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Eumênides

A peça “Eumênides” começa fora do templo de Apolo em Delfos. Este templo era o lar de Apolo A profetisa entra em cena e se encaminha para a porta fechada do templo. Antes de entrar, ela detém-se e se inclina reverencialmente diante da trípode. A trípode é um banco de três pés e sem encosto onde sentavam-se as pitonisas (profetisas) quando pronunciavam em seu oráculo. Ela está chegando para trabalhar.

Ela honra seu deus Apolo e a Mãe Terra. Ela elogia Apolo, junto com Zeus, por trazer a civilização para a terra selvagem. Ela também menciona Atena em suas preces, a deusa da sabedoria; Dionísio, o deus da folia e do vinho; e Poseidon, o deus do mar. Ela ora para Apolo para que conceda uma profecia.

Quando ela abre as portas do templo e entra, ela encontra algo assustador, um homem armado com uma espada está dormindo lá dentro. Ao seu redor encontram-se as “Fúrias” (Erínias), as horríveis deusas da vingança.

No entanto, o homem que estava dormindo era Orestes, que veio a Delfos para ser purificado após matar sua mãe, Clitemnestra, no final da peça “Agamenon”. A sacerdotisa fica sem ação com o que acabou de ver. Orestes não estava só a seu lado. Além das Fúrias, estava Apolo de pé ao lado de Orestes.

Orestes ainda estava encharcado com o sangue de sua mãe (Clitemnestra). Seu estado físico simboliza claramente uma culpa moral pela morte de sua mãe. No entanto, Orestes tem a seu favor o deus Apolo, quem abençoou essa vingança e o tem como testemunha.

“Apolo: Jamais te trairei! Serei até o fim teu guardião fiel, quer esteja a teu lado, quer nos separem distâncias intermináveis, e em tempo algum protegerei seus novos inimigos. Já podes ver as Fúrias todas dominadas, vencidas por pesado sono, ei-las imóveis, estas virgens malditas, filhas antiquíssimas de um passado remoto; nunca as possuíram quaisquer dos deuses, homens e nem mesmo fera. Nascidas para o mal, coube-lhes a partilha a treva deletéria do profundo Tártaro, criaturas malditas por todos os homens e pelos deuses que se reúnem no Olimpo. Deves, porém, fugir daqui e ter cuidado. Elas querem continuar a perseguir-te e te procurarão por todos os lugares, tentando sempre expulsar de ondes estiveres em tuas longas caminhadas sem destino, além do mar das cidades que ele cerca. E não te deixes dominar pelo cansaço enquanto pastoreias tuas desventuras; mas, quando perceberes que afinal chegaste à nobre cidade de Palas, ajoelha-se e abraça a imagem antiquíssima da deusa. Na mesma ocasião, diante dos juízes e com palavras adequadas ao momento descobriremos a maneira livrar-te definitivamente de teu sofrimento, pois fui eu mesmo, e mais ninguém, que te induzi a ferir mortalmente a tua própria mãe. (pág. 145; pág. 146)

 

Apolo amaldiçoa as Fúrias explicando que momentaneamente as embalou para elas dormirem. Ele também admite que elas o enojam e diz que são odiadas tanto pelos deuses quanto pelos homens. Ele exorta a Orestes a continuar fugindo. Orestes confia em Apolo. Afinal, Apolo é corresponsável pelo crime de matricídio de Orestes e pelos tormentos que agora sofre.

Subitamente, entra o fantasma de Clitemnestra, a falecida mãe de Orestes, que aparece e amaldiçoa as Fúrias por sua preguiça. Ela mostra os cortes fantasmagóricos em sua pele feitos pela lâmina de Orestes, ela implora para que as Fúrias busquem a vingança.

“Clitemnestra: Dormis profundamente! Qual serventia de sonolentas como vós? Por vossa causa sou vilipendiada no mundo dos mortos, que não cessam de me humilhar qualificando-me injuriosamente de assassina, lá, vagando envergonhada em meio a tantas sombras! Sou acusada nas profundezas do inferno de um crime bárbaro e como se não bastasse após a minha morte nas mãos do meu filho (destino atroz!) nenhum dos deuses se revolta e mostra cólera a favor da mãe! Vede com vossos corações estas feridas pois quando adormecida a mente é iluminada e seus olhos são muitos, mas a luz do dia nosso destino é totalmente imprevisível. Ah! quantas vezes viestes sugar em bandos as minhas oferendas generosas, as apaziguadoras libações sem vinho, e vos propiciei banquetes numerosos durante as noites sacrossantas nos altares iluminados pelas chamas crepitantes em horas execradas por outros deuses.! E vós calastes tudo isso sob os pés! Ele escapou e desapareceu daqui como se fosse uma corça ainda nova livrando-se num salto ágil da armadilha e zombando de vós com um riso sarcástico! De pé, deusas das profundezas infernais! Como num sonho invoco-vos, eu, Clitemnestra!...” (pág. 147)

Clitemnestra fala das oferendas oferecidas às Fúrias. As Fúrias falam durante o sono. Clitemnestra desaparece.

As Fúrias acordam, e seu líder ordena que procurem Orestes. Elas lamentam o fato de que os olimpianos – os jovens deuses – controlam o mundo.  Um das Fúrias diz:

“Outra Fúria: Tenho a impressão de ver com os próprios olhos o centro deste mundo, poluído pelo sangue de um bárbaro homicídio.

Coro: Apolo, deus-profeta, conspurcou seu próprio lar sem qualquer compulsão e sem ser provocado transgrediu as sacras leis; por um simples mortal o deus rasgou o pacto mais antigo.

Outra Fúria: Agindo assim ele ganhou o meu ódio sem conseguir salvar seu protegido. Ainda que se oculte sob a terra Orestes não se livrará de nós. Culpado de assassinato, onde ele for encontrará por certo um vingador disposto a golpeá-lo na cabeça” (pág. 150)

Aqui podemos ver que as Fúrias representam uma ordem de deuses mais antiga e primitiva, invejosa dos deuses olímpicos (Zeus, Apolo, Atena etc.) por seu prestígio e poder. Em grande parte desta peça podemos ver o conflito entre o velho mundo selvagem e o novo mundo civilizado.

Apolo surge de seu templo com seu arco e flecha para repelir as Fúrias. Ele amaldiçoa a todas chamando-as de monstros e descreve os horrores quando a justiça se confunde com a vingança. Dizendo que as Fúrias serão párias para sempre.

“Apolo: ... Não! Vosso lugar é lá onde há sentenças de degolamento e olhos a ser arrancados, ou então onde gargantas são abertas, ou ainda onde se mutila, onde os seres humanos morrem lapidados, onde vítimas empaladas, gemebundas esvaem-se numa agonia interminável! Ouvistes, monstros odiados pelos deuses a relação de vossas festas preferidas? E vosso aspecto condizente com tal gosto! Deveríeis viver entre antros de leões sorvedores de sangue, em vez de poluir os muitos visitantes do templo profético! Ide passar sem um pastor longe daqui, pois deus nenhum desejaria tal rebanho.” (pág. 151)

O líder das Fúrias, no entanto, contra-ataca dizendo a Apolo que ele é o responsável pelo  crime  de matricídio de Orestes. As Fúrias saem, indo em direção a Atenas. Elas estão determinadas a caçar Orestes e levá-lo à justiça – ou seja, rasgá-lo em pedaços. Depois que Apolo se retira, Orestes aparece; ele faz uma oração à deusa Atena, e tudo se desenrola agora na cidade de Atenas. As Fúrias estão exaustas de tanto procurar Orestes. Quando Orestes termina de fazer uma oração desesperada a Atena, quem aparece? As Fúrias cantam uma canção mágica deixando Orestes imobilizado. Elas lembram a Orestes do sangue da mãe e agora reivindicam o sangue dele como pagamento, ameaçando a medula dos seus ossos. Elas também lembram a Orestes que, mesmo na morte, ele será punido eternamente por seus erros.

 

“Coro: ... Por mais potente que seja o culpado erguemo-nos imediatamente e iniciamos a perseguição até mata-lo na poça do sangue ainda fresco da mísera vítima. Aqui estamos e nosso propósito é evitar que divindades novas tenham de arcar com a obrigação; também queremos afirmar agora que falta a qualquer deus ou autoridade para afastar-nos de nosso dever, então Orestes não pode sequer ser conduzido a à presença de um deles em busca da divina decisão. Zeus considera indigna de seu cetro a vizinhança dessa gente impura ainda maculada pelo sangue. As glórias mais prezadas pelos homens que vivem sob o céu se desintegram e perdem-se aviltadas cá na terra tangidas pelos nossos véus tenebrosos e pelos malefícios oriundos de nossos passos numa dança tétrica. Saltamos com nossos pés vigorosos para pisotear pesadamente até os corredores velozes. Em sua insanidade Orestes cai, sem perceber, num delírio que o perde (é impenetravelmente negra a noite que sua mácula envolvente o cegasse), enquanto uma nuvem sombria desce e encobre o palácio paterno de acordo com rumores aflitivos. Eis-nos aqui; lentas para pensar, mas decididas para executar, nunca esquecendo nos crimes praticados, nós, as temíveis temos o poder de bem cumprir nossa missão, humildes e desprezadas, distantes dos deuses num pântano sem sol, intolerável para quem já morreu e para os vivos. Então, qual o mortal que pode ouvir sem reverência e sem grande temor a lei que nos impôs outrora a Parca ratificada por todos os deuses?? Ainda é nosso apanágio antigo e não nos faltam altas honrarias, embora morreremos num negro abismo onde jamais entrou o sol”. (pág. 159; pág. 160)

Atena entra, armada para o combate, e vê Orestes e as Fúrias em seu altar. Ela pergunta quem são, e as Fúrias respondem:

“Corifeu: Irá saber de tudo resumidamente, filha de Zeus: somos as tristes descendentes da negra noite; nas profundezas da terra, onde moramos, chama-nos de Maldições.” (pág. 160; pág. 161)

Atena então se volta para Orestes, pedindo-lhe que conte sua história e se veio até ela para ser purificado. Ele, porém, afirma que não precisa ser expurgado, pois Apolo já o perdoou por seu pecado. Orestes então passa a explicar sua história, contando a razão da morte de sua mãe. Ele a matou por vingança, mas acrescenta que o deus Apolo lhe ordenou que  fizesse isso. Por fim, ele também afirma que cumprirá a decisão de Atena.

Atena tem diante de si uma decisão complicada: por um lado, ela reconhece que Orestes veio até ela como um suplicante e que ela deveria ter misericórdia dele. Por outro lado, ela teme as Fúrias, pois, caso elas não vençam, elas podem querer se vingar espalhando veneno por onde passarem. Atena então chama os melhores homens de Atenas como júri, e eles decidirão o caso.

Cabe aqui uma observação, Ésquilo nos mostra a visão de mundo das Fúrias. Elas não acreditam em vingança em vez de justiça. Não! A bússola moral das Fúrias é bastante forte. Elas não atormentam inocentes, elas atormentam apenas aqueles que merecem punição. Elas interrogam Orestes, que confirma que matou sua mãe, Clitemnestra. O motivo foi o fato de ela ter matado o Agamenon, o pai de Orestes. E que ela não é parente de sangue dele. Agora as Fúrias questionam Apolo. Apolo apoia tudo que Orestes fala. Apolo diz que as mães são apenas incubadoras de embriões e que apenas os pais são verdadeiramente pais.

“Apolo: Responderei também a isso e saberás que todos os meus argumentos são corretos. Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe – ela somente é a nutriz do germe nela semeado -; de fato, o criador é o homem que a fecunda; ela, como estranha, apenas salvaguarda o nascituro quando os deuses não o atingem. Oferecer-te-ei uma prova cabal de que alguém pode ser o pai sem haver a mãe. Eis uma testemunha aqui, perto de nós – Palas, filha do soberano Zeus olímpico -, que não cresceu nas trevas do ventre materno; alguma deusa poderia por si mesma ter produzido uma criança semelhante? De minha parte, Palas, sábio como sou, darei  glória a teu povo e tua cidade; quanto a Orestes, que chegou até aqui como tu suplicante, fui seu condutor até a frente de teu templo e tua imagem; ele te traz a sua eterna devoção e a segurança de que terás nele mesmo e em todos os meus descendentes no porvir os aliados mais fieis aos juramentos. (pág. 172; pág. 173)

O julgamento acontece com a participação do povo inclusive. Uma audiência pública, podemos dizer. As Fúrias estão céticas de que Zeus se importaria mais com o assassinato de um pai do que de uma mãe. Elas lembram a Apolo e Atena que Zeus derrotou seu próprio pai, Cronos, para obter o controle do Monte Olimpo.

Apolo fica indignado com as Fúrias, as insulta dizendo que os deuses as detestam e as ameaça com o poder de Zeus, mas elas parecem não se importar. As Fúrias mantém-se fiéis às suas crenças – embora elas sejam monstruosas, mas há uma tenacidade moral que não passa desapercebida.

Apolo argumenta que as mulheres simplesmente não são tão importantes quanto os homens e que os pais têm mais direitos sobre os filhos do que as mães. Acaba a argumentação e começa a votação. As Fúrias pensam em vingança caso Orestes não seja condenado. Aqui elas exibem sua natureza territorial e ciumenta, iluminando o conflito entre os deuses olímpicos mais jovens e poderosos.

 Chegou a hora da votação e Atena diz:

 “Atena: Prestai a atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue. A partir deste dia e para todo sempre o povo que já teve o rei Egeu terá a incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal...” (pág. 174)

A intervenção divina e a justiça dos humanos entram em plena conexão na história. Os deuses têm um papel essencial na decisão. A votação está empatada. Isso mostra a dificuldade do caso. Mesmo sob a ameaça das Fúrias de amaldiçoar a cidade, os cidadãos atenienses não mostraram medo nem receio. Votaram com a consciência. Orestes é absolvido. Com isso a maldição da família dos Atreus, que foi amaldiçoada por gerações, consegue quebrar o ciclo que dizimou a família.

As Fúrias não engolem a decisão, e a peça atinge o clímax. As Fúrias juram vingança contra Atenas. Atena, a deusa, tenta chegar a um consenso. As Fúrias, como deusas da vingança, não abrem mão de punir o criminoso (Orestes), e elas ameaçam punir a própria cidade de Atenas, pela absolvição de Orestes. O impasse está criado, Atena oferece a elas um papel essencialmente novo. E qual é esse novo papel que foi aceito através de muita negociação?

Atena aceita compartilhar o seu poder com elas. Preocupada em ver sua cidade desprotegida, as Fúrias passam de deusas da vingança para as deusas de proteção e bênção. Serão conhecidas como Eumênides (as Benignas), pondo fim à sua crise de identidade.

Assim a ideia governante de “Eumênides” de Ésquilo é a transição da justiça baseada na vingança e no castigo para uma justiça que busca a reparação e a reconciliação. E óbvio: a importância da justiça divina para guiar a humanidade na busca por uma justiça mais justa e equilibrada.

“Eumênides”, de Ésquilo, merece um lugar de “HONRA” na sua estante.


Data: 19 abril 2023 | Tags: Tragédia, Grega


< Édipo em Colono Pesadelo Ambicioso >
Eumênides
autor: Ésquilo
editora: Jorge Zahar Editor
tradutor: Mário da Gama Kury

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