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O Pagador de Promessa

Sincretismo representa a fusão de diferentes elementos culturais, muitas vezes antagônicos, em um elemento. É uma tendência à unificação de ideias ou doutrinas diversificadas. “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, nos fala sobre o sincretismo religioso, ainda comum nas regiões brasileiras, onde a igreja do Nosso Senhor do Bonfim (na Bahia) é o seu símbolo máximo.

O sincretismo religioso, a mistura de elementos, pode ser observada em todas as religiões existentes, pois não existe uma religião pura. Vejamos o cristianismo. Nasceu do judaísmo e um dos pilares dessa crença é a Torá, faz parte de um conjunto de livros sagrados cristãos, a Bíblia. Vejamos a Páscoa, que é uma grande festa judaica que está presente no cristianismo após a ressignificação pelos cristãos. O cristianismo absorveu do Império Romano elementos de sua organização e de sua hierarquia, como, por exemplo, a figura do Papa, o sumo Pontífice que tinha na figura do imperador romano sua inspiração.

O Candomblé também é uma religião sincretizada. Na África, cada tribo cultuava somente um orixá, mas aqui no Brasil, com a escravidão trazida de diversas nações diferentes da África, criou-se um jeito de louvar o maior número possível de orixás para que todos se sentissem acolhidos.

Podemos dizer que o Brasil é, desde seu descobrimento, um espaço sincrético religioso nato, isto baseado em sua forma de colonização, que pode ser entendida como uma complexa reorganização de culturas étnicas ameríndias, europeias e africanas. O povo brasileiro convive com o sincretismo religioso como um dispositivo de resistência, de legitimação e sobrevivência dessas culturas.

Algumas matrizes religiosas presentes no território brasileiro na época da chegada dos europeus foram absorvidas e praticadas pelos povos Tupis, Tamoios, Caiapós, entre outros. A fim de explicar-lhes a doutrina cristã, os padres jesuítas muitas vezes utilizavam-se de elementos culturais indígenas. Os negros africanos escravizados representados pelo povo Banto, Yorubá e Male passaram pelo mesmo processo, que acabou dando origem ao candomblé. Na chegada à colônia, muitos dos rituais, símbolos e festas que eram feitas na África foram adaptando-se à realidade do Brasil, como, por exemplo, as oferendas para orixá.

No contato entre estes povos e suas manifestações religiosas, houve confluência entre costumes, hábitos e crenças, e isso se estendeu para a forma como a religião era praticada também. Apesar dessa mistura, que ocorreu em menor ou maior intensidade em alguns aspectos, os preceitos originais de cada uma das religiões não foram modificados.

Mesmo sendo a matriz católica a predominante, ou seja, era a religião oficial do país, apesar de ter tentado e muito, esta não conseguiu aniquilar outras práticas religiosas enquanto expressão cultural e social do Brasil.

Coube a Jorge Amado tornar sua marca registrada a tematização romanesca do sincretismo entre o culto africano dos orixás, devidamente aclimatado no Brasil, e o catolicismo. A aclimação decorreu da camuflagem desenvolvida pelos escravos para proteger seus rituais da repressão ordenada por senhores e autoridades. Na pena desse escritor, a tematização assumiu várias formas, ou antes percorreu uma gradação cheia de nuanças, que vão desde uma presença fortíssima da culinária afro-baiana, como criação de cor local e pano de fundo para os entrechos, até ficções em que um orixá pode ser personagem.

Jorge Amado, para aqueles que não sabem, foi deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro de São Paulo no período de 1946 a 1948, quando o PCB foi colocado na ilegalidade. No entanto, no seu breve período enquanto parlamentar, deixou um dos maiores legados, que foi a emenda 3.218 à Constituição Brasileira promulgada em 1946 – a lei da livre crença religiosa promulgada em 1946. Essa lei, é bom que se diga, não encontrou respaldo dentro do próprio PCB, que via a religiosidade como ópio do povo, ou seja, como uma forma de manipulação da população. Mas Jorge Amado não se deixou vencer, pois tinha uma relação com as religiões de matriz africana e as violências que sofriam,   assim como outras religiões não cristãs também padeciam desse flagelo das perseguições.

Vamos ao livro?

Dias Gomes é o dramaturgo brasileiro mais traduzido e encenado em outros países. A adaptação desse livro para o cinema foi um sucesso. Foi indicado ao Oscar e premiado com a Palma de Ouro de cinema em Cannes. Para quem quiser assistir ao filme, é só acessar no YouTube. Você pode assistir e com certeza vai se emocionar. Uma obra-prima.

Dias Gomes começou cedo na literatura; sua produção teatral iniciou-se na década de 1930. É considerado um grande mestre de inúmeros gêneros. Sua produção é vasta: produziu para o teatro, televisão, rádio, cinema e literatura. Foi na fase madura que Dias Gomes alcançou sua projeção. A peça “O Pagador de Promessas” foi encenada em diversos países e foi adaptada para o cinema, meio a contragosto do autor, mas alcançou um enorme sucesso.

A facilidade com que Dias Gomes mescla o retrato da cultura brasileira marginalizada, as reflexões sobre a natureza do homem rural, a obstinação humana, os sacrifícios e a tendência heroica da vida são de um grande observador da cultura nacional,

O texto é uma crítica contundente à realidade social brasileira. Através de seus personagens, Dias Gomes ilustra cada segmento de nossa sociedade: a igreja, a política, a imprensa, o comércio. Em “O Pagador de Promessa”, a questão crucial é a questão religiosa. O enfrentamento religioso ocorre entre Zé do Burro e Padre Olavo. O primeiro representa o homem de fé, devoto; o segundo representa a Igreja católica, a religião oficial. Esse conflito resume-se no fato de Zé do Burro não corresponder às expectativas que a Igreja espera de seus fiéis.

A “Poética”, de Aristóteles, tem por base a fundamentação da mimese, imitação ativa e criativa, e de catarse, que se refere à purificação das almas por meio da descarga emocional provocada pelo drama. Suscitando a compaixão e o terror, o objetivo é obter a purgação das emoções, das paixões, uma catarse própria a tais emoções, e não todas as paixões da alma humana. E para isso a representação sem unidade é algo impensável na visão de Aristóteles. E a história de Dias Gomes obedece aos cânones da Poética.

Em “O Pagador de Promessas”, vemos Zé do Burro passar da felicidade ao infortúnio em decorrência de uma falha trágica. E sua falha trágica foi fazer a sua promessa em um terreiro de Candomblé. Ele mistura os santos pagãos com os santos da Igreja católica, embaralhando a ordem social. O herói não admite nenhum acordo que possa demovê-lo do destino que ele pretende dar à sua cruz. Acompanhamos o desespero de Zé do Burro ao tentar convencer o padre acerca da religiosidade de sua promessa.

Um outro conflito que Dias Gomes retrata é o conflito entre o Brasil rural e o urbano, muito evidente na onda da modernização que atravessava o país durante o período entre 1950 e 1960. Esses conflitos tornam-se claros através dos embates entre a crença popular, o sincretismo religioso brasileiro e o dogmatismo, o ritualismo rigoroso e a burocracia da Igreja.

“Na esquina da rua da direita, vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus. Numa das esquinas da ladeira, do lado oposto, há uma vendola, onde também se vende café, refresco, cachaça etc.; a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente” (pg17, pg18)

Vemos a descrição de dois ambientes: de um lado, uma igreja; de outro, uma vendola. Eles estão posicionados em lugares opostos. Será nesse espaço que toda a trama irá se desenrolar. O sagrado lugar de veneração a Deus e o profano, o bar e a bebida, a indecência.

A história se passa na Bahia. Um homem simples, chamado Zé do Burro, começa com uma promessa. Ele detém uma pequena fração de terra. Quando seu grande amigo, um burro de estimação, fica enfermo ao ser fulminado por um raio, ele sai imediatamente em busca de ajuda. Ele pede à Santa Bárbara que salve o seu burro, que havia sido ferido. E a promessa feita por ele à Santa Bárbara foi feita em um terreiro de candomblé, onde a santa tem o nome de Iansã. Como na região em que ele morava não havia nenhuma igreja dedicada à Santa Bárbara, ele acabou estendendo sua promessa a Iansã.  Ele promete que, se o burro ficar bom, dará aos pobres suas terras e levará uma cruz de madeira até a igreja de Santa Bárbara, localizada em Salvador, e lá doará a cruz a igreja. E assim que o burro chamado Nicolau se restabelece, ele põe o pé na estrada, ao lado de sua esposa Rosa.

Zé do Burro é um crente que mora no interior da Bahia, faz parte de um aparato social onde as categorias como religião, classes e costumes convivem e se misturam cotidianamente. O homem e a natureza estão em simbiose e pertencem às mesmas leis, ao mesmo sistema cosmogônico. Ele representa o homem primitivo ligado aos mesmo rituais e crenças que alimentam a sua existência. Portanto, ele não é indiferente à religião.

Ele se diz católico. Porém, isso não o impede de procurar, por exemplo, o candomblé de Iansã. Para ele, Santa Bárbara é Iansã. Apesar de ser católico, ele admite:

“Zé do Burro: Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante de minha roça. (com a consciência de quem cometeu uma falta, mas não muito grave) Eu sei seu Vigário vai ralhar comigo. Eu também nunca fui de frequentar terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau estava morrendo. Não custava nada tentar. Se não fizesse, mal não fazia. E eu fui...” (pág. 79)

Zé do Burro, com uma cruz nos ombros, e sua mulher, Rosa, caminham léguas do sertão baiano até Salvador, com o intuito de pagar a promessa. Chegam de madrugada, alojando-se nas escadarias da igreja dedicada à santa. Rosa, a mulher de Zé do Burro, acha que, por ser casada, deve acompanhar o marido onde ele vai: em certos momentos, demonstra um respeito por Zé, e se diz posse dele, principalmente quando eles se encontram com uma figura cujo apelido é Bonitão.

Bonitão:  palavra seu marido não lhe faz justiça. Isso não é trato que se dê a uma mulher... mesmo sendo mulher da gente.

Rosa: Se ele faz pouco de mim, faz pouco do que é dele.(pg44)

Bonitão é uma espécie de cafetão, um sujeito sedutor que, ao ver a ingenuidade de Zé do Burro, tenta tirar vantagem. Tenta seduzir Rosa, sua esposa; afinal, Rosa está esgotada, muito cansada. E acaba, contra a sua vontade, aceitando o convite do Bonitão com a anuência de seu esposo, que entende o cansaço dela, e ela vai dormir em um quarto de hotel, com... Bonitão.

Ao contar ao padre que sua promessa foi feita em um terreiro de candomblé a Iansã, Zé do Burro é impedido de entrar na igreja. Com uma fé inquebrantável, ele resiste e insiste em permanecer fora da igreja até ser aceito.

“Zé do Burro: Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não impedir a minha entrada. A igreja não é sua é de Deus.” (pág. 88)

A notícia corre toda a cidade de Salvador. Até chegar à redação de um jornal, cujo repórter tenta tirar proveito e tenta fazer daquele ato de fé um show de notícias. E claro, no o show promovido pelo repórter do jornal, os fatos tornaram-se vítimas do sensacionalismo.  O repórter o retrata como um messias que apoia a reforma agrária.

Marli, uma prostituta apaixonada por Bonitão, faz um escândalo quando fica sabendo que seu homem passou a noite com Rosa em um hotel. Bonitão precisa se livrar de Zé do Burro, pois quer Rosa para ele. Para isso, convence um policial apelidado de “Secreta” acerca da credibilidade da versão do jornal.

Enquanto isso, após muita insistência, o Monsenhor tenta persuadir Zé do Burro a se arrepender do pecado de ter ido a um terreiro de Iansã. Zé só queria pagar a sua promessa e se enfurece com a proposta e termina autuado pela polícia. Recusando-se a ser detido, tenta desesperadamente entrar na igreja com a cruz para cumprir a sua promessa. Nesse momento, ele acaba sendo assassinado pelo Secreta. No fim, os capoeiristas acabam trazendo o corpo de Zé do Burro com a sua cruz na igreja.

Zé do Burro: (interrompe) Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem, mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado, mas sou católico.

Monsenhor: Pois em. Vamos lhe dar uma oportunidade. Se é católico, renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da amada igreja.

Zé do Burro: (sem entender) Como Padre?

Monsenhor: Abjure a promessa que fez, reconheça que foi feita ao Demônio, atire fora essa cruz e venha sozinha, pedir perdão a Deus.

Zé do Burro: (cai num terrível conflito de consciência) O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso?!...

Monsenhor: É sua única maneira de salvar-se. A igreja católica concede a nós, sacerdotes, o direito de trocar uma promessa por outra.

Rosa: (incitando-o a ceder) Zé... talvez fosse melhor...

Zé do Burro: (angustiado) Mas Rosa... se eu faço isso, estou faltando a minha promessa... seja Iansã, seja Santa Bárbara... estou faltando...

Monsenhor: Com a autoridade de que estou investido, eu o liberto dessa promessa, já disse. Venha fazer outra...

Padre: Monsenhor está dando prova de tolerância cristã. Resta agora você escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria intransigência.

Zé do Burro: (pausa) O senhor me liberta ... mas não foi o senhor que eu fiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E quem me garante que como castigo, quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto.” (pg168, pág. 169, pág. 170)

No pensamento de Zé do Burro, a igreja é da porta para dentro. Portanto, a porta é o limiar dessa passagem do profano para o sagrado. Na peça, meio metro separa o profano do sagrado e é lá que Zé do Burro permanece.

Zé do Burro: Estou, mas esse negócio de falar com santo é muito complicado. Santo nunca responde a língua da gente... não se pode saber o que se pensa. E além do mais, isso também não é direito. Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou sujar com a santa por causa de meio metro. (pg25, pág. 26)

No desfecho da peça, encontramos Zé do Burro desolado com uma faca em punho recuando em direção a igreja. Sobe alguns degraus, de costas. O padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca caia no meio da praça. Zé do Burro corre e abaixa-se para apanhá-la. Os policiais caem sobre ele, para dominá-lo. Os capoeiristas caem sobre os policiais para defendê-lo. Zé do Burro desaparece naquela confusão de corpos. Ouve-se um tiro. A multidão se dispersa assustada. Permanece apenas Zé do Burro no meio da praça com as mãos sobre o peito. Ele dá um passo em direção à igreja e cai morto.

Fico por aqui. Fiquem tranquilos, o spoiler foi dado, mas, se vocês lerem essa peça e assistirem ao filme, vocês irão ver que a resenha é apenas uma orientação de leitura e nada mais. “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes, merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 10 dezembro 2021 | Tags: Teatro, Tragédia


< A Morte do Caixeiro Viajante Perdoa-me por me traíres >
O Pagador de Promessa
autor: Dias Gomes
editora: Edições de Ouro

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