O homem e as armas
A todos que seguem este site, introduzo mais um autor fascinante. Seu nome: Bernard Shaw.
George Bernard Shaw foi um autor, dramaturgo, crítico musical e ativista irlandês, além de ter sido o fundador da London School of Economics. Nascido em Dublin, na sua juventude interessou-se pelo socialismo, e ao longo de sua vida, como ativista, criticou de uma maneira veemente a exploração da classe trabalhadora. Em 1890, começou a escrever peças, e seus escritos sempre continham elementos de crítica sociocultural.
Escreveu mais de 50 peças além de artigos e resenhas, ensaios e panfletos. Em 1900, sua popularidade começou a aumentar quando tornava-se um dramaturgo famoso e respeitado. Em 1925, foi reconhecido por seu trabalho, sendo indicado ao Prêmio Nobel, mas recusou, afirmando: "Recusei o prêmio por estar suficientemente rico".
Casou-se com uma ativista política irlandesa chamada Charlote Payne Townshend, e foi morar numa mansão londrina. A partir de 1905, Bernard Shaw passou a produzir intensamente. George Bernard Shaw faleceu em Ayot Saint Lowrence, Inglaterra, no dia 2 de novembro de 1950. Em seu testamento, pediu que suas cinzas e as de sua mulher fossem jogadas pelo jardim de sua mansão. Sua casa hoje está aberta para visitação.
O final do século XIX marcou a ascensão do socialismo, do marxismo e o agravamento das divisões de classe, bem como uma mudança na literatura e na arte para longe do romantismo, que não parecia mais adequado para descrever ou dar sentido à realidade. Este foi o início do período modernista, onde várias formas de arte inovariam rapidamente na tentativa de descrever e retratar uma realidade mais complicada, mostrar vários lados das coisas ao mesmo tempo e de alguma forma capturar as nuances da vida e da experiência humana.
A peça “O Homem e as Armas” faz referências à literatura romântica – os romances românticos de Raina e Sergio que é retratado na história como um herói de guerra. A literatura romântica celebrava a emoção intensa, o individualismo heroico, a irracionalidade e a natureza. A peça sugere que a literatura romântica simplifica a existência humana, glorificando as dramáticas realizações humanas no amor e na guerra sem reconhecer as realidades horríveis que também estão presentes, tanto na nobreza como na guerra.
“O Homem e as Armas” foi escrito no início de 1890, na Irlanda, é uma comédia e o cenário é a Bulgária. Vamos à história?
Quando a peça começa, vemos duas personagens, Catarina e Raina, falando das façanhas gloriosas de Sérgio Saranoff durante seu ousado e magnífico ataque de cavalaria na guerra dos sérvios contra os búlgaros, que acabou com a vitória dos búlgaros.
“Raina: Que valor dará à minha pobre adoração depois de receber aclamações de todo exército de heróis? Mas não importa: sinto-me tão feliz! Tão orgulhosa! (levanta-se e anda em plena excitação. Isso prova que as nossas ideias estavam certas, afinal de contas...
Catarina: as nossas ideias! (com indignação). Que é que quer dizer com isso?
Raina: Nossas ideias sobre o que Sérgio seria capaz de fazer... Nosso patriotismo, nossos ideais heroicos. Algumas vezes eu costumava a perguntar para mim mesma se eles eram simples sonhos...Oh, que criaturinhas sem fé as moças poder ser! Quando prendi ao talim a espada de Sérgio, ele me pareceu tão nobre!
Nesse momento, ao menos seria traição pensar em fracasso, em humilhação, em derrota. E, contudo...e, contudo... (senta-se, subitamente). Prometa-me que nunca lhe dirá...” (22; pág. 23)
Quando a peça começa, com Catarina entrando no quarto de Raina Petkoff, sua filha acaba de ouvir que os búlgaros conseguiram uma tremenda vitória graças a um ataque da cavalaria liderado por Sergio Saranoff, que se encontra no mesmo regimento que o pai de Raina, major Petkoff.
Raina está impressionada com os atos nobres de seu noivo. Nesse momento, aparece Liuka, a empregada, entrando correndo com a notícia de que os sérvios estão sendo perseguidos pelas ruas e que é necessário trancar a casa e todas as janelas. Raina promete fazê-lo mais tarde, e Liuka vai embora. Raina lê na cama, são ouvidos tirou e barulhos estranhos vindos da janela da varanda. Ela vê um soldado inimigo sujo com uma arma que a ameaça matá-la se ela se mexer. Eles trocam algumas palavras, quando do lado de fora Liuka diz que vários sodados querem revistar a casa. Quando Raina ouve a notícia, ela se volta para o soldado que acabara de entrar. Ele diz que está preparado para morrer, mas certamente planeja matar alguns soldados búlgaros em seu quarto antes de morrer.
Em uma ousadia, ela esconde o soldado, ela se senta nervosa, e descobre que a arma do soldado não está carregada.
“O Homem: Não tenho balas. Que adiantam cartuchos numa batalha? Em vez disso eu levo sempre barras de chocolates. Acabei de comer minha última barra há duas horas atrás.
Raina: (vendo por terra seus mais altos e caros ideias de masculinidade) – Chocolate! Quer dizer que enche os bolsos de bombons, como um colegial, mesmo nos campos de batalha?
O Homem: é verdade sei que devo parecer desprezível. (faminto). Mas bem gostaria de ter ainda uma barra de chocolate agora comigo.
Raina: - Com licença... (sai desdenhosamente vai à gaveta da cômoda e volta com uma caixa de bombons) – Sinto muito ter comido quase todos, exceto estes. (oferece-lhe a caixa) (pág. 31)
Ele explica que, em vez de carregar balas, ele sempre carrega chocolates para a batalha. Além disso, ele não é um inimigo; ele é um suíço, um soldado profissional contratado pela Sérvia. Raina acaba salvando a vida dele. Agora que os soldados búlgaros se foram, Raina quer que o "soldado creme de chocolate" (como ela o chama) desça de volta pelo cano, mas ele se recusa; enquanto ele poderia subir, ele não tem forças para descer.
Raina: (já sem argumento) – Mas que devo fazer com o senhor?
O Homem (tocado pelo desespero dela) – Bem é verdade...Eu devo fazer alguma coisa( faz um esforço sobre si mesmo, reanima-se, fala agora com vigor e com coragem) – Como vê, sonolento ou sem sono, faminto ou sem fome, cansado ou sem fadiga, pode-se sempre fazer alguma coisa, quando alguma coisa precisa ser feitas. Bem, é preciso descer pelo encanamento. (bate no seu próprio peito.) – Ouviu bem, seu soldado de chocolate? (volta-se para a janela) (pg35)
Quando Raina vai atrás de sua mãe para ajudar, o “soldado de chocolate” rasteja para a cama de Raina e adormece instantaneamente. Ele dorme tão profundamente que eles não conseguem acordá-lo.
O Ato II começa quatro meses depois que a guerra havia acabado. O servo de meia-idade Nicolau está ensinando a Liuka sobre a importância de ter o devido respeito pela classe mais alta, mas Liuka tem uma alma independente demais para ser uma empregada. Ela tem planos mais altos para si mesma do que casar com Nicolau, o qual ela insiste que tem alma de servo. O major Petkoff chega em casa da guerra, e sua esposa Catarina o cumprimenta com duas informações: ela sugere que a Bulgária deveria ter anexado a Servia, e ela lhe diz que lhe instalou uma campainha elétrica na biblioteca.
O major Sérgio, noivo de Raina e líder da bem-sucedida arma de cavalaria, chega e, no decorrer da discussão sobre o fim da guerra, ele e o major Petkoff contam a famosa história de como um soldado suíço escapou subindo uma sacada e entrou no quarto de uma nobre mulher búlgara.
Quando as mulheres que estavam na sala ouviram aquele papo, ficaram chocadas. Afinal, como uma história tão grosseira como aquela relatada pode ser contada na frente delas? Quando os Petkoffs entram na casa, Raina e Sérgio declaram-se um para o outro, revelando mutuamente que haviam descoberto o “amor maior”.
Enquanto Raina sai para buscar o chapéu para dar um passeio, aparece Liuka. Sérgio diz para ela como é cansativo viver um “amor maior”. Quando ele acaba de desferir essa frase, ele tenta abraçar a atraente empregada. Quando ele acaba de dizer isso, Liuka maliciosamente diz:
“Liuka: Não... Não quero os seus beijos... Todos os aristocratas são assim. O senhor me namora as ocultas da senhorita Raina e ela lhe paga com a mesma moeda, namorando outros, quando o senhor vira as costas.
Sergio: (recuando um passo) Liúka!
Liúka: isso mostra quão pouco estão ligando
Sergio: Se nossa conversação deve continuar, Liùka, você deve antes de mais nada convencer-se de que um cavalheiro não discute a conduta de sua noiva com uma criada...
Liúka: É tão difícil saber quando um cavalheiro tem razão! Pensei que uma vez que queria beijar-me, bem podia deixar de hipocrisia
Sérgio: (afastando-se dela e batendo a cabeça, ao mesmo tempo que volta ao jardim, simulando fazê-lo como vindo do lado oposto) – Diabo! Diabo!
Liúka (rindo): Ah! ah! Espero que um dos outros Sergios que moram no seu corpo sejam como eu, embora eu seja apenas a criada da senhorita Raina... (volta ao seu trabalho na mesa, não tomando mais conhecimento dele)
Sergio (de si para si): Qual deles será o verdadeiro Sergio? Eis a questão que me atormenta. Um deles é um herói. Outro é um palhaço. Outro é um trapaceiro. Outro é talvez é talvez um tanto ou quanto chantagista. (pausa. Olha furtivamente para Liúka e acrescenta com profunda amargura). Um pelos meninos é um covarde, - e ciumento, como todos os covardes. (Vai para a mesa) – Liúka...
Liúka: Senhor?
Sérgio: Quem é o meu rival
Liúka: O senhor nunca me arrancará esse segredo, seja o amor, seja por dinheiro.” (pg53)
Liúka diz que Raina está tendo um caso enquanto Sérgio estava fora, mas ela se recusa a dizer a Sérgio quem é o amante de Raina. Liúka acredita que ele está se aproveitando dela porque ela é uma serva, e diz a ele que não acredita que ela e ele sejam diferentes simplesmente porque ele é rico e ela é pobre.
Assim que Liúka e Sérgio separam-se, surge um novo complicador. Surge em cena o capitão Bluntschli, que chega para devolver um casaco que lhe foi emprestado na manhã seguinte ao descanso em casa. Catarina tenta impedir de ser visto, mas o major Petkoff (pai de Raina) o reconhece e o convida para entrar. Foi ele que ajudou nas negociações finais da guerra. Afinal, quem seria esse capitão Bluntschil?
Instantaneamente, todos sabem quem é o capitão Bluntschil: é o “soldado de chocolate”, aquele que que veio para devolver o velho casaco do major que o ajudou a escapar quando estava no quarto de Raina. Quando todos na casa reconhecem Bluntschil, todos pensam em mandá-lo embora com medo das consequências. O major Petkoff insiste para que ele permaneça até que ele volte para a Suíça.
O Ato III começa após o almoço que acontece na biblioteca. O capitão Bluntschill está cuidando de uma grande quantidade de papelada de uma maneira eficiente. O major Petkoff reclama do desaparecimento de um casaco, mas naquele momento Catarina toca o sino da biblioteca, pede que Nicolau pegue o casaco do major. Enquanto isso, Raina encontra com o capitão Bluntschill e ficam a sós. Ela o elogia por estar tão bonito depois de vê-lo em situação vulnerável durante a guerra. Agora ele está lavado e escovado. Um outro homem.
Os dois conversam até que em determinado momento Raina revela que havia deixado uma foto no bolso da jaqueta que ela dera para ele escapar:
Bluntschli: Oh, não minha cara jovem... Não, não, um milhão de vezes não. Isso faz parte de sua juventude. Faz parte de seus encantos. E eu sou como todos os outros. Como a ama, como seus pais, como Sergio... Sou um de seus ardentes admiradores.
Raina (satisfeita) Realmente?
Bluntschli: (batendo no peito com uma das mãos, à maneira germânica) – Hands aufs Herz! Realmente e verdadeiramente.
Raina: (muito contente): Mas que acha do meu gesto, dando-lhe meu retrato?
Bluntschli: (atônito)- Seu retrato? Não me lembro que me tenha dado.
Raina (depressa) Quer dizer que nunca chegou às suas mãos?
Bluntschli: Não (senta-se diante dela, com renovado interesse e com alguma complacência) Quando foi que me enviou esse retrato?
Raina: (indignada)Eu não lhe enviei. (vira a cabeça para outro lado e ajunta com relutância. Estava no bolso do casaco de papai. (pg70; pg71)
Raina se diverte; ela diz que Bluntschli é a primeira pessoa a ver além de suas pretensões, mas fica perplexa por ele não ter apalpado os bolsos do casaco velho que ela lhe emprestou; ela havia colocado uma foto sua com a inscrição "Para meu soldado de creme de chocolate". Nesse momento, um telegrama é trazido a Bluntschli relatando a morte de seu pai e a necessidade de ele voltar imediatamente para casa para providenciar os seis hotéis que herdou.
Os dois saem da sala e Liúka entra e mostra um hematoma. Sérgio também entra e Liúka pergunta se Sérgio pode curar aquele hematoma com um beijo. Liúka questiona a verdadeira bravura de Sérgio; ela pergunta se Sérgio teria a coragem, a bravura de se casar com uma mulher socialmente abaixo dele, mesmo que ele a amasse.
“Liúka: É muito fácil falar! Os homens não crescem nunca... Tem sempre a mentalidade de colegiais... O senhor não sabe o que é a verdadeira coragem.
Sérgio: Eu não sei? (ironicamente) Pois estou desejando ser instruído.
Liúka: olhe para mim! Quantas oportunidades eu tenho de afirmar minha própria vontade? Tenho que preparar o quarto para o senhor. Tenho que varrer e espanar. Tenho que arrumar a louça eu tudo isso em seu benefício? Mas (com paixão) – se eu fosse a imperatriz da Rússia acima de todo mundo, então...então o senhor veria... em bora, de acordo com suas ideias, eu não seja capaz de mostrar a menor coragem...
Sergio: Que faria nobilíssima imperatriz?
Liúka: casaria com o homem a quem amo, o que nenhuma outra rainha da Europa teria coragem de fazer...” (pg75; 76)
Nesse momento Liúka acaba revelando quem é o seu rival e que Raina pretende se casar com ele. Sérgio não se aguenta e fica furioso. Ele vê Bluntschli e imediatamente o desafia para um duelo. Ele tenta sair daquela saia justa quando chega Raina e acusa Sérgio de fazer amor com Liúka. Enquanto eles discutem, Bluntschli pergunta a Liúka, que estava escutando na porta. Ela é trazida por Sérgio, que pede desculpas a ela, beija sua mão e, assim, eles ficam noivos. Bluntschil pede permissão para se tornar pretendente da mão de Raina, e, quando ele lista todos os bens que possui (duzentos cavalos, 9600 pares de lençóis, dez mil facas e garfos, etc.), a permissão para o casamento é concedida, e Bluntschli diz que voltará em duas semanas para se casar com Raina.
Raina: (sucumbindo, com um sorriso acanhado) – Ao meu soldado de chocolate! (pg 88)
Ao longo da peça, Bernard Shaw satiriza as glórias associadas à guerra e, em última análise, sugere que as pretensões aristocráticas não têm lugar. O gerenciamento é o fator fundamental para se vencer uma guerra, e Bluntschli era um perito.
Um dos momentos que comprovam sua eficiência se dá quando Bluntschli foi capaz de dispensar um exército para outra cidade com facilidade, enquanto isso foi um feito que deixou os aristocratas (major Petkoff e Sérgio Saranoff) completamente perplexos. A peça desfaz o mito do “amor superior” que Raina e Sérgio afirmavam compartilhar. A peça mostra que o homem prático que vive sem ilusões e sem visões poéticas sobre o amor ou a guerra é mostrado como um ser superior.
“O Homem e as Armas” não é um livro fácil de ser achado nas livrarias. Mas, caso você ache, vale muito pena ler. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.