A consciência de Zeno
O livro “A consciência de Zeno” já começa bem apresentado através do prefácio escrito pelo jornalista, escritor e poeta José Nêumanne Pinto. E como se não bastasse, termina com o posfácio do professor e ocupante da cadeira de Número 12 da Academia Brasileira de Letras, Alfredo Bosi, que também dispensa comentários. Esse destaque é merecido pois contribui para a plena compreensão da história
Italo Svevo, na verdade é um pseudônimo, o nome original do autor era Aaron Ettore Schimitz, nascido em Trieste. Filho de judeus praticantes, mas não carregavam a ortodoxia na alma. De tanto que Ettore acabou casando-se com uma católica convertida, e um tanto a contragosto, acabou também se convertendo ao catolicismo. Seu pai natural da Renânia começou a vida como um mascate e acabou tornando-se um bem sucedido negociante de artigos de vidro, sua mãe vem de uma família judia de Trieste. O pai de Svevo - uma influência dominante em sua vida - mandou os filhos para um colégio interno de comércio na Alemanha, onde em suas horas vagas Svevo mergulhou nos românticos alemães. Não obstante, as vantagens que seu aprendizado alemão podia trazer a seus negócios no Império Austro-Húngaro, acabaram por privá-lo de uma formação literária italiana.
Trata-se de uma obra simplesmente hilariante, muito divertida, inventiva, e seu humor aparece na narrativa em um tom de desabafo de Zeno ao seu psicanalista. Essa modernidade inscrita no personagem se mostra através da passividade do herói e da introspecção de um neurótico encantador. É uma leitura vinda do interior de um homem já no fim da vida, um bem sucedido empresário de Trieste (norte da Itália), que decide fazer um balanço de suas experiências no divã de um analista. Deitado no sofá, ele começa reavaliar a sua trajetória, tanto no passado, como no presente, e observar alguns fracassos de sua história como: o casamento com uma mulher que não escolheu, o trabalho que não lhe agradava, as inúteis tentativas de parar de fumar. O processo de escavação de seu passado e das impressões pela memória é submetido a uma visão implacável, irônica e, às vezes, hilariantes de Zeno – que aos poucos se liberta da sua doença, mas continuando preso às suas neuroses.
Ítalo Svevo brinca com as armadilhas da memória, mostrando que as nossas lembranças não passam de um gênero de ficção. Publicado no ano de 1923, o homem narrado nesse romance será marcado por frustrações, rodeado pelo vazio e atormentado pelas angústias de viver. Assim é Zeno Cosini, nosso protagonista, que utilizará vários artifícios e máscaras ao longo da narrativa de suas memórias, procurando o tempo todo se ocultar e se disfarçar. O que há de verdade consciente ou verdade inconsciente em seu relato? Junta-se a isto, uma outra armadilha criada pelo autor, o personagem chamado “Doutor S” (mais uma brincadeira do autor que utiliza a ambigüidade da letra "S” de “Svevo”, seu sobrenome, ou de “Sigmund”, remetendo a Freud). Logo na primeira página encontramos a seguinte narrativa:
“Sou o médico de quem às vezes se fala neste romance com palavras pouco lisonjeiras. Quem entende de psicanálise sabe como interpretar a antipatia que o paciente me dedica. Não me ocuparei de psicanálise porque já se fala dela o suficiente neste livro. Devo escusar-me por haver induzido meu paciente a escrever sua autobiografia; os estudiosos de psicanálise torcerão o nariz a tamanha novidade. Mas ele era velho, e eu supunha que com tal evocação o seu passado reflorisse e que a autobiografia se mostrasse um bom prelúdio ao tratamento. Até hoje a idéia me parece boa, pois forneceu-me resultados inesperados, os quais teriam sido ainda melhores se o paciente, no momento crítico, não se tivesse subtraído à cura, furtado-me assim os frutos da longa e paciente análise destas memórias. Publico-as por vingança e espero que o autor se aborreça. Seja dito, porém, que estou pronto a dividir com ele os direitos autorais desta publicação, desde que ele reinicie o tratamento. Parecia tão curioso de si mesmo! Se soubesse quantas surpresas poderiam resultar do comentário de todas as verdades e mentiras que ele aqui acumulou!... Doutor S. (pg. 11)
No início, uma dúvida aparece: afinal, quem escreveu a autobiografia de Zeno? O Doutor S nos dá a clara impressão de ser uma espécie de editor que lê, analisa e julga o que foi escrito, apontando as verdades e as mentiras que o narrador coloca em sua biografia. E qual deles escreveu a biografia: Zeno ou Svevo ou Sigmund? A sensação é que há uma brincadeira de sentidos e interpretações com o leitor atento e com o desatento.
Esta obra considerada como uma das precursoras do romance moderno e também “o primeiro romance psicanalítico”, pois faz uma aproximação entre aspectos da literatura a partir do século XX e transfere a atenção da análise psicológica da tradição realista às lições de Freud. A História de Zeno Cosini não é o resultado final de acontecimentos exteriores, mas a análise que o personagem faz de si mesmo embora as incursões sempre dêem margem à ironia, uma vez que a obra é uma grande crítica à psicanálise e suas pretensões.
Zeno acaba por se desentender com seu psicanalista, que publica como vingança! – numa atitude antiética e antiprofissional, sua autobiografia. As situações mostram a total falta de controle do personagem, não sobre um mundo com o qual se desentende, mas sobre o rumo de sua própria vida.
Outro personagem curioso é Guido Speier, um violinista ridículo, seu concunhado, sócio e rival, tendo desposando Ada, mulher que ele almejava se casar e igualmente inepto para a vida, caindo em falência e morrendo após fingir seu próprio suicídio. Na conclusão do romance, parece que apenas a ruína trazida pela I Guerra Mundial apraz Zeno e lhe traz sinais de redenção. Vemos Zeno, nas últimas páginas do livro, como um pai feliz e extremamente viciado em cigarros.
No final, o leitor poderá observar que o narrador responde ao enigma da vida dizendo que o Freudismo é tão inútil para responder ao enigma da vida quanto qualquer outra filosofia ou guia. Zeno perdoa seu psicanalista dizendo:
“A vida assemelha-se um pouco à enfermidade, à medida que procede por crises e deslizes e tem seus altos e baixos cotidianos. À diferença das outras moléstias, a vida é sempre mortal. Não admite tratamento. Seria como querer tapar os orifícios que temos no corpo, imaginando que sejam feridas. No fim da cura estaremos sufocados”.
Para finalizar, qualifico “A Consciência de Zeno” como uma obra prima atemporal que se recusa a aceitar os clichês, as abstrações, as explicações pseudocientíficas sobre o significado da vida ou a instrução de especialistas sobre como vivê-la. Italo Svevo, longe de ficar triste ou mal-humorado sobre a situação, ri da nossa desesperança e nós rimos com ele.
Uma obra para leitores atentos. Boa Viagem!