Gota D’Água
Devo dizer a todos que acompanham este site que eu considero a peça de que falaremos hoje uma obra-prima da dramaturgia nacional. Já li há muito tempo. Ao reler depois da estrada literária que adquiri ao longo desses anos, posso dizer sem problema algum que Eurídice deve ter ficado extremamente feliz em ver sua Medeia virar Joana no Rio de Janeiro em “A Gota d’água”. Confesso que não vi a peça, mas ouvi. Isso mesmo. Havia comprado o disco onde havia não só a música e a poesia extraordinária, mas ouvi Bibi Ferreira, no papel de Joana (Medeia) com toda a sua intensidade. Foi uma experiência artística maravilhosa. Todos arrasam. Perdi esse LP no meio a tantas mudanças, mas lembro-me de que ouvi bem esse disco. De decorar falas inclusive. Mas isso foi em 1975. Não me lembrava mais de nenhuma. No entanto, reler essa peça me fez votar àquela época em que as coisas, politicamente falando, eram muito estranhas.
Essa peça foi o reflexo de um momento histórico vivido pelos brasileiros em que narrar antes de mais nada era uma forma de resistência ao regime autoritário. Em uma época na qual o ato de narrar limitava-se à censura de textos, de frases. Só havia uma narrativa: a oficial. No entanto, em 1975 podemos dizer que havia aquilo que chamavam de abertura lenta, gradual e segura. Havia oxigênio, mas com dosagem reduzida para todos aqueles que gostam de falar o que pensam. No prefácio essa questão fica muito bem explicada.
“Gota d’Água a tragédia, é uma reflexão sobre esse movimento que se operou no interior da sociedade, encurralando as classes subalternas. É uma reflexão insuficiente, simplificadora, ainda perplexa, não tão substantiva quanto é necessário pois o quadro é muito complexo e só agora emerge das sombras do processo social para se constituir no traço dominante do perfil da vida brasileira atual. De tão significativo, o quadro está a exigir a atenção das melhores energias da cultura brasileira; necessita não de uma peça, mas de uma dramaturgia inteira. Procuramos, pelo menos diante de todas limitações olhar a tragédia de frente, enfrentar a sua concretude, não escamotear a complexidade d situação com a adjetivação raivosa.” (pág XV)
Chico Buarque e Paulo Pontes, no prefácio de “Gota d’Água”, explicitam essa questão. O propósito é iniciar um novo processo dramatúrgico que pudesse alavancar os inúmeros discursos vigentes na sociedade e, ao mesmo tempo, mostrar as diversas formações ideológicas que constituíam o meio social. A segunda preocupação do trabalho é com um problema cultural, cuja formulação ajuda a compreender o desaparecimento do povo da cultura produzida no Brasil.
“Isolado seccionado, sem ter onde nem como exprimir seus interesses, desaparecido da vida política, o povo brasileiro deixou de ser o centro da cultura brasileira. Ficou reduzido as estatísticas e às manchetes de jornais de crime. Povo só como exótico, pitoresco marginal. Chegou uma hora que até a palavra povo saiu de circulação. Nossa produção cultural não ganhou com o sumiço” (pág. XVI)
O terceiro ponto levantado no prefácio é a preocupação de ressaltar que a peculiaridade de “Gota d’Água” é uma ressignificação da peça Medeia, de Eurípedes. A tragédia grega valoriza o signo verbal como o mais importante dentro das artes teatrais.
“...A palavra, portanto, tem que ser trazida de volta tem que voltar a ser nossa aliada. Nós escrevemos a peça em versos, intensificando poeticamente um diálogo que podia ser realista, um pouco porque a poesia exprime melhor a densidade de sentimentos que move os personagens, mas quisemos, sobretudo, com os versos, tentar revalorizar a palavra. Porque um teatro que ambiciona readquiri sua capacidade de compreender, tem que entregar, novamente, à múltipla eloquência da palavra, o centro do fenômeno dramático.” (pág. XIX)
A peça, como já foi dito, foi escrita em 1975. Foi inspirada na série de televisão “Medeia”, da TV Globo, de Oduvaldo Viana filho, que foi censurada pela ditadura militar. Apesar da abertura política, no teatro a censura permaneceu. Mas, mesmo assim, apesar das mudanças no texto, a peça foi um sucesso de público e de crítica.
Eurípedes, quando escreveu seu drama, reuniu os dois mitos: o dos argonautas, que ilustrou o desenvolvimento da Grécia e as lutas pelo domínio do comércio no Mar Negro, e o mito de Medeia, que se traduziu pelos atos de vingança e desforra. Assim, da mitologia grega foram resgatadas as personagens que entraram no espaço de Medeia. Porém, rompendo a linha do mito, Eurípedes deu a essas personagens aspirações e sentimentos humanos, o que permitiu a discussão psicológica em torno de seus caracteres e de suas ações – as atitudes de Medeia, por exemplo, direcionam para um estudo da alma feminina. A ação dramática da peça ganhou progressão quase ritmada, através das atitudes das personagens.
Eurípedes dá a sua versão de Medeia. Na história original, Medeia era apaixonada por Jasão, ajuda seu amado a obter o Velo de Ouro. Após ser trocada pela filha de Creonte. Medeia mata a princesa e seu pai, o rei Creonte, enviando-lhe um vestido e uma coroa envenenados. Possuída pelo ódio, Medeia decide matar seus filhos também, com o intuito de causar o máximo de dor a Jasão. Ela foge pra a cidade do rei Egeu para casar-se com ele.
Ao resgatar os mitos gregos, Chico Buarque e Paulo Pontes mostram outros caminhos, e o mito ganha uma nova roupagem. Foram inseridas nessa versão as contradições vividas pelas classes menos favorecidas, subjugadas pelo poder do capitalismo. Elementos como o samba estão acrescidos na peça. Essa peça retrata o povo pobre, moradores de um conjunto habitacional.
Vamos à história?
A história começa quando sabemos que Joana (Medeia) foi abandonada pelo seu marido Jasão. Sabemos que Joana foi uma pessoa fundamental na vida de Jasão. Após dez anos morando juntos, Jasão estoura com um samba chamado “Gota d’água”. Eles têm dois filhos. E quando o sucesso aparece, ele abandona a mulher e os filhos para se casar com Alma, filha de Creonte. Creonte era o dono de todas as casas da Vila, e tinha o poder sobre todos que ali moravam.
Jasão não era o genro que Creonte queria. Ele queria um genro rico e com capacidade de proporcionar uma vida boa à Alma.
A notícia sobre o noivado de Jasão chega à vizinhança da Vila. Todos comentam que Jasão passou a noite comemorando com a noiva, Alma Vasconcelos, na escola de samba. Abandonou a esposa e filhos. Xulé e Egeu conversam. Egeu era o mecânico sábio do bairro, era um dos únicos que tinham casa própria, era como um pai para Jasão, sempre o aconselhava.
“XULÉ. Falhei de novo a prestação da casa..., Mas, pela minha contabilidade, pagando ou não, a gente sempre atrasa Veja: o preço do cafofo era três três milhas já paguei, quer que comprove? Olha os recibos: cem contos por mês E agora inda me faltam pagar nove Com nove fora, juros, dividendo, mais correção, taxa e ziriguidum, se eu pago os nove que inda estou devendo, vou acabar devendo oitenta e um... Que matemática filha-da-puta.
EGEU. Todo mundo está igual a você XULÉ. Não dá. É todo mês a mesma luta. Têm que falar pro homem resolver baixar um pouco essa mensalidade, senão vou morar debaixo da ponte. Não é fácil, mestre Egeu...
EGEU. É verdade
XULÉ. Alguém tem que falar com seu Creonte A gente vive nessa divisão. Se subtrai, se multiplica, soma, no fim, ou come ou pagar a prestação O que posso fazer, mestre Egeu?...” (pág. 8; pág. 9)
Xulé era residente do bairro e se queixa dos altos preços do aluguel que Creonte estabelecia. O detalhe é que todos na Vila do Meio Dia devem dinheiro a Creonte. Egeu combina com Boca, um fofoqueiro do bairro, de não pagar nada a Creonte. Joana sabe dos boatos sobre Jasão. Uma solidariedade feminina instala-se na Vila. Todas querem ajudar Joana. Apesar de ser totalmente ligado à comunidade, ele sabe que quando se casar vai mudar de estilo de vida.
Creonte tem uma conversa séria com o genro.
“Creonte: Muito bem, Noel Rosa. Um dia vai ser sua cadeira. Quero ver você nela bem sentado, como quem senta numa cabeceira do mundo. Sendo sempre respeitado, criando progresso, extirpando pragas, traçando o destino de quem não tem, fazendo até samba, nas horas vagas. Porém... existe um pequeno, porém. Não vai ser assim, pega, senta e basta. Primeiro você vai me convencer que tem condições de assumir a pasta.
Jasão: Eu sou compositor
Creonte: Dá para viver de samba?
Jasão: É o que eu ia dizer...
Creonte: Pois, não
Jasão: Sabendo fazer o negócio é bom. Tem problema com arrecadação, mas já tá provado que o nosso som tem força no mercado. Então nós vamos montar uma editora pra controlar o samba da escola...Depois pegamos...
Creonte: Isso. É por aí. Mas só que fuçar em direito autoral dá confusão. Então por que você não faz como eu e não emprega a imaginação trabalhando só no que vai ser teu?
Jasão: Eu só...
Creonte: Não é melhor? Fala rapaz
Jasão: É melhor
Creonte: E então?...
Jasão: Mas o senhor disse...
Creonte: Disse o quê?...
Jasão: Isso de ser capaz, ter condições...talvez eu não servisse...
Creonte: Não! Você tem muita capacidade, que é isso? Só quero estar seguro que, no caso de uma necessidade posso confiar em você. É o futuro da minha obra que eu vou lhe passar com todos os seus segredos. Enfim, preciso saber se posso confiar em você meu rapaz. Posso?
Jasão: Por mim acho que pode, já que Alma é a sua filha.
Creonte: Então posso confiar?
Jasão: pode confiar.” (pág. 34; pág. 35)
Joana está enfurecida, fala com as amigas, que tentam amenizar essa raiva. Jasão agora representa os interesses de seu sogro. E vai tentar amenizar junto ao mestre Egeu para que ele evite que todos façam boicote ao pagamento das prestações. Joana vê seu mundo desabar, e o causador de toda a desgraça é Jasão, o homem que havia lhe roubado o futuro. Quando Jasão se encontra com Joana, pela primeira vez tenta amaciá-la, dando conselhos a Joana, que, além de perder Jasão, estava prestes de perder a própria casa onde morava.
“Joana: Ah, eu vou bem, vou muito bem, Jasão!...
Jasão: Você remoçou um bocado... emagreceu...
ficou mais bonita... Só tem uma coisa que está meio
esquisita (vai a ela e solta seus cabelos, jeitosamente)
Pronto... assim... O que foi que lhe deu, hein, Mulher?
Parece uma menina...
Joana: O que você quer, Jasão?
Jasão: Dizem por aí que você sofreu tanto com a
nossa separação..., Mas eu não sei não... Deve ser
mentira ou fingimento. Ou então mulher se dá bem
com o sofrimento...
Joana: Você veio só debochar, Jasão ou tem
coisa séria pra dizer...
Jasão: Cê ta muito bem, não é deboche...
Joana: Sei, que mais?...
Jasão: Joana, me escuta! Você assim bonita, ainda
moça, enxuta, pode encontrar uma pessoa... Quer
dizer, você pode tranquilamente refazer a vida...
Quem sabe, talvez até voltar pro seu marido, ele
não cansa de esperar, tá sempre ali...
Joana: Sei... Que mais?
Jasão: Como, o que mais? Responde ao que
eu tou falando...
Joana: Me deixe em paz, Jasão! você com trinta
anos, pau duro, samba nas paradas de sucesso,
o futuro montado no dinheiro de Creonte, enfim, Jasão,
o que é que você ainda quer de mim?
Jasão: Joana, não é nada disso...
Joana: Onde já se viu... Me fode co’a vida e
ainda vem tripudiar?
Jasão: Joana...
Joana: Vai dar conselho à puta que pariu.”
(pág. 70, pág. 71)
Joana pede que Jasão cale a boca, ela mostra as circunstâncias que ela está vivendo, revela o arrependimento de ter estragado sua vida com ele.
“Joana: Pois bem, você escuta as contas que eu vou lhe fazer: te conheci moleque, frouxo, perna bamba, barba rala, calça larga, bolso sem fundo. Não sabia nada de mulher nem de samba e tinha um puto dum medo de olhar o mundo. As marcas do homem, uma a uma, Jasão, tirou todas de mim. O primeiro prato, o primeiro aplauso, a primeira inspiração, a primeira gravata, o primeiro filho, o primeiro violão, o primeiro sarro, o primeiro refrão e o primeiro estribilho. Te dei cada sinal do teu temperamento. Te dei matéria prima para o teu tutano. E mesmo essa ambição que, neste momento se volta contra mim, eu te dei, por engano. Fui eu Jasão. Você não se encontrou na rua. Você andava tonto quando eu te encontrei. Fabriquei energia que não era tua para iluminar uma estrada que eu te aportei. E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada. E foi assim, enfim, que eu vi nascer do nada uma alma ansiosa, faminta, buliçosa, uma alma de homem. Enquanto eu, enciumada dessa explosão, ao mesmo tempo, eu, vaidosa, orgulhosa de ti, Jasão era feliz, eu era feliz, Jasão, feliz e iludida, porque o que eu não imaginava, quando fiz dos meus dez anos a mais uma sobrevida pra completar a vida que você não tinha é que estava desperdiçando o meu alento, estava vestindo um boneco de farinha. Assim que bateu o primeiro pé de vento, assim que desponto, um segundo horizonte, lá se foi meu homem-orgulho, minha obra completa, lá se foi pro acervo de Creonte... Certo, o que eu não tenho, Creonte tem de sobra prestígio e posição... Teu samba vai tocar em tudo quanto programa. Tenho certeza que “A Gota d’Àgua não vai parar de pingar de boca em boca... Em troca pela gentileza vais engolir a filha, aquela mosca morta como engoliu meus dez anos. Esse é o teu preço, dez anos. Até que pareça uma outra porta que te leve direto para o inferno. Conheço a vida rapaz... Só de ambição, sem amor, tua alma vai ficar torta, desgrenhada, aleijada, pestilenta... Aproveitador! Aproveitador! (pág. 75; pág. 76)
Jasão mais tarde percebe que algo está estranho com a sua mulher. Alma. Creonte chega ao quarto e tem uma outra conversa com o genro. Dessa vez, o assunto é Joana. Ele a quer na rua. Jasão tenta trazer uma solução. E qual seria? Que Creonte melhorasse o bairro. A princípio, há uma recusa explícita a esta ideia. Enquanto isso Joana deixa os filhos com Corina e Egeu e sai para procurar emprego. Joana recebe um conselho de Egeu para que ela fique quieta, evite criar constrangimentos. Creonte tenta uma negociação com os vizinhos, que estão todos do lado dela.
Jasão vive um grande dilema e resolve procurar Joana de novo, tentar um acordo. Em troca, Jasão daria um dinheiro para que ela se mantivesse economicamente juntamente com os filhos. Joana quer saber o motivo dessa oferta súbita feita por Jasão. Jasão diz que não quer confusão para o lado dele. Só estava fazendo o trabalho dele.
Joana se recusa e não quer o dinheiro de Creonte. Jasão fala que ela será a única a ser despejada por causa de seu temperamento agressivo.
“Joana: Eu não quero, não quero esse dinheiro...
Jasão: Repete!
Joana: Eu não quero esse dinheiro!
Jasão: Então repete pro conjunto inteiro pra todos saberem que eu não fugi das minhas obrigações. Vim aqui, humildemente, pedi pra ajudar...
Joana: Sei, você está querendo enganar a sua consciência me atirando as sobras do seu banquete. Pois quando você...
Jasão: Não vim discutir. Vim ver o que você pretende fazer...” (pág. 120)
Os vizinhos resolvem ir à casa de Creonte reclamar o preço dos aluguéis. Joana está em prantos. Egeu tenta contemporizar a situação e vai à casa de Creonte. Creonte conta a todos o plano que Jasão havia lhe dado. Fazer uma mudança radical, obras valorizando a Vila. E todos ficam muito felizes. O segundo tema dos moradores da Vila era Joana, mas disso Creonte não arredou o pé. Esse assunto não tem negociação. Creonte a quer fora.
“Joana: Por que?
Creonte: Por medo
Joana: Medo de mim?
Creonte: Medo de você sim, porque você não pode investir a qualquer hora. Tá calibrada de ódio, arma na mão. E a vida te botou em posição de tiro. Só falta a vítima, mais nada. Então prefiro virar pr’um outro lado a boca do canhão. Não gosto de guerra nem vou facilitar diante de quem está se achando injustiçada.” (pág. 149)
Creonte faz uma clara ameaça, mas cede um dia, para que ela se mude em definitivo da Vila. Joana traça um plano, sabe que tudo está acabado, mas ainda resta a última vingança, os filhos. Ela pede que Jasão leve os filhos para a festa de casamento do pai. Dá um tom conciliador como se já estivesse em pleno acordo com tudo que lhe fora imposto. Jasão fica feliz pelo desfecho. “O povo se ilude e silencia fácil. Perdão – festa – comida grátis”.
“Joana: É que meu ressentimento ofuscava a verdade. Se o homem é ação e mulher é postura. A mulher, o raso, o homem, o fundo. Se a mulher é de casa, ele é do mundo. Se ele é chave mestra e ela fechadura, então o que a mulher tem que cobrar dele não é lealdade, mas brilho. Pode comer quem quiser, fazer filho numa, casar com outra descasar, o que importa é ganhar uma parada toda semana. Um marido leal, mas fracassado, quem quer? Se ela é mal trepada, a lealdade vale nada pra ela. Mulher, o útero arrebenta de prazer com o brilho do seu macho. Eu já pensei muito e é isso que eu acho. Vai, Jasão fazer tua vida, inventa teu destino que eu já fico contente em saber que um pouco de mim vai ter no peito do homem que você vai ser. Por isso é que eu te chamei. Vai em frente, Jasão, aqui! Você tem uma amiga que quer ver você feliz.” (pág. 154) (Jasão abraça Joana com efusão)
Joana manda um presente pelos filhos ao casal, mas Creonte os expulsa da festa. Levando-os de volta para casa, Corina deixa as crianças com Joana, que pede para ficar só.
“Filho1: Queria comer...
Filho 2: Estou com fome
Joana: Tem comida, vem... Isso é o que o senhor quer? (abraça os filhos profundamente um tempo)
Meus filhos, mamãe queria dizer uma coisa a vocês. Chegou a hora de descansar. Fiquem perto de mim que nós três juntinhos, vamos embora prum lugar que parece que é assim: é um campo muito macio e suave, tem jogo de bola e confeitaria. Tem circo, música, tem muita ave e tem aniversário todo dia. Lá ninguém briga, lá ninguém espera, ninguém empurra ninguém meus amores. Não chove nunca, é sempre primavera. A gente deita em beliche de flores, mas não dorme, fica olhando as estrelas. Ninguém fica sozinho. Lá não dói. Lá ninguém vai nunca embora. As janelas vivem cheias de gente dizendo oi. Não tem susto, é tudo devagar. E a gente fica lá tomando sol. Tem sempre um cheirinho de éter no ar, a infância perpétua em formol (dá um bolinho e põe guaraná na boca dos filhos). A Creonte, à filha, a Jasão e companhia vou deixar esse presente de casamento. Eu transfiro pra vocês a nossa agonia porque meu Pai, eu compreendi que o sofrimento de conviver com a tragédia todo dia é pior que a morte por envenenamento. (pág. 166; pág. 167).
Ela abraça seus filhos e comem os três bolos. Então, eles caem no chão, mortos. No momento em que Jasão ganha a cadeira de Creonte, um grito ecoa na festa. Egeu entra carregando o corpo de Joana, e Corina com os corpos dos filhos. Todos congelam. É o fim.
“Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta, pro desfecho da festa. Por favor.
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não.
Pode ser a gota d'água.”
Fico por aqui. E indico essa obra-prima da dramaturgia brasileira. “Gota D’Água”, um livro que merece um lugar de “HONRA” na sua estante.