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É isto um homem?

Às vezes ouço em algumas conversas pessoas dizendo que não aguentam mais ouvir falar sobre o assunto Holocausto. Confesso que não tenho muito saco para contra-argumentar esse tipo de enfado superficial. Prefiro argumentar trazendo livros como “É isto um homem?”, de Primo Levi, para discutir, sim, esse assunto, que para mim é muitíssimo importante. Considero primordial.

 

Dostoievski afirmou certa vez: “Temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento”.

 

E você, leitor deste espaço, alguma vez já se perguntou se você é digno do seu tormento.

 

“Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer “infinito”. Assim, opõe-se a esta realização o insuficiente conhecimento do futuro, chamado de esperança no primeiro caso e de dúvida quanto ao amanhã, no segundo. Assim, opõem-se as inevitáveis lides materiais que, da mesma forma como desgastam o tempo toda a felicidade, desviam a cada instante a nossa atenção da desgraça que pesa sobre nós, tornando a sua percepção fragmentária e, portanto, suportável” (pg 18)

 

O livro “É isto um homem?”, que começou a ser escrito quando Primo Levi foi deportado para Auschwitz em 1944, não traz nada de novo, apenas descreve certos aspectos da alma humana, assegurando que nenhum fato foi inventado. Este livro teve como finalidade libertá-lo de todas as suas reflexões feitas ao longo de sua permanência naquele que ficou sendo o mais conhecido campo de concentração: Auschwitz. Por isso, considero o livro filosófico, uma reflexão sobre a condição humana dentro de uma situação limite.

 

Primo Levi nasceu em Turim no final de julho de 1919. Filho de uma família liberal judaica, formou-se em química pela Universidade de Turim, graduando-se com honras em 1941. Sua formação antifascista o levou a se envolver com política. Com a ocupação nazista após a queda de Mussolini, juntou-se ao movimento de resistência italiano, mas acabou preso e detido. Quando souberam que era judeu, acabou sendo enviado para Auschwitz. Dos cento e cinquenta judeus que foram transferidos para o famigerado campo de Auschwitz, o mais famoso deles, apenas vinte sobreviveram. Primo Levi observa que a esperança média de vida em um campo de concentração nazista era de três meses. Desde as primeiras páginas do livro, o projeto essencial dos campos é desnudado.

 

Nas palavras de Levi “a demolição do homem”. Isso se dava a partir da privação, da destruição das esperanças. Um homem reduzido ao pão, às raspas de uma tigela de sopa, para o confinamento em uma cama estreita, com um estranho que mal fala a sua língua. E a falta de lógica, muitas vezes em odiar um colega vítima da mesma opressão.

 

O julgamento crítico de Primo Levi não se limita aos nazistas, mas abrange outros presos. Sem nenhuma autopiedade registra a sua história pessoal e social do dia a dia do campo. Apesar de sofrer de fome perpétua, exaustão e frio, Levi encontra algum motivo de esperança: admirava seu amigo Alberto, que mantinha a sua integridade, em momentos inesperados da natureza como, por exemplo, a simples chegada da primavera.

 

“Alberto é o meu melhor amigo. Tem apenas 22 anos (dois a menos do que eu), mas nenhum de nós, italianos, revelou capacidade de adaptação semelhante à dele. Alberto entrou no campo de cabeça erguida e vive no campo ileso, íntegro. Foi o primeiro a compreender que esta vida é uma guerra; não fez concessões a si mesmo, não perdeu tempo com recriminações ou compadecendo-se de si próprio e dos outros; foi à luta desde o primeiro dia. Ajudam-no sua inteligência e sua intuição; raciocina e acerta; às vezes não raciocina e acerta também. Percebe tudo num instante; fala apenas um pouco de francês, mas compreende o que lhe dizem alemães e poloneses. Responde em italiano e, com gestos, se faz compreender e se torna simpático a todos. Luta pela vida, mas é amigo de todos. ”Sabe” quem subornar, quem evitar, quem poderá mover-se à compaixão, a quem deve resistir” (pg81)

 

Embora ilegal, o comércio no mercado negro do campo é abundante e vital para a sobrevivência. Presos trocavam qualquer coisa de valor por rações extras. Primo Levi divide os presos em duas categorias: afogados e sobreviventes. Os sobreviventes são aqueles capazes de encontrar posições de autoridade, elevando-se acima dos presos. Os afogados, são os enfraquecidos pela fome e pela exaustão, tornam-se “muçulmanos” e morrem rapidamente. O termo “muçulmano” era utilizado pelos internos dos campos de extermínio para designar a pessoa que atingia um estágio de completa perda de consciência, da espontaneidade e de qualquer vontade de viver.

 

“A história – ou melhor, a não história – de todos os “muçulmanos” que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente acompanham a descida até o fim, como arroios que vão até ao mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se; ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoronara e nada mais poderá salvá-lo da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso, são eles os “muçulmanos” os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima continuamente renovada e sempre igual, dos não homens que marcham e se esforçam em silêncio; já que se apagou neles a centelha divina, já estão vazios, que nem podem mais sofrer. Hesita-se em chamá-los de vivos; hesita-se chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para compreendê-la.” (pg131, pg132)

 

Na passagem citada, os prisioneiros de Auschwitz perderam, por completo, a própria essência de vida humana em decorrência da humilhante condição a que foram submetidos, ou seja, perderam a capacidade de reagir, de revoltar-se, de temer. Tornaram-se, naquele espaço, seres autômatos, sem iniciativa ou capacidade de responder a nada .

 

A pergunta que fica é: “É isto um homem?”

 

Em outra passagem, Primo Levi nos mostra como a posição do Kapo tornou-se um dos dificílimos caminhos para a sobrevivência. Nesse trecho, o termo “proeminentes” identifica os funcionários do campo. Os “proeminentes” judeus constituem um triste e notável fenômeno. Convergem neles os sofrimentos presentes, passados e atávicos e a hostilidade ao estrangeiro, assimilada por tradição e educação, para fazerem deles monstros de insociabilidade e insensibilidade.

 

“São típico produto da estrutura do Campo de Concentração alemão: basta oferecer a alguns indivíduos em estado de escravidão uma situação privilegiada, certo conforto e uma boa probabilidade de sobrevivência, exigindo em troca a traição da natural solidariedade com os companheiros, e haverá por certo quem aceite. Ele subtraído à lei comum e se tornará intangível; será então, tanto mais odioso e odiado quanto maior for o poder a ele concedido. Quando lhe for confiado o comando de um grupo de infelizes, com direito de vida e morte sobre eles, será cruel e tirânico, bem sabendo que, se não de aberrações e compromissos. A não ser por grandes golpes de sorte, era praticamente impossível sobreviver sem renunciar a nada de seu próprio mundo moral; isso foi concedido a uns poucos seres superiores, da fibra dos mártires e dos santos” (pg 135, pg 136)

 

Nessas descrições acerca dos “kapos” e de suas funções e poderes, podemos compreender a total ausência de qualquer humanidade do ser humano, quando o ódio aos guardas da SS tornou-se cumplicidade. Essa degradação completou-se nos “Sonderkommandos”, que eram grupos especiais que cuidavam da gestão dos fornos crematórios. Meticulosamente administrado pelos nazistas, o emprego de prisioneiros nessas tarefas tinha uma dupla finalidade.

 

A primeira finalidade era poupar os guardas da SS desse tipo de trabalho. A segunda finalidade era transferir para as próprias vítimas o pesado fardo do assassinato. A participação nessa dura função transforma os próprios judeus em autores de sua própria destruição. Para isso, o isolamento do campo em relação ao mundo exterior torna-se essencial, pois potencializa um processo de degradação ética com o objetivo de retirar tudo que é de humano das vítimas.

 

O livro nos convida a refletir os significados que a palavra extermínio ganhou no campo. A própria figura do “muçulmano”, que pode ser traduzido como “cadáver ambulante”, aquele que perdeu qualquer traço de dignidade, representava a morte moral. Impossível de se distinguir, nele, o homem do não homem, algo descolado de sua humanidade biológica.

 

“Desejaríamos, agora, convidar o leitor a meditar sobre o significado que podiam ter para nós, dentro do Campo, as velhas palavras “bem” e “mal”, “certo” e “errado”. Que cada qual julgue, na base do quadro que retratamos e dos exemplos que relatamos, o quanto de nosso mundo moral comum poderia subsistir aquém dos arames farpados” (pg125, pg126)

 

Quando lemos o livro “É isto um homem?” de Primo Levi, podemos, através do poder revelador de sua narrativa, sentir, visualizar os horrores infligidos às vítimas do infortúnio nos campos nazistas.

 

A pergunta feita por Dostoievski foi respondida, ou seja, Primo Levi foi muito digno de todo o tormento que viveu em Auschwitz. Por isso, indico “É isto um homem?” como um livro poderoso e que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Biografias


< O eleito Em busca de sentido >
É isto um homem?
autor: Primo Levy
editora: Rocco
tradutor: Luigi Del Re

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