografia precoce de Patrícia Bueno
Quando acabei de ler “Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão”, fiquei pensando na intensidade com que ela levou a vida. Claro que isso sempre me faz lembrar dos meus tempos de militância no que tange aos motivos de pertencimento a um grupo. Seu depoimento (pelo menos para mim) me passou uma pessoa que oscilava entre uma vontade férrea, ao estilo Lênin, ou seja, de uma disciplina revolucionária exemplar, de uma “coragem destrutiva”, e, ao mesmo tempo, de uma fragilidade muitas vezes desconcertante aliada a uma solidão e a um vazio enorme.
Até os dezesseis anos, Pagu morou no Brás, bairro paulistano, sendo criada em um ambiente totalmente diferente de seus pais, que transmitiram uma mentalidade moralista típica de classe média. Aquele mundo parecia pequeno demais para sua vontade de vida. Aos 14 anos de idade, em decorrência talvez de algum abuso (ela não menciona isso), fez um aborto precoce, que llhe trouxe um sentimento de repulsa e atração, o que acabaria abalando seu relacionamento com Oswald de Andrade:
“ Minha primeira paixão. Minhas primeiras lágrimas. As primeiras humilhações. Porque com o amor veio o gosto amargo da repulsa pelo sexual. A aversão pela cópula. Mas havia a satisfação da dádiva” ( pg 54)
Quando conheceu Oswald, não foi algo a ver com a entrega. Não, muito pelo contrário. Havia um elemento de desconfiança quando passaram a viver juntos no final de 1929, quando ela tinha 19 anos. Seu objetivo era claro: sair de casa, e não viver com ele. Era uma forma de se entregar à vida e ao desejo de libertação, pois foi assim que se dedicou à sua militância.
Esse livro foi publicado como uma forma de diário, ou seja, para si própria. Seu companheiro Geraldo Ferraz entregou esses escritos ao seu segundo filho, que tinha o mesmo nome do pai, Geraldo, e depois entregou para Rudá, o primeiro filho de Pagu com Oswald de Andrade. Escritos esses que falam sobre sua trajetória de vida e suas escolhas. É um oferecimento ao seu filho, em que ela mostra a dor que suportava para se tornar uma mulher forte que sempre foi.
O texto, como já disse, é forte e é um convite para que seu marido Geraldo sofra e viva com ela todas as suas lutas, suas vitórias e derrotas. Nesse sentido, tudo vai se desenvolvendo de forma que o leitor se depara com várias sensações e, aos poucos, vai montando, construindo esse personagem, que nos dá a sensação de não ter sido real.
Um relato que revela a mulher intensa que ela sempre foi, onde ela faz um balanço crítico “retrospectivo e introspectivo” de uma época. Foi escrito quando ela estava na prisão.
“Não é meu intento descrever minuciosamente os detalhes e os aspectos da Conferência. Não estou escrevendo autobiografia para ser publicada ou aproveitada. Isto é para você ter um pouco mais de mim mesma, das sensações e emoções que experimentei." ( p. 99-100)
Ela se revela uma nova mulher de um Brasil modernista. Ela é uma participante e ao mesmo tempo vítima das armadilhas de seu tempo. De sua maneira de ser e de sua maneira de agir.
Ela nos revela e desmistifica os intelectuais modernistas e sua falta de paciência com
“aquelas assembleias literárias, como eram enfadonhas...
... As mesmas polemicazinhas chochas, a mesma imposição da Inteligência, as mesmas comédias sexuais, o mesmo prefácio exibicionista de tudo.” (Pg 17)
O relacionamento de Pagu e Oswald de Andrade não era algo muito fácil de entender. Segundo Pagu, ela aceitava tudo dentro da relação. Oswald era um mito intelectual e considerado um gênio. Os conflitos entre eles mostram um homem difícil de se relacionar.
“Uma liberdade maior de movimentos e mais nada. Ele não me interessou mais que outros intelectuais conhecidos naquela época. Particularmente, eu me sentia mais atraída por Bopp, que possuía mais simplicidade, menos exibicionismo e, principalmente mais sensibilidade." (p. 59)
Oswald nunca teve a curiosidade de entender a personalidade de Pagu. Para ele, ela era apenas um acessório de uma grande coleção de mulheres. Uma pessoa extravagante, um típico burguês. Mas isso não anula a importância que ele exerceu em sua vida. Nas palavras de Pagu:
“Sabia que Oswald não me amava. Ele tinha por mim um entusiasmo que se tem pela vivacidade ou por uma canalhice bem feita. Ele admirava minha coragem destrutiva, a minha personalidade aparente. Procurava em mim o que outras mulheres não possuíam. Por isso mesmo sempre procurou alimentar minhas tendências que podiam alimentar reações estranhas, aproveitando minhas necessidades combativas com deturpações de movimento, Oswald não tinha nenhum pudor no gozo de detentor de objetos raros.
Eu desejava o amor, mas aceitava tudo. Muitas vezes minhas mãos se enchiam de oferta e ternura. Mas havia as paredes da incompreensão atemorizante. Nunca pude sequer oferecer-me totalmente. Resolvi, então, que ao menos uma grande amizade fosse conseguida e uma forte solidariedade constituísse a base sólida de nossa vida em comum. Quanto lutei por isso.” (pg 62, 63)
Oswald contava suas aventuras amorosas com outras mulheres. Ainda grávida, Oswald lhe disse que iria sair com uma mulher só para saber se ela era virgem. E é por isso que ela diz:
“Ocultei o choque tremendo que essas palavras produziram. Tínhamos decidido pela liberdade absoluta pautando nossa vida. Era preciso que eu soubesse respeitar essa liberdade. Sentia meu carinho sendo atacado violentamente mas havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza. Ainda hoje o meu agradecimento vai para o homem que nunca me ofendeu com a piedade( pg 63)
Pagu tornou-se uma militante, e ela nos confessa as dificuldades que ela tinha de entender as concepções materialistas do marxismo, que no seu modo de ver era povoado de lugares-comuns, conceitos pouco claros, e, porque não dizer, de falsas interpretações. Pagu não pensava em uma concepção de mundo. Sua concepção era a da entrega total:
“A concepção materialista adquirida, cheia de lugares-comuns, chapas, conceitos, falsas interpretações – nunca tivera ou pensara em outra concepção do mundo –, criou em mim resoluções novas. Grande confusão de materialismo com mecânica. Eu não devia estar de acordo com minhas concepções. Mulher materialista. Mulher de ferro com zonas erógenas e aparelho digestivo. O circulatório não tinha importância, porque trabalhava automaticamente. Não precisava pensar nele, a não ser para descobrir isoladores e lubrificantes amortecedores. Problemas cerebrais intentavam diminuir a intensidade emotiva.” ( p. 70)
Pagu escreve dentro da prisão, mas ela não se fixa em relatar o cotidiano de uma presa política. A concretude das grades não a prende, a revisão de vida é uma libertação do PCB como referência única do pensamento de esquerda.
Inicialmente, Pagu admite que sua militância começou como algo exibicionista. Aos poucos, ela sentiu a necessidade de se dedicar a uma causa, e a defesa dos oprimidos era uma causa nobre que acabou sendo um objetivo de vida. Uma finalidade de vida, algo que a absorvesse por completo. Quando conheceu Luís Carlos Prestes em Montevidéu, viu nesse homem alguém que encarnasse esse ideal, somado à ideia de fraternidade e espírito de sacrifício.
“Não havia muita convicção. Mas muito entusiasmo. Entusiasmo sem discrição, mais de revolta acintosa. Vontade de adesão exibicionista de minha parte por uma causa revolucionária. Necessidade.” (pg 74)
Aos poucos, essa doação foi crescendo. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo sem injustiças sociais. Por um mundo verdadeiro, tudo isso valia a pena, valia a vida. Amor e dor:
“No fundo, talvez sentisse alegria com o sofrimento que era proporcionado por minha luta” (p. 91)
Pagu relembra os momentos que o partido se intrometia na sua vida particular e familiar com o filho Rudá e com Oswald de Andrade. Precisando ter um pouco mais de apuro intelectual, encontrou em Astrogildo Pereira o seu grande mentor no quesito marxismo teórico.
“ A ação me fazia falta. As teses isoladas irritavam-me. Era necessário concretizar. A inquietação aparecia. Precisava participar dessa realização. Fazer qualquer coisa. Produzir. Além disso, a doutrina tão dogmatizada não me satisfazia muitas vezes ou havia falta de compreensão” ( pg 77)
O Partido tornou-se uma forma de escapismo da vida burguesa que ela viveu na sua família. Era uma forma de não retornar à casa dos pais. Sua dedicação foi de uma forma inteira e absoluta. Era no Partido onde ela poderia se sentir pertencida.
Se o Partido precisasse de mim, deixaria de lado qualquer experiência, qualquer aspiração. A minha vida não ali em casa. Eu já não me pertencia( pg114)
Um dos momentos que chamaram a minha atenção foi quando o Partido, por ela ter a fama de mulher independente, a nomeou para trabalhos de espionagem que envolviam sedução e sexo. Rebaixada em sua liberdade, ela perde as ilusões e se entrega em troca de informações, sendo tratada como prostituta.
Vendo que a possibilidade de ser presa era muito clara, o Partido manda Pagu para a Rússia via Mandchuria, onde ela vai a China e ao Japão.
Um momento que eu pessoalmente desconhecia era um tipo de O modus operandi do Partido Comunista Brasileiro (PCB), como, por exemplo, o Comitê Fantasma:
“ E pouco a pouco fui percebendo o verdadeiro caráter e as atribuições do Comitê Fantasma.
Muita gente já ouviu falar nessa organização anexa ao partido. Muitos membros, muitos comunistas duvidavam de sua existência e ainda muitos outros deturpavam suas atribuições. Ninguém sabia que o Comitê, já naquele tempo, tinha suas ramificações no centro da malandragem carioca. Ninguém sabia das ligações que fariam abrir as bocas dos “militantes decentes” da honrada vanguarda proletária brasileira. Batedores de carteira, caftens, assaltantes tudo ligado ao PCB. Os malandros do mangue não percebiam que, a seu lado, participando das roubalheiras, estava um membro do PCB. Nem a prostituta que apanhava não sabia que estava concorrendo para alimentar a propaganda comunista no Brasil, não sabia que estava pagando a pensão de um dirigente ou a viagem de um funcionário que precisava, para bem da ilegalidade, embarcar em primeira classe e alimentar a bordo a aparência de um burguês endinheirado.” ( pg 123)
À medida que vamos lendo sua autobiografia, Pagu faz questão de desfazer do mito de si mesma, despindo as imagens de Oswald, Tarsila e Raul Bopp, que recitava poemas de apelo erótico no Teatro Municipal. E torna-se inevitável não sentirmos a sua dor, o seu sofrimento. Uma leitura de uma mulher que se experimentou, não teve medo de ousar, mas que pagou caro pelas escolhas que fez. E ao mesmo tempo torna-se impossível não nos apaixonarmos por Pagu.
Sua vida já foi imortalizada no teatro, no cinema e na televisão. O que faz de “Paixão Pagu. A Autobiografia de Patrícia Galvão” um livraço que merece um lugar de HONRA na sua estante.