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Os Demônios

"A verdade verdadeira é sempre inverossímil, você sabia? Para tornar a verdade mais verossímil precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira".
Stiepan Trofímovitch

Afinal, os anjos existem? Os demônios existem? Para responder a essas questões é preciso dizer que ambos sempre estiveram no imaginário dos grandes escritores. Em Dante Alighieri, Goethe, Thomas Mann e entre muitos outros. Não só na literatura, mas também na pintura esses seres povoaram os corações e as mentes de grandes artistas. Os quadros de Bosch, por exemplo, o inferno e o céu foram divinamente realizados. Mas, no entanto, em “Os Demônios” de Dostoievski, esse ser vindo das profundezas do inferno ganha um “algo mais” que supera e muito as representações pictóricas. Esses demônios não são apenas estéticos, nem poéticos, muito pelo contrário, ganham carne e sangue. Os personagens são absolutamente reais e atuais.

Em nome de Cristo, vários holocaustos foram realizados contra o povo judeu. A Santa Inquisição não nos deixa mentir. Em nome de Alá, pessoas explodem bombas amarradas na cintura e incineram vários inocentes. Em nome do Bolchevismo, vários inocentes foram colocados em campos de concentração e mortos em campos de trabalhos forçados, vítimas da coletivização forçada e das perseguições políticas de Lênin e Stalin. Hitler, na Alemanha, incinerou milhões de judeus e adversários políticos em dezenas de campos de concentração. No Camboja, um milhão de pessoas foi morta sob o regime de Pol Pot ; na China de Mao, milhões perderam suas vidas por causa de um ditador sanguinário. No mês de julho de 2011, o atirador norueguês Breivik, em nome de um nacionalismo tosco liquidou a vida de 78 pessoas, e por aí vamos...

Mas a pergunta ainda persiste: como os demônios aparecem? Como todo demônio, ele sabe se colocar na pele de qualquer um. De um cristão ou islâmico radical, de um comunista, anarquista, socialista ou de um simples psicopata, para isso basta que ele encontre um ambiente fértil: o ambiente onde o descrédito e o niilismo povoam a vontade das pessoas. A descrença é o ambiente ideal para o aparecimento desses seres.

Friedrich Nietszche foi quem primeiro diagnosticou o niilismo como a “doença do século,” e o tomou como eixo temático e problema capital expresso na “Morte de Deus”. O niilismo é a desvalorização dos valores supremos e alcança o seu auge na morte de Deus, marcando o momento no qual se constata a perda de sentido e validade por parte dos valores superiores da cultura do Ocidente. Representa assim, o fracasso de uma interpretação da existência que por muito tempo auxiliou o homem a suportar a sua dor.

 

"O Deus russo já se rendeu a “vodca barata”. O povo está bêbado, as mães estão bêbadas, as crianças estão bêbadas, as igrejas estão vazias, e ouve-se nos tribunais: “um balde de vodca ou duzentas chibatadas”...”(pg. 409 e pg. 410)

É bom pontuar que a idéia de modernidade nasceu dentro de uma concepção cristã de eternidade e que postulará uma perfeição que não está fora, mas dentro da história. O trabalho substituiu a penitência, o progresso substituiu graça e a política a religião. A política moderna é um capítulo da história da religião. Os grandes movimentos revolucionários que tanto influenciaram a história dos últimos dois séculos foram episódios da história da fé: momentos do longo processo de dissolução do cristianismo e a ascensão da moderna religião política.

 

“Aqui, meu caro, uma nova religião está substituindo a antiga, por isso estão aparecendo tantos soldados, e a causa é grande”. (pg. 396)

Foram os jacobinos que pela primeira vez recorreram ao terror como instrumento de aperfeiçoamento da humanidade. Só com os Jacobinos é que se passou a acreditar que o terror de matriz humana pudesse gerar um novo mundo. Os Jacobinos começaram como um clube radical que logo passou a exercer forte influência no encaminhamento da Revolução Francesa. Graças a líderes como Robespierre, que transformaram o terror em parte integrante do programa revolucionário. Influenciados pela crença de Rousseau na inata bondade do homem, os jacobinos acreditavam que a sociedade se corrompera em consequência da repressão, mas podia ser transformada pelo método da força.

O terror era necessário para defender a Revolução perante os inimigos internos e externos, mas também era uma técnica de educação cívica e um instrumento de engenharia social. Rejeitar o terror por motivos morais era imperdoável. Uma forma mais elevada de vida humana estava ao alcance da mão – e até mesmo um tipo mais depurado de ser humano - mas para isso era necessário que a humanidade fosse purificada pela violência. Essa fé na violência foi transmitida para muitas correntes revolucionárias posteriores.

Sobre o contexto desta obra...

Dostoievski começa com uma epígrafe retirada do livro de Lucas do Novo Testamento:

"Quando Jesus encontrou um homem possuído pelo demônio desde muito tempo, e que habitava os sepulcros. E quando viu Jesus prostrou-se diante dele, exclamando, e dizendo com grande voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho de Deus Altíssimo? Peço-te que não me atormentes... E perguntou-lhe Jesus, dizendo: Qual o teu nome? E ele disse Legião; porque tinha entrado nele muitos demônios...E andava ali uma grande manada de porcos; rogaram-lhe que permitisse entrar naqueles porcos. E Jesus permitiu. Tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos, e a manada precipitou-se no despenhadeiro abaixo, para dentro do lago e se afogou..."

Dostoievski não faz por menos e para ele, os espíritos demoníacos se apossaram de uma gentalha sequiosa de poder para lançar a Rússia no abismo.

O título deste romance foi extraído de uma de suas epígrafes que reproduz um excerto do Evangelho de Lucas citada acima onde Jesus exorciza um homem possuído por demônios que se identifica como “Legião”. O romancista sugere com isso o caráter coletivo e ao mesmo tempo anônimo desse demônio que possui ativistas em seu furor sanguinário e desmedido. Com o auxílio do evangelho, Dostoievski combate os demônios Nietchaiev, Bakkhunin e seu “Catecismo de um revolucionário” onde um de seus preceitos dizia: “A nossa tarefa é de destruir, uma destruição terrível, total, implacável, universal”.

O romance foi escrito entre os anos de 1870 e 1872, é um livro difícil e ao mesmo tempo fascinante, podemos desfilar um rosário de elogios, mas esse livro é antes de tudo, profético, sobre os destinos da Rússia, e sobre o século XX e por que não dizer XXI. É uma reflexão sobre uma nova época.

O tema dos Demônios surge com a chegada das ideias racionais e seculares da Europa Ocidental na Rússia vindas do jacobinismo. O romance é baseado em um fato ocorrido, um assassinato real de um ex estudante anarquista que mudou suas convicções e foi considerado um traidor sendo brutalmente assassinado com um tiro na nuca. O caso ficou conhecido como “O caso Nietcháiev”.

Nietchaiev organizou uma série de células revolucionárias compostas de cinco indivíduos que operavam na Rússia durante a década de 1860, em uma organização terrorista chamada “Justiça do Povo”. Seu objetivo era provocar uma revolta em toda a Rússia, em 19 de fevereiro de 1870, aniversário da abolição da servidão na Rússia.

No entanto, a “suposta” revolução sofreu um duro golpe quando Ivanov se opusera aos métodos ditatoriais e questionando os métodos fraudulentos de Nietchaeiv. Este respondeu às acusações de Ivanov, instigando a célula a que pertencia a assassiná-lo. O assassinato levou Nietchaiev a fugir para o exterior, mas ele acabou sendo preso e julgado na Rússia.

E vamos à história do livro...

O cenário inicial é uma sociedade provinciana e a medida que somos apresentados aos personagens, por um retrato físico moral e social carregados de densidade, eles assumem seus lugares gradualmente.

Stiepan Trofímovitch é um intelectual respeitado numa cidade do interior e vive à custa de uma viúva chamada Varvara Pietrovna que confia cegamente nele, considerando-o um intelectual “brilhante”. Podemos dizer que Stiepan Trofínovitch era uma invenção intelectual de Varvara, um sonho por ela inventado. Essa é uma relação que passa longe de algo harmônico , sendo marcada por efusões inesperadas e recolhimentos rancorosos.

Stiepan Trofínovitch é pai biológico de Piotr Stiepánovitch (o Nietchaiev do romance) que se formou no exterior e agora volta como líder de um quinteto clandestino que pretende solapar as bases dessa sociedade - que doente, vive mergulhada no inverno da desesperança liberal – e tomar assim as rédeas em suas mãos, erguendo as palavras de ordem de uma rebelião anarquista.

Na medida em que os personagens nos são apresentados, podemos perceber que muitos deles reaparecerão na Revolução Bolchevique, com a ficção se tornado realidade. F. Piotr, o líder, que tinha o poder geral; Stravoguin que possuía o “Don” do encantamento através de um discurso “humanista”, justo, ético, mas sua prática não condizia em nada com seu discurso, suas motivações eram autoritárias beirando ao asqueroso. Leiam suas palavras:

 

 

 

 

“Os "nossos" não são apenas os que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem. Gente assim só atrapalha. Não concebo nada sem disciplina. Ora, sou um vigarista e não um socialista, eh! eh! Ouça, tenho uma relação de todos eles: O professor que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído do que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro, não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto e a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficiente liberal é dos nossos. Os administradores os escritores, oh, os nossos são muito, um horror, e eles mesmos sabem disso! Por outro lado, a obediência dos colegiais e dos imbecis chegou ao último limite; os preceptores andam cheios de bílis; em toda parte a vaidade atingiu dimensões incomensuráveis, há um apetite feroz, inaudito. Sabe você, sabe você de quantas idéias prontas lançamos mão? Quando saí daqui grassava a tese de Littré, segundo a qual o crime é uma loucura; quando voltei, o crime já não era uma loucura, mas justamente o bom senso, quase um dever – quando nada um protesto nobre.” (pg. 409)

Outro personagem relevante é Erkel, um seguidor fiel das palavras de Piotr que encarnava os ideais da revolução; Chatov seria o (Ivanov) que ao apresentar dúvidas sobre os objetivos e métodos a serem alcançados é brutalmente assassinado; Fiedka Kártorjni, um assassino sempre disposto a matar por uns bons rublos.

Outros personagens que compõe o livro e são também centrais são Kirillov e Chigalióv. Mas deixemos que Chigliakov comente seus planos e suas teorias:

 

 

 

 

"Depois de empenhar minhas energias no estudo da organização da sociedade do futuro, que substituirá a atual, convenci-me de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde os tempos mais antigos até o nosso ano de 187..., foram sonhadores, fabulistas e tolos, que se contradiziam e não entendiam nada de ciências naturais nem desse estranho animal que se chama homem. Platão, Fourier são colunas de alumínio – tudo isso só serve para pardais, e não para a sociedade humana. Mas como a forma social do futuro é necessária precisamente agora, quando finalmente nos preparamos para agir sem vacilações, então proponho meu próprio sistema de organização do mundo.”

 

 

“...Partindo da liberdade ilimitada, chego ao despotismo ilimitado. Acrescento, não obstante, que não pode haver nenhuma solução da fórmula social a não ser a minha.” (pg. 391)

Podemos dizer que estão nesse discurso as bases do socialismo científico de Stalin.

O personagem do romance, Chigáliov, um importante teórico da organização, esboça sua teoria de sociedade “ideal”:
 

“No esquema de Chigáliov, cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Todos são escravos e iguais na escravidão,..., mas o principal é a igualdade. A primeira coisa que fazem é baixar o nível da educação, das ciências e dos talentos. Os talentos superiores sempre tomaram o poder e foram déspotas,...e sempre trouxeram mais depravação que utilidade; eles serão expulsos ou executados. A um Cícero corta-se a língua, a um Copérnico furam-se os olhos, um Shakespeare mata-se a pedradas – eis a doutrina de Chigáliov”.

E tem mais:
 

“Os escravos devem ser iguais: sem despotismo ainda não houve liberdade nem igualdade, mas na manada deve haver igualdade, e eis aí o chigaliovismo”.

E ainda, nas palavras de outra personagem:
 

“Conheço o chigaliovismo. Um décimo dos homens ganham liberdade e o direito ilimitado sobre os outros nove décimos. Estes devem perder a personalidade e transformar-se numa espécie de manada e, numa submissão ilimitada, atingir uma série de transformações da inocência primitiva, uma espécie de paraíso primitivo, embora, não obstante, continuem trabalhando...”.

Dostoieveski em “Os Demônios” faz um acerto de contas com o pensamento niilista e revolucionário professado pelos intelectuais infiltrados na sociedade russa, denunciando o papel dessa intelectualidade que, voltada para o materialismo utilitarista, despreza os valores identificados com a cultura e as tradições religiosas russas. É importante falarmos aqui sobre mais um ponto: sobre o papel do narrador em toda essa história. O narrador qualifica seu relato como uma crônica, ele é um narrador personagem, pois goza de informações privilegiadas, de testemunhas e vai preenchendo as lacunas da trama, ele é conhecido por todos e está sempre presente nas situações decisivas, mas sua presença não acrescenta em nada a trama. É um personagem transparente, sua atuação restringe-se ao seu testemunho, não é narrador onisciente, mas parcial. A sua fala é verossímil, até mesmo por ter sido tirada dos jornais da época, de um fato conhecido, o que já dá a esse narrador uma autoridade prévia com relação à veracidade da história.

"Os Demônios" é um gigantesco painel da Rússia pré-revolucionária, mas é também uma espantosa projeção do mundo contemporâneo, sendo por isso considerado uma profecia. O romance apreende o mecanismo vital e psicológico de almas vertiginosas que querem "transformar" o mundo por meio da violência e do terror revolucionário, num quadro de insolvência dos valores humanos e espirituais que nortearam o melhor da civilização ocidental.
 

“Então começará a desordem! O mundo marchará numa confusão jamais atingida. As trevas cobrirão os céus e a Terra chorará seus antigos deuses".

Dostoievski foi profético, acertou no alvo.

Um livro essencial para quem gosta de obras primas.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


< Garota Exemplar A consciência de Zeno >
Os Demônios
autor: Fiódor Dostoiévski
editora: Editora 34
tradutor: Paulo Bezerra

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