A Serpente
A relação de Nelson Rodrigues com suas peças guarda algumas semelhanças com a sua história de vida. E os seus personagens são frutos do jornalismo, que sempre esteve presente em sua vida. Arrisco a dizer que a sua história de vida tem uma relação umbilical com o jornalismo. Foi aos 14 anos que Nelson Rodrigues começou no jornalismo. Seu pai, Mário Rodrigues, foi fundador do jornal A Manhã e se tornou repórter policial. Seu pai não conseguiu manter o jornal. E acabou fundando um outro jornal, chamado Crítica. Nesse ano de 1929, ele presenciou uma tragédia familiar. Seu irmão Roberto Rodrigues (1906-1929), também jornalista, foi assassinado pela escritora Sylvia Thybau (1902-1936) por causa de uma reportagem sobre seu suposto adultério. Essa foi a primeira tragédia de Nelson Rodrigues.
Essa tragédia abalou seu pai, que se entregou ao alcoolismo e veio a falecer em 1930, a segunda tragédia. Meses depois, o jornal foi fechado por Getúlio Vargas. A família vivenciou uma grande dificuldade financeira, o que significa fome mesmo. E para piorar ainda mais a situação, Nelson Rodrigues acabou contraindo uma tuberculose juntamente com seu outro irmão, Joíre, que não teve a mesma sorte e acabou morrendo de tuberculose, sua terceira tragédia.
Recomendo “O Anjo Pornográfico”, de Ruy Castro. Devo dizer que ainda não li, mas, tratando-se de Ruy Castro, tenho certeza de que vou adorar. Em breve, estará aqui neste espaço, resenhado, prometo!
Engraçado, hoje eu me pergunto: se Nelson Rodrigues, com suas opiniões fortes e polêmicas, estivesse vivendo nos dias de hoje, nesta era das polícias digitais, o que aconteceria com ele? Tenho resposta: seria cancelado na hora.
A peça de que falaremos hoje é “A Serpente”. Uma peça de um ato. Foi seu último trabalho. Devo dizer que existe uma peça-filme no YouTube, aliás, uma das melhores coisas que esta era digital nos presenteou
Vamos falar de “A Serpente”?
Essa peça é curta, tem apenas um ato. “A Serpente” é uma trama que gira em torno de duas irmãs de classe média carioca que se casam no mesmo dia e vão morar no mesmo apartamento com seus respectivos maridos.
A peça começa com a separação de Décio, que está fechando a mala, levanta-se, vira-se para Lígia e diz:
“Décio: Pronto.
Ligia: Você vai falar com papai?
Décio: Pra quê falar com seu pai? Não falei com a principal interessada, que é você? Perde as ilusões sobre teu pai. Teu pai é uma múmia, com todos os achaques das múmias.” ( pág. 9)
Décio a esbofeteia e Lígia cai de joelhos. Décio apanha a mala e sai de casa. Após a saída de Décio, entra sua irmã Guida. Lígia explica o ocorrido. Décio saiu de casa. Guida tenta acalmá-la e tenta entender o ocorrido:
“Guida: Você e Décio? E tão de repente? Não acredito que vocês tenham separado. Você teria me falado antes. Outro dia, eu disse a Paulo – “Ligia não me esconde nada”. Mas escuta. Papai sabe?
Ligia: Sabe como? Nem desconfia
Guida: E o amor?
Lígia: Que amor?
Guida: O amor de vocês. Nunca, até esse dia, você se queixou do seu casamento. Até agora você não disse uma palavra contra Décio.
Lígia: Um canalha
Guida: Só hoje você descobriu que ele era um canalha?
Lígia: Você fala de nosso amor. Quero que saiba o seguinte. Décio disse, antes de ir embora, que papai é uma múmia, com todo os achaques das múmias. ( violenta). E, então eu descobri tudo. Papai é a múmia. Por isso ele podia achar que eu e Décio éramos felicíssimos. Mas você, que não é múmia, você tinha obrigação de enxergar a verdade, Guida!
Guida: Mas criatura, nós moramos no mesmo apartamento. Uma parede separa s suas intimidades e as minhas.
Lígia: Por isso mesmo. Ouve-se no meu quarto tudo o que acontece no teu. Chega a ser indecente. Ouço os teus gemidos e os de Paulo. Mas você nunca ouviu os meus. Simplesmente porque no meu quarto não há isso. Esse mistério nunca te impressionou?
Guida: Mas Paulo que também não múmia acha você felicíssima.
Lígia: Se parecíamos felizes, é porque somos dois cínicos....”( pág. 10; pág. 11)
O conflito central surge quando Lígia é abandonada pelo marido após um ano de casamento.
“Lígia: (aos gritos) Ele me esbofeteou. Torcia meu braço e com a mão me batia na cara. Eu guardei minha virgindade para o bem amado. E o tempo passando, e eu cada vez mais virgem. Hoje, ele falou rindo: “Diz que és uma puta”. Respondi: “sou uma prostituta”. Berrou – Puta!. E eu disse: “Sou uma puta!” Basta! (pág13)
Lígia ainda é virgem, e sem relação sexual ameaça a se jogar do alto do prédio que eles moram.
“Lígia: Agora me deixa falar. Sabe o que eu vou fazer? É tão fácil, tão simples morrer. Tomei horror da vida. Guida eu não fui feita para viver” (pág. 14)
Em um gesto de solidariedade, com medo de que a irmã se mate. Guida oferece seu próprio marido, Paulo, para que ela não se mate e ao mesmo tempo se desvirgine.
“Guida: Lígia, faça o que você quiser, mas escuta um minuto. Você quer ser feliz como eu, quer? Por uma noite? Olhe para mim, Lígia. Quer ser feliz por uma noite?
Lígia: Você não sabe o que diz
Guida: Te dou uma noite. E você nunca mais terá vontade de morrer.
Lígia: É impossível que. Fale claro. O que é você está querendo dizer?
Guida: É o que você está pensando, sim.
Lígia (atônita) Paulo?
Guida: Paulo.” (pág. 16)
Enquanto Lígia e Paulo estão fazendo sexo, Guida se revira na cama. Lígia grita de prazer, Guida levanta-se. Ela começa a se sentir tomada por sentimentos contraditórios a cada gritinho de prazer da irmã. Quando chega ao orgasmo, Guida cai de joelhos quando ouve os gemidos da irmã.
Depois da noite de sexo, Guida é tomada pelo ciúme. E pede que Paulo nunca mais mencione o ocorrido para ela:
“Paulo: Ah, querida!
Guida: eu queria te pedir que.
Paulo: Fala
Guida: Te pedir que nunca a gente falasse nisso. Jura.
Paulo: Juro
Guida: Não jure tão depressa!
Paulo: Está bem. Juro!
Guida: Não brinque
Paulo: Já vi uma coisa
Guida: O que?
Paulo: Você está triste.
Guida ( desesperada) : Não, Paulo, não. Você é que mudou
Paulo: Você se arrependeu?
Guida: Juro, Paulo! Apenas não quero falar nunca mais sobre o que houve.
Paulo: Vem cá
(Guida se deita a seu lado)
Guida: Preciso dormir
Paulo: Eu também]
Guida: Ah, Paulo, eu não grito como Lígia!...”( pág. 21)
Após a noite de sexo vivida entre Ligia e Paulo. Guida é tomada pelo ciúme e começa a desconfiar do marido e da irmã, exigindo que os dois não se encontrem mais.
“Paulo: ... Esquece Lígia.
Guida: (violenta): Esqueço se ela te esquecer, e se tu a esqueceres. Se ela não te olhar. Não quero um bom dia entre você e Lígia. Quando você estiver fora, ela estará aqui e comigo. “( pág. 23)
Guida proíbe conversas e impede a saída deles no mesmo horário.
Enquanto isso, vemos Décio, marido de Lígia, com a sua amante, chamada Crioula. A relação entre os dois é quente. Ela era a lavadeira do casal:
“Décio: Tu me achas macho de verdade?
Crioula: Nunca vi home tão macho.
Décio: Hoje, é no 602. Sim sexto andar
Crioula: Trouxe um presente
Décio: Qual o presente? Crioula: Adivinha.
Décio: Outro dia foi pipoca
Crioula: Errou
Décio: Então, diz
Crioula: Olha.
Décio: Me dá
Crioula: Não!
Décio: mas que piada é essa?
Crioula: Duas calcinhas.
Décio: Dá isso aqui.
Crioula: Vou dar, vou dar. Não manjou que uma calcinha é da sua mulher, a outra calcinha é da tua cunhada?
Décio: Que ideia genial Crioula: Eu também tenho o intelectual desenvolvido.
Décio: Me dá. Mas estão lavadas?
Crioula: Antes de lavar roubei as duas.” (pág. 26)
A relação de Décio com Crioula ilustra a fragilidade dos laços conjugais e os desejos humanos. Mas na verdade há algo mais. Nos faz lembrar da relação entre o senhor de engenho e a escrava.
“Décio – Até o dia do meu casamento eu não tinha sido homem com mulher nenhuma. Aquele senador disse na tribuna: – “Eu me casei virgem”. Ouçam, ouçam todos. Eu não conhecia nem o prazer solitário. Na véspera do meu casamento. Ouçam! Ouçam! Um psicanalista me disse: – “Se não pode copular por vias normais, use a via anal”. Eu, então, expliquei: – “Mas eu vou me casar amanhã”. E lhe disse mais: – “Fui um menino e um adolescente sem o prazer solitário”. E o cara me respondeu: – “Tudo isso para mim é perfumaria”. Pois eu me casei e começou a nossa noite. Os dois, na cama, lado a lado. De repente, digo à minha mulher: – “Vamos dormir”. “O sexo de minha mulher é uma orquídea deitada”. A partir de então, todas as noites, eu esperava. Até que, um dia, vi a nova lavadeira. Os peitos, a barriga, as nádegas e as ventas triunfais. Pela primeira vez, tive um desejo fulminante...”( pág. 25)
A presença de Crioula, embora seja uma personagem periférica, serve para entendermos as motivações de Décio e o impacto de suas ações em Lígia e na irmã, Guida, e no desenrolar da trama. No entanto, Décio vai à casa de Lígia. E o que ele quer? Tirar a virgindade de sua ex-esposa.
“Décio (baixo, mas violento) – Não me trate assim. Agora eu não mereço. Lígia, eu quero completar. Estou aqui por causa de sua virgindade. Agora eu posso, Lígia, agora eu posso. Você vai deixar de ser virgem, hoje, agora. Graças a mim.”(pág. 28)
Na tentativa de violentá-la, Lígia o xinga e diz o seguinte:
“Lígia: Eu agora tenho motivos, um motivo para não ser tocada por você. Se me tocar. Quer o escândalo?
Décio: Houve o milagre.
Lígia: Você pensa que vai me violentar?
Décio: Você está dominada.
Lígia ( gritando):Eu chamo o Paulo!
Décio: Quebro a cara dele, a tua e da tua irmã. Mulher idiota, escuta: - Agora sou outro. Você conheceu um Décio que não existe mais. Com a mulher que eu arranjei, eu dei quatro sem tirar.” ( pág. 28; pág. 29)
Nesse momento, chega Paulo e Guida. Lígia corre e fica nos braços de Paulo para fugir da voracidade sexual de Décio. Guida desconfia desse movimento de sua irmã ao encontro do seu próprio marido. Guida diz que não é cega. E está vendo tudo. E no meio da discussão acalorada, Guida diz para irmã:
“Guida: Pois ouve ainda. Você não pode pensar, ou tocar no meu marido. Ou sorrir. A gente não sorri para todo mundo. Você não pode sorrir para o meu marido. Escuta, Lígia. Você não me conhece. Paulo não me conhece, eu própria não me conhecia. Eu me conheço agora. Se você mais do que uma noite que já teve eu mato você. Ou então mato o único homem que eu amei ( com ar de louca) Paulo dormindo e morrendo.
Lígia: (batendo os pés como uma bruxa): Chega, sua bruxa! Eu não aguento mais!
Guida: Eu disse ao meu marido. – “Vocês não vão se encontrar lá fora”. Quando sair você fica. Ficaremos sozinhas. Ouviu?
Lígia: Ouvi” (pág. 31)
O ciúme agora está ingovernável. Guida questiona o marido. Procura sexualmente Paulo, mas ele não demonstra interesse.
“Lígia: Faz uma semana que Lígia esteve aqui. Vocês estiveram aqui. Uma semana e você não me fez uma carícia distraída. Você não me procurou mais.
Paulo: Não te procurou mais como?
Guida: Não seja cínico, Paulo!
Paulo: Você nunca me falou assim.
Guida: Você não me procurou mais, sexualmente entendeu, agora?”( pág. 32)
Paulo perde o interesse por Guida e é despertado por um desejo, por Lígia, o que só agrava a situação. Agora, Paulo e Lígia se encontram fora de casa e num desses momentos Lígia faz a seguinte revelação:
“Lígia: “... De vez em quando, eu me assusto. Por falar nisso você sabe o que eu achei lindo, outro dia? Foi quando você disse que matava Décio. Por minha causa. E eu Paulo, que me lancei nos teus braços. Você pensa que Guida perdoou ou esqueceu?” ( pág. 32)
Lígia e Paulo se encontram apaixonados.
“Lígia: Quero tanto ser tua outra vez. Pode fazer tudo. Até aquilo que eu te deixo fazer.
Paulo: Vem cá. Vamos ali.
Lígia: vamos fazer em pé? Eu até que gostaria.
Paulo: Na mata. É bom amar com gente passando. E pode aparecer um assaltante. Não tens medo?
Lígia: Não tenho medo.
Paulo: Pois eu tenho medo
Lígia: deixe que todos venham e parem que olhem” ( pág. 36; pág37)
Guida soube de tudo. Ela imagina o trajeto dos dois. Eles estavam no Alto da Boa Vista. E ela visualiza:
“Guida: Agora! Eu sei que vocês não conversaram, apenas. Conheço o meu marido, minha irmã não conheço. Também te conheço pelos gritos. Hoje na hora do amor, ele te levou até um atalhozinho. E te perguntou, não te perguntou? “ E se aparecesse um assaltante, ou dois, ou três assaltantes? Se eles te vissem nua? E se um deles me apontasse um revólver, tu dirias: - Não reages para não morrer. Depois os bandidos fugiriam. Vejo você desmaiada. E se eu te possuísse também depois dos outros? Agora responde: foi assim, que ele te falou, ou não?
Lígia: não digo
Guida: Ou preferes que eu te arranque os olhos? Foi assim que ele te falou, ou não?
Lígia: Foi, foi!” ( pág. 38)
Guida e Paulo estabelecem um diálogo, que evolui conforme as respostas de Paulo. Ela beija Paulo:
“Guida: Foi assim que vocês se beijaram, hoje?
Paulo: Perdi você
Guida (vivamente): Perdão meu bem. Eu não queria te dizer isso, eu. Tua boca. Sopra no meu rosto. Outra vez o cheiro de sexo. Vocês estiveram juntos. Eu não acredito mais em você( soluçando.) Tudo era mentira e continua sendo mentira. Olha para mim. Escuta. Queres que eu seja a mesma? E que esqueça Lígia? Você dirá o que eu quero ouvir?
Paulo: Direi o que você quer ouvir
Guida: Responde: Vocês estiveram juntos?
Paulo: Ainda essa pergunta?
Guida: Eu sei! Escuta! Sei que vocês se encontraram! Ninguém tira isso de mim! Mas quero ouvir a sua confissão. Você mentiu?
Paulo: Menti
Guida: Escuta, escuta! Você fez com a mulher de uma noite: o que só podia fazer comigo. ( ela de frente com a plateia) Você me disse: - só faço contigo e porque é contigo.”. Mentira, tudo mentira. Maldito esse beijo com gosto de sexo. E essa cínica do lado ouvindo tudo, a cínica!” ( pág. 40)
Após a confissão, Guida diz que a partir daquela confissão os dois não dormirão no mesmo quarto.. Paulo senta-se na beira da janela e faz com que Guida se sente também. Os dois estabelecem um diálogo sinistro. E Paulo não evita a queda de Guida. Guida morre. Lígia aparece:
“Lígia(desatinada): O que foi isso?
Paulo: Guida caiu
Lígia: Foi você.
Paulo: Ou pensava que fosse quem?
Lígia: Nunca pensei que.
Paulo (desesperado): Desce comigo. Temos que dizer que foi loucura – um acesso de loucura.
Lígia ( frenética): Mas eu tenho medo de não chorar!
Paulo: Não grita, pelo amor de Deus, não grita! Pensa na tua culpa e chora!
Lígia ( aos soluços) : Eu sei que não vou chorar...( pág. 42)
Em “A Serpente”, vemos presentes alguns elementos recorrentes das tramas de Nelson Rodrigues: o ciúme, a obsessão sexual, a traição, a família, a religião e a morte, a paixão, o desejo, a violência.
Vemos um marido, Décio, impotente para a mulher e extremamente viril para com as outras. Guida, a protagonista, que oferece seu marido à irmã, Lígia. O marido, Paulo, que deseja a cunhada (Lígia) e assassina a esposa (Guida). Lígia, que aparentemente sofre de uma certa frigidez, mas que se entrega ao cunhado com todo furor. E tudo isso dentro de um panorama bem brasileiro. A satisfação e a insatisfação são dois elementos centrais da trama. E “A Serpente” é a metáfora bíblica para entendermos todo esse enredo.
“A Serpente” é uma das últimas peças de Nelson Rodrigues, foi escrita em 1978. Tem elementos que lembram as tragédias gregas. Vale a pena! Nelson Rodrigues merece um lugar de “HONRA” na sua estante.