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O Doente Imaginário

Quem teve a oportunidade de ler a resenha de “Tartufo” aqui no site leu que a peça “O doente imaginário”, de Moliére, foi o seu último trabalho. Alguns biógrafos dizem   que, quando a peça parou de ser exibida, Moliére veio a falecer horas depois em decorrência de uma doença pulmonar. Começou a tossir sangue no meio da apresentação, mas, como um ser comediante que ele era, não deixou de perder a graça, mesmo diante do inevitável. Vindo a falecer horas depois.

Por ironia do destino, “O doente imaginário” acabou sendo a sua peça mais famosa. Aqui, Moliére trabalhou as questões morais e sociais universais, que eram atuais naqueles tempos e ainda hoje, o que torna esse trabalho atemporal. O trabalho como comédia não é apenas divertido, mas educativo.

“O doente imaginário” foi escrito em meados do século XVII, época em que a burguesia francesa começou a despontar e tornar-se uma classe poderosa nas grandes cidades, especialmente em Paris. Com o aumento do poder econômico, a burguesia começou a exercer um poder político e gozar de um status jurídico diferenciado; eles foram capazes de estender esses privilégios, separando-se assim das classes trabalhadoras.

No entanto, as pessoas mais poderosas e privilegiadas da França do século XVII, a quem Moliére desejava agradar para sobreviver como dramaturgo, eram a nobreza francesa e especialmente o rei Luís XIV. A nobreza francesa em particular e a nobreza em geral é um grupo exclusivista que se casa apenas com os iguais, ou seja, com aqueles com o mesmo berço nobre. Isenta de impostos diretos, a nobreza, juntamente com o rei, formava a base de poder do governo. Eles patrocinavam as artes; nobres como Bernard de Nogaret de La Valette e Armand de Bourbon foram os grandes patrocinadores de Moliére.

Moliére foi influenciado pela comédia dell’arte, que estava florescendo em Paris e em toda a Europa continental. Conhecida por sua estrutura de personagens padrão presentes com apenas pequenas variações em todas as performances, a comédia dell’arte consistia muitas vezes em uma situação em que o amor de um jovem casal entra em conflito com a oposição de seus pais. Atores usavam máscaras para retratar o conjunto comum de personagens de ações.

Ao longo de sua trajetória teatral, Moliére havia acumulado inúmeros inimigos entre os conservadores devotos do catolicismo e rivais invejosos quando “O doente imaginário” apareceu. “Tartufo” (já resenhado aqui no site) foi banido por um longo período de tempo por causa de seu comentário sobre religião, antes que a mãe piedosa e conservadora de Luís XIV morresse e o rei intercedesse para permitir que a peça fosse encenada.

Uma das preocupações de Moliére em “O doente imaginário”, segundo seus biógrafos, era agradar o rei, e a peça foi muito bem recebida em suas primeiras apresentações e a  reputação de Moliére foi restabelecida (entre os seus detratores) após a sua morte.

Os problemas sociais são mostrados na perspectiva de um hipocondríaco – um homem que exagera demais ou imagina suas doenças. De um lado, temos um homem que transforma todos os seus problemas em doenças. Para ele, a única maneira de lidar quando algo o incomoda é transformar em doença. É a defesa que ele encontra para lidar com a vida.

Se por um lado existe o doente, por outro lado existem os médicos que alimentam as doenças do doente, incentivando os sintomas, e com isso enriquecem. Eles se utilizam da instabilidade psicológica do paciente para garantir sua própria sobrevivência. Convenhamos, alguns de vocês que estão lendo esta resenha, nunca passaram por isso? Isso não é um problema atual quando o assunto é a relação da indústria farmacêutica com os médicos? Não digo todos, mas alguns com certeza. Em outras palavras, a peça tem uma atualidade desconcertante.

Vamos à história?

Tudo começa com Argan, o protagonista da peça, que se encontra contando dinheiro. Esse é o dinheiro que ele deve aos médicos e, claro, a soma é bastante significativa.

 

“Argan (lendo numa caderneta): Três mais dois são cinco, mais cinco são dez e mais dez são vinte. Três mais dois são cinco

Dr. Purgon (conferindo suas anotações): Mais trinta do dia 24, daquela pequena injeção transparente para refrescar os intestinos do meu estimado cliente.

Argan: Ah, Dr. Purgon, devagar, por favor. Desse jeito ninguém mais vai querer ser doente! Este mês tomei uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze injeções. Não é de estranhar que eu só piore a cada mês. Eu estou muito doente! O senhor tem que dar um jeito nisso. Toanete!” (pg17)

Toanete, a criada de Argan, sobe ao palco. Assim que ela chega, ela reclama de seu patrão e, em particular, de sua grande impaciência. O amor de seu patrão por remédios e médicos é motivo de zombaria para Toanete.

 

“Toanete: O Dr. Purgon faz a festa com seu corpo hein? Até parece uma vaca leiteira onde todos metem a mão! Eu queria é perguntar para ele o que o senhor tem para precisar tanto de remédios.” (pg21)

 

Quando Angelique, filha de Argan, entra procurando Toanete, seu pai tem uma necessidade de ir ao banheiro. Angelique revela para Toanete seu amor por Cléante e ela teme que seu amor não seja correspondido. Seu maior desejo é ser pedida em casamento como ele lhe prometeu. Toanete tenta tranquilizá-la.

Quando Argan sai do banheiro e chega no quarto, ele anuncia à sua filha que seu futuro marido será o Dr. Tomás Diaforus, cunhado do Dr. Purgon. Ele espera, dessa forma, trazer um médico para a família e se beneficiar de cuidados a um custo menor. Antes que Angelique possa responder, Toanette intervém e se opõe a esse casamento arranjado.

 

Toanete: O quê? Será possível que o senhor seja tão maldoso? Com todo o dinheiro que tem, quer casar sua filha com um médico?

Argan: Exato! E o que você tem com isso, sua enxerida?

Toanete: Calma, meu Deus! O senhor já vem com sete pedras na mão! Será que não podemos conversar com modos? Qual a verdadeira razão para querer esse casamento?

 Argan: A verdadeira razão é que, sendo doente como eu sou, quero ter um genro médico para me ajudar combater a minha doença. Ele será a fonte dos meus remédios e tratamentos. (pág. 33; pág. 34)

 

Surge então a segunda esposa de Argan e madrasta de Angelique, Beline, que irrompe no quarto e fica do lado do marido. Toanete tenta explicar para Beline o diálogo que teve com Argan.

Toanete: Acontece que o Senhor Argan me disse que vai dar a mão de Angelique em casamento ao filho do Dr. Diaforus. Eu só comentei que, embora ache Tomás um ótimo partido, seria melhor mandar a menina para um convento.

 Beline (com cara de quem gostou): Desculpa Gagan, mas acho que desta vez ela tem toda razão. (pg42; pg43)

Angelique, ao ouvir tudo aquilo, foge chorando, enquanto Toanete tenta alcançá-la. Beline e Argan ficam. Em seguida, entra o senhor Bonfá, cuja profissão é tabelião. Beline convence Argan que muda seu testamento para que ela possa se beneficiar de sua fortuna, às custas de seus filhos. Só que isso é impossível. A melhor hipótese seria deixar a herança para um amigo para que este transfira para Beline.

Angelique não entende o motivo pelo qual seu pai quer que ela se case com Tomás quando ela está apaixonada por Cleante. Desesperada, ela pede ajuda a Toanete.

“Angelique: Toanete, prefiro ir para um convento. Jamais me casarei com Tomás. É tudo culpa de Beline (pág. 89)”

Ciente das ações de Argan para que case com Tomás, Cleante aparece para se declarar a amada Angelique. Mas é demovido dessa intenção. Ele se passa como o professor de música de Angelique. Argan aceita, mas quer assistir à aula de música.

Vendo Cleante, Angelique se surpreende. Quando ela se prepara para começar sua aula de música com Cleante, Toanete entra para anunciar a chegada de Tomás Diafoirus ( o pretendente de Angelique) juntamente com o seu pai. 

Cleante ameaça ir embora, mas Argan pede que ele fique. Tomás não é um homem muito inteligente e, assim que chega, comete uma série de gafes. Uma delas é confundir Angelique com Beline (mulher de Argan).

 “Tomás: Ah, sim! Madame, foi por justiça divina que lhe foi dado o belo nome de Beline...pois em seu rosto... os raios de sol...

Beline: Senhor, não pode imaginar quanto me alegra essa visita com que nos honra.

Tomás: Pois em seu rosto...os raios, os raios... Ah, Madame a senhora me interrompeu bem no meio do meu cumprimento, e agora esqueci o resto!” (pg79)

Quando tudo estava fadado ao fracasso, ou seja, o casamento entre Angelique e Tomás eram favas contadas, surge Beralde, irmão de Argan. Ao saber que Angelique ama Cleante, toma partido da sobrinha. Toanete tem um plano para ajudar Angelique. Uma discussão começa entre Beralde e Argan sobre a medicina. O assunto gira em torno da picaretagem dos médicos. Argan se enfurece e os defende a todo custo.

Toanete, que se disfarça de médico, vestindo uma beca preta e usando o espanador como barba, e com uma voz disfarçada, começa a conversar com Argan:

“Toanete: Peço-lhe que me perdoe, caro senhor, por visita-lo assim, tão de improviso e sem aviso. É que calhou de eu passar por essas bandas, e deu-me cá uma enorme curiosidade de visitar um doente assim, tão assazmente lustre e nobre como Vossa Excelência!

Argan (ligeiramente desconfiado): Doutor, não tem que desculpar. Eu é que devo agradecer

Toanete: Mas por que me olha assim, senhor?

Argan (para Beralde): Beralde, este médico é a cara de Toanete! (voltando-se para o “médico”) Estou achando o senhor um pouco jovem demais para ser médico. Qual a sua idade? Vinte e seis, vinte e sete anos?

Toanete: Rarrarrá! Ora, pois fique sabendo que tenho noventa anos!

 Argan: noventa anos?!

 Toanete: Sim. Trata-se de um dos meus segredinhos médicos. Possuo uma fórmula para conservar meus pacientes sempre jovens e bem-dispostos.” (pág. 98; pg99)

Aqui vemos Toanete desempenhando o papel de médico. Seu objetivo é provar que os médicos são incompetentes. Assim, ela explica a ele que todos os problemas de saúde que ele teve vieram dos pulmões e que, para se recuperar, precisa fazer uma dieta:

“Toanete: o senhor tem é que beber um bom vinho, fartar-se de carne assada, peixes, ovos cozidos, queijos, frutas, arroz e doces, muitos pastéis de Belém e toicinhos do céu! Prometo-lhe que hei de visita-lo toda a vez que passar pela cidade. Na minha ausência, mandar-lhe-ei um médico da minha mais alta confiança”. (pg103)

Argan está determinado a enviar Angelique para o convento e conta seu desejo para o irmão Beralde. Toanete tem um novo plano que visa desmascarar Beline e provar que ela não gosta de Argan.

Para colocar o seu plano em ação, Toanete faz Beline acreditar que Argan está morto por causa de seus problemas de saúde. Sem surpresa, Beline está exultante quando ao saber da notícia, pois sabe que poderá colocar a mão na herança do marido. Mas Argan abre os olhos. Ele assistiu a toda a cena e entende que Beline sempre mentiu para ele.

Toanete prossegue no seu plano e quer provar a sinceridade de Angelique em relação ao pai. Toanete pede que Argan se faça de morto de novo. E quando ela fica sabendo que o pai está morto, ela desmaia de tristeza. Argan acorda e vê a tristeza da filha. Cleante aparece e pede a mão de Angelique em casamento. Argan acaba cedendo aos desejos legítimos de sua filha e permite que eles se casem. Com a condição de Argan se tornar médico:

 “Beralde: Vamos fazer um pouco de teatro, já que meu irmão vive num mundo do faz de conta. Ele não passou a vida inteira fingindo que estava doente? Por que não passa a fingir que é médico?” (pág. 119)

“O doente imaginário”, de Moliére, é uma comédia que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 23 junho 2022 | Tags: Teatro


< O homem e as armas A Profissão da Sra. Warren >
O Doente Imaginário
autor: Moliére
editora: Editora 34
tradutor: Marília Toledo
ilustrador: Laerte

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