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Perdoa-me por me traíres

Vou contar uma coisa que sempre me chamou a atenção na peça “Perdoa-me por me traíres”, de Nelson Rodrigues: foi o título. Esse título é um escândalo de bom, típico de uma inteligência refinada e afiada. No entanto, eu (antes de ler essa peça) achava que Nelson havia colocado essa frase inspirada para dar um efeito publicitário à peça. Mas, para o meu espanto (positivamente falando), a frase se encaixa de uma forma perfeita na história. E a história é de uma força enorme. Aliás, confesso a vocês que eu prefiro ler antes de assistir a qualquer obra de um autor que, no caso, podemos considerar um clássico da dramaturgia nacional. Há exceções: quando não tenho o livro.

No ano de 1957, ano do presidente Juscelino Kubitschek, os censores do Rio de Janeiro liberaram a apresentação da peça “Perdoa-me por me traíres” com algumas condições. Uma delas era que fosse cortada da peça a cena do aborto, de que falaremos adiante. Por mais que o diretor Léo Jusi tentasse dar uma interpretação condenatória ao aborto na cena em questão, dando ao personagem que é médico um caráter de bandido. O censor da época deu um “ok”, ou seja, cedeu à argumentação do diretor para que a peça fosse apresentada em sua integralidade. Mas primeiramente deveria ser permitido aos censores assistir ao ensaio geral. E para isso, três censores foram designados.

Quando a última fala da peça foi dita pela personagem Tia Odete, numa doçura nostálgica – “Meu Amor!” –, a plateia dividiu-se entre os aplausos efusivos e vaias rancorosas. As vaias predominaram, obviamente. O ódio tem um efeito muito mais fácil, existe um apelo no ódio que é irresistível. Senhoras gritando: “Tarado”. Nelson Rodrigues, que trabalhou como ator nessa montagem, disferia: “Burros! Zebus!”. Para dar um ar mais apocalíptico a tudo que estava acontecendo no teatro, o vereador da UDN Wilson Passos, conhecido da política do Rio de janeiro por anos, envolveu-se numa briga com um espectador que aplaudia a peça. No dia seguinte, uma campanha liderada pelo referido vereador fez de tudo para que a peça fosse censurada, sob a alegação de imoralidade. A peça aconteceu no Teatro Municipal e acabou sendo censurada pela “tara” do vereador cuja única “relevância” foi censurar essa e outra obras teatrais na sua extensa vida pública.

O diretor Leo Jusi apelou para Don Helder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro e outras figuras importantes da cidade. Don Helder, que sempre foi um progressista, prometeu falar com o Bispo, que, na época, era Dom Jaime de Barros Câmara. Francisco Negrão de Lima, o prefeito da cidade, foi acionado por Nelson Rodrigues e Gláucio Gil. E com muito custo, conseguiram: a peça voltou aos palcos e bateu recordes de público por dois meses.

Em São Paulo, a censura mostrou o seu poder graças à interferência das senhoras católicas. E a argumentação viciada de que não se tratava de censura à liberdade de expressão, “mas caber ao poder público zelar pela moral pública” prevaleceu. E assim prevaleceu a censura.

“Perdoa-me por me traíres” é uma história muito bem amarrada na forma como é contada. Acho ótimo, para todos aqueles que apreciam um bom texto teatral, ler o livro antes de assistir a qualquer montagem. O texto é forte. Ainda bem. Pior coisa do mundo é assistir a uma peça com um texto fraco. A história do teatro nos mostra que as grandes histórias precisam ser fortes para prevalecer. E “Perdoa-me por me traíres” é uma história bem forte.

Vamos à história?

“Perdoa-me por me traíres” tem como tema a derrocada da instituição familiar com uma ênfase ao trágico. Há dois planos de narrativa dessa peça. Uma no presente, a colegial Glorinha mora com os tios Raul e Odete. A tia Odete, podemos dizer que ela é “mansamente louca”, repete sempre o seu refrão em cada momento em que aparece, dizendo: “Está na hora da homeopatia”. O tio Raul a superprotege como se ela fosse sua amante. O outro momento é no passado, quando Raul relata à sobrinha que fim levou o casamento dos pais dela, Judite e Gilberto.

A ambiguidade do título mostra o olhar tenso de Nelson Rodrigues sobre a realidade. A obra nos mostra uma relação de cumplicidade anormal entre duas amigas Glorinha e Nair, que prometem uma a outra que morreriam juntas, de mãos dadas numa clínica de aborto caso Nair viesse a falecer.

A peça conta a história de Glorinha. Órfã de pai e mãe aos dois anos, Glorinha é levada, aos dezesseis anos por sua amiga Nair ao bordel de Madame Luba. Ela está em frente ao bordel e hesita entrar, ela precisa decidir. Incitada pela amiga Nair, Glorinha é convencida a entrar no bordel já que Nair costumava matar aula para atender os seus clientes no estabelecimento.

Quando ela decide cruzar a porta e assumir sua condição de prostituta, tem a sua primeira relação sexual com um deputado de idade bem mais avançada. Glorinha é arrastada como uma mercadoria ao quarto do deputado que a espera. Ela é obrigada a satisfazer o cliente. Póla Negri, ajudante de madame Luba, abre a blusa da garota e põe-se a acariciar seus seios adolescentes até que o deputado Exmo. Jubileu de Almeida “de reserva moral do Rio de Janeiro” alcance o êxtase com as próprias mãos.

Quando elas saem de lá, Nair revela que está grávida e pede à amiga que a acompanhe a um ginecologista. Quando chegam à clínica, pede a Glorinha que faça um acordo com ela. Na verdade, um pacto de morte, pois teme falecer durante o aborto. Glorinha recusa, não se sente capaz de compartilhar aquele pacto:

“Nair: - Você sempre disse que achava a morte de sua mãe linda? Não disse?

Glorinha: - Disse.

Nair – Você se fartou de dizer, no colégio que achava sem classe nenhumas essas mortes por doenças, velhice ou desastre. Você queria morrer como sua mãe: moça bonita tomando veneno. Minto? Responde!

Glorinha: - É isso mesmo!

Nair (num transporte) – Terias coragem?

 Glorinha: - De quê?

 Nair: (sôfrega) – De morrer como a tua mãe? (põe a mão no peito) Mas comigo em minha companhia, nós duas abraçadas?

Glorinha: (m com pungente espanto) – Morrer contigo?

 Nair: (sofrida veemente) – Não acha legal um pacto de morte? É fogo minha filha, fogo! (baixo e ardente) Eu morreria agora nesse minuto se... (crispada de medo) Porque eu não queria morrer sozinha, nunca! (com voz estrangulada) O que me mete medo na morte é que cada um morre só, não é? Tão só! É preciso alguém para morrer conosco, alguém! Te juro que não teria medo de nada se você morresse comigo!

 Glorinha (num protesto feroz) Não!

 Nair (quase chorando) – Eu não precisava tirar o filho, não precisaria fazer a raspagem (baixo aliciante) E até já te imaginei tudo, vê só: a gente entra num cinema e, lá, no meio da fita, toma veneno, ao mesmo tempo. E quando acenderem as luzes, nós duas mortas... Estão levando um filme do Gregory Peck...

Glorinha: Do Gregory Peck? Que ótimo!

 Nair: (num apelo de todo ser) – Queres? Tua mãe não se matou?

Glorinha (transida de medo) – Tenho medo!

Nair: - tens medo de tudo!

Glorinha (fremente) – De tudo! Eu queria ir a casa de madame Luba e te digo: tomei um banho caprichado, perfumei o corpo me ajeitei toda e, na hora, fiz aquela vergonheira... E quando estou namorando – vem o medo outra vez – vem o medo outra vez...( com um ergar de choro) Medo não sei de quê...

 Nair: - de seu tio, ora!

 Glorinha (dolorosa) – Do meu tio? Sim do meu tio!

 Nair: - ou, não é?

 Glorinha: tenho mais medo do meu tio do que da morte. (agarra-se a Nair) É ele que me impede de morrer contigo, no cinema...

 Nair: (enfurecida) Se eu fosse tu só dormias trancada a chave, por causa do meu tio!

Glorinha (num terror) - Já vou!

 Nair: (no seu medo feroz – Não vai, não senhora! Fica comigo. Vai ao médico comigo, vai ao médico comigo!

 Glorinha – E a hora?

Nair: - É cedo!

 Glorinha – Tarde! E além disso eu não posso ver sangue!

 Nair: (desesperada) – Ou você pens a que eu vou sozinha a esse médico? Tenho medo da dor e posso morrer, não posso? (sôfrega) Dizem que o perigo é a perfuração. O perigo. Oh, Meu Deus! (selvagem) Te chamei para morrer comigo e não quiseste! (de novo suplicante) Pelo menos isso, não custa. Quero ter alguém comigo, alguém segurando a minha mão! E se eu morrer, quero que tu me beijes apenas isso: quero ser beijada, um beijo sem maldade, mas que seja um beijo.” (pag25; pag26; pag27)

Com a recusa de Glorinha, incapaz de compartilhar os mesmos desejos estranhos de morrer com a amiga, Nair faz um último pedido: “Se eu morrer quero ser beijada” – retomando também o atropelado anônimo que revira a vida de Arandir, em “O beijo no Asfalto”, de Nelson Rodrigues.

Quando Nair percebe que vai morrer vítima de uma hemorragia, sente a falta da companhia da amiga e sente-se traída. Por isso, pede a visita de Raul, que é o tio e tutor de Glorinha, e faz a grande revelação em um momento de vingança contra a amiga, dizendo-lhe que Glorinha havia ido ao prostíbulo.  Raul enlouquece com essa revelação.

Numa atitude de destempero, vítima de um ciúme, não deixa a sobrinha ir para o colégio, e tem com ela uma conversa reveladora. E qual a revelação? A ação se passa em um dia; e, para atingir seu objetivo, Nelson recorre a flashbacks.  É quando Raul desmente a versão do suicídio de Judite, sua mãe, e confessa tê-la envenenado. Conta-lhe, com riqueza de detalhes, que com essa ação pretendeu salvar a honra do irmão, seu pai, a quem Judite havia traído, mas também dá a entender que se tratava de vingança pessoal contra a cunhada, que nunca o olhou, mas por quem sempre sentiu forte atração sexual.

O passado é mostrado quando ele relata o amor de Gilberto, seu irmão, por Judite, e o forte apelo sexual entre os dois. Mas foi certa vez que Gilberto começou a sentir o gelo de sua mulher em relação a ele. Um ciúme doentio se apossa de Gilberto. Ele é levado a uma clínica para tentar curar o seu ciúme.

Quando Gilberto retorna, ele encontra a sua mulher pronta para sair, toda arrumada e maquiada. Sua família aparece para insinuar as traições constantes de Judite, julgando apenas se tratar de um amante, fixo. Na sala da casa, estão a mãe, os irmãos e alguns tios de Raul e Gilberto, que, embora nem todos se pronunciem, reuniram-se  para julgar Judite. Raul revela a Gilberto que a esposa o trai. Gilberto afirma à família que não importam as certezas de Raul, o qual pagou um investigador para seguir Judite e, depois de vinte dias de trabalho, possui nome, endereço e telefone e vários “detalhezinhos de alcova” sobre sua mulher.

Se o homem enlouquece porque não ama, foi por vontade de amar a esposa que ele conseguiu sair do sanatório. De todo o imbróglio envolvendo Judite, importa-nos, sobretudo, o fato de que a família de Gilberto cobra dele uma atitude concreta para a manutenção de sua honra. A família de Gilberto começa a questionar a lucidez de Gilberto quando ele diz:

“Gilberto: - Na casa de saúde eu pensava: nós devemos amar a tudo e a todos. Devemos ser irmãos, até dos móveis, irmãos de um simples armário! Vim de lá gostando mais de tudo! Quantas coisas deixamos de amar, quantas coisas esquecemos de amar. Mas chego aqui e vejo o quê? Que ninguém ama ninguém, que ninguém sabe amar ninguém. Então é preciso trair sempre, na esperança do amor impossível (agarra o irmão) Tudo é falta de amor: um câncer no seio ou um simples eczema é o amor não possuído!

 Segundo irmão: - Bonito!

Primeiro irmão: - Que papagaiada!

Tio Raul (contido) – E finalmente, qual é a conclusão?

 Mãe (para si mesma) – Meu filho não diz coisa com coisa...

Gilberto: - É que Judite não é culpada de nada! E se traiu, o culpado sou eu, o culpado de ser traído! Eu o canalha!

 Tio Raul: (segura Gilberto pelos braços e sacode-o) – Tua cura é um blefe. A tu generosidade é uma doença! Agora sim, é que estás louco!

 Gilberto (recuando) – Vocês exigem o quê de mim?

 Tio Raul: o castigo de tua mulher!

Mãe:  - Humilha bastante

Primeiro irmão: - Marca-lhe o rosto!

Gilberto: Devo castiga-la eu mesmo? Na frente de vocês? (com súbita exaltação) Judite! Judite! (para os outros) Vocês vão ver! Vão assistir! (grita) Judite! Judite!

Judite (aparece em pânico) – Que foi meu Deus do céu?

 Gilberto: - Perdoa-me por me traíres!” (pág. 57; pag58)

 

 Gilberto, porém, não cede aos desejos da família. Ele crê apenas na esposa, no jeito que ela é, e acredita, conforme fala para família que:

“Gilberto: - Amar é ser a quem nos trai!” (pg58)

 Gilberto voltou outro homem, Raul envenena Judite afirmando que está no lugar do irmão louco.

 “Raul ... Agora confessa a mim antes de morrer: tens um amante?

Judite: (com um riso soluçante) – Um amante? Um só? (violenta e viril) Olha: vai dizer a tua mãe, a teus irmãos, as tuas tias – fui com muitos, fui com tantos! (subitamente grave e tenra) já me entreguei até por um bom dia! E outra coisa que tu não sabes adoro meninos na idade as espinhas!

 Tio Raul: - Ou te matas ou eu te mato? Bebe!

Judite (mudando de tom, quebrando a voz num soluço) – Eu me arrependo do marido não me arrependo dos amantes! Apanha o copo que vai levando a boca, lentamente. Enrouquecida) Minha Filha!

 

De volta ao tempo presente, no terceiro ato, Tio Raul evoca a semelhança entre Judite e sua sobrinha, Glorinha, para concluir que ambas terão o mesmo destino. Aparentemente, Raul puniu o pecado de Judite, e agora quer punir o de Glorinha. Numa agressiva discussão, porém, ele confessa que amava Judite e a matou porque ela o repeliu.

“Tio Raul: (soltando-a) – Mas não te farei nada, nada! Escuta, Gloria, antes de morrer escuta! Contei a história de tua mãe, porém não te disse que não a amava, que sempre a amei. Ainda agora, neste momento eu a amo. (berrando) Eu matei a mulher, a cunhada que me repeliu e porque me repeliu (agarra novamente Glorinha num soluço imenso) JUDITE!

Glorinha: - Não sou Judite!]

Tio Raul: (atônito) – Então quem és?

Glorinha: - Gloria!

 Tio Raul: (num lamento) – És Glória não és Judite?

Glorinha: - Judite morreu!

Tio Raul: (sem ouvi-la delirante) – Judite quando eu te fiz beber veneno e caíste de joelhos, com as entranhas em fogo, eu te segurei pelos cabelos, assim Judite! (e de fato agarra Glorinha pelos cabelos) Vi que ia morrer o corpo beijado por tantos, nunca beijado por mim! Foste minha agonizando, querida! Pela primeira vez, minha! Cerraste os lábios, para o meu beijo..., mas nem teu marido, nem teus amantes, ninguém te beijou na boca que morrias, só eu!

Glorinha: - Assassino!

Tio Raul (num meio sorriso soluçante) Eu já não sabia se teu soluço era agonia ou volúpia, Judite...

Glorinha (exasperada) – Sou Glorinha!

Tio Raul: - Oh, Judite, possuída por muitos, só amada por mim! (está falando rosto a rosto com Glorinha)

Glorinha: (violenta) Basta falar de minha mãe!

 Tio Raul (voltando a realidade) – Tua mãe...(pausa) (num esgar de choro) Está chegando o momento em que devias estar na casa das meninas! (trôpego, vai buscar o copo)

 Glorinha – Anda como o deputado!

 Tio Raul (está apanhando o copo. De costas) Insulta! (está empunhando o copo com a mão que treme)

 Glorinha- Treme como o deputado! (vem tio Raul ainda trôpego)

Tio Raul: Pronto Glorinha!

 Glorinha: já não sou Judite?

Tio Raul: (indica o copo em cima do móvel) (mais velho do que nunca) – Segura Glorinha... Vamos beber... no mesmo copo..., mas antes de morrer... ficaste nua para o deputado?

Glorinha (segura o copo) – Bebe!

 Tio Raul: - Tu me amas?

 Glorinha – Te amo!

 Tio Raul: - Glorinha, eu te criei para mim. Dia e noite, eu te criei para mim! Morre pensando que eu te criei para mim!

 (Os dois levam o copo aos lábios ao mesmo tempo. Tio Raul bebe de uma só vez. Glorinha ainda não bebeu. Tio Raul cai de joelhos soluçando.)

Tio Raul: Bebe!  Morre comigo! (Num grosso gemido) “(pag,75. pag76)

Tio Raul morre e Glorinha liga para o Bordel avisando quer seu tio havia aceitado ela trabalhar no bordel.

Ao ver seu marido Raul agonizando numa doçura nostálgica, tia Odete diz: - Meu amor!

“Perdoe-me por me traíres”, de Nelson Rodrigues, merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 15 dezembro 2021 | Tags: Teatro, Tragédia


< O Pagador de Promessa As meninas >
Perdoa-me por me traíres
autor: Nelson Rodrigues
editora: Nova Fronteira

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