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Vestido de Noiva

“Vestido de Noiva” é para mim uma das melhores peças de Nelson Rodrigues. É um mergulho na mente humana, desafiando as convenções teatrais tradicionais. A trama gira em torno de uma família carioca de classe média, que serve como pano de fundo para o desenrolar de conflitos emocionais intensos, marcado por reviravoltas e revelações que desafiam a normalidade familiar. A peça aborda temas familiares, segredos e moralidade, que acabaram virando características típicas das obras de Nelson Rodrigues. Fico imaginando como deve ter sido a primeira apresentação dessa peça para o público da época. Deve ter sido um choque.

“Vestido de Noiva” foi a segunda peça escrita por Nelson. Seu primeiro trabalho foi “A Mulher sem Pecado”, em 1942. A pretensão inicial dessa peça era conseguir uma forma de sustento, já que o jornalismo não conseguia cobrir as despesas pessoais de Nelson Rodrigues na época.  Mas, para isso, teve que disputar público com “A Família Lero-Lero”, comédia de Raymundo Magalhães, que batia recordes de público e bilheteria.  A peça  “A mulher sem Pecado” não obteve o sucesso nem obteve a simpatia do público, e o resultado não poderia ser outro,  um verdadeiro fracasso de bilheteria e de público.

Mas foi em 1941 que Nelson Rodrigues escreveu  “Vestido de Noiva”. Foi escrita em uma semana e encenada dois anos depois. A direção coube a  Zbigniew Marian Ziembinski, que tinha acabado de chegar ao Brasil, vindo da Polônia, refugiado.

Ziembinski deu forma ao texto e com muito trabalho revolucionou  todas as concepções de teatro brasileiro. Sem dúvida alguma, Nelson Rodrigues tem  muito que dividir esse sucesso com o mestre Zimba, como ele era chamado. Como um pintor de cena, aquele que cria uma encenação deu à peça uma nova cor. Sob sua direção, ele soube equacionar os vários planos propostos por Nelson Rodrigues. O plano da memória e o plano da alucinação, o plano da realidade de forma brilhante, segundo os críticos da época.

Em “Vestido de Noiva”, Nelson Rodrigues propõe três planos. O primeiro plano é o plano da alucinação, apresenta as fantasias de Alaíde, seus desejos mais profundos e seus medos. Nesse plano, a realidade e o imaginário se dissolvem completamente. Desejos reprimidos, os medos e as inseguranças de Alaíde. Esse plano ilustra a fragilidade da mente humana e como os personagens são perturbados pelas próprias histórias que criam para si. A alucinação aqui é a janela do inconsciente.

O segundo plano é o da memória, onde Alaíde revela suas lembranças de seu relacionamento com Pedro. Esse plano traz ao palco os flashbacks, as reminiscências. O público entende os sons, a música que se ouve, os segredos do passado e traumas que impactam as relações atuais, oferecendo uma compreensão mais profunda das motivações em jogo.

O terceiro plano é o plano da realidade. Mostra Alaíde  no hospital, após o acidente. Esse espaço é onde os personagens interagem no presente, lidando com situações imediatas concretas. É o ponto de referência para os acontecimentos mais subjetivos que se desenrolam em outros planos.

“Vestido de Noiva” foi a primeira peça que arrancou o véu onde se escondem os desejos e taras mais profundas, as zonas do mistério que habita todos os seres humanos.

Alaíde é a personagem central da trama. E é aí que existe uma divisão do plano do espaço-temporal sem precisar contar uma história de uma forma cronológica. Nelson privilegia a realidade psíquica e seu caráter fundamental da fantasia, pois são os elementos fundamentais do plano da alucinação, que revela os desejos de Alaíde. E aqui vemos o presente o passado e o futuro entrelaçados pelo fio do desejo que os une.

A primeira cena do primeiro ato mostra Alaíde sendo atropelada. Passa o tempo na mesa de cirurgia. Ela precisa se recordar do passado para entender o seu presente. Ela está em busca de Madame Clessi, uma prostituta de luxo que fora assassinada no início do século, para recordar-se de como ela chegou a essa situação. Ela se apresenta como um fantasma. Alaíde encontra-se cansada da vida matrimonial e anseia por aventuras. Seu bom marido, Pedro, é visto por ela como uma monotonia. A monotonia do casamento. Em sua conversa com Clessi, ela diz:

“Alaíde (excitada): Ele era bom, muito bom. Bom a toda hora e em toda parte. Eu tinha nojo de sua bondade. (pensa e confirma) Não sei, tinha nojo . Estou me lembrando de tudo direitinho, como foi. Naquele dia eu disse: “ Eu queria ser madame Clessi, Pedro. Que tal? (pág. 30)

Assim, Alaíde libera os seus fantasmas, o fantasma que habitou as páginas de um diário lido por ela na adolescência e que foi um estimulo para as suas fantasias. Nesse interim, ela tenta decifrar sua relação enigmática com uma “Mulher de Véu”, onde se esconde um estado emocional psíquico.

 Vamos à história?

A peça se divide em três atos. No primeiro ato, os sons da cidade grande, buzinas de carros e som de uma freada, som de vidraças partidas com vídeos estilhaçados. Silêncio. A partir daí, a peça começa e ouvimos por meio de efeitos sonoros o atropelamento de Alaíde.

Alaíde aparece intacta chamando por Madame Clessi. Ela vê três mulheres.

“Voz de Alaíde (microfone) – Clessi…Clessi…

(Luz em resistência no plano da alucinação, três mesas, três mulheres escandalosamente pintadas, com vestidos berrantes e compridos. Decotes. Duas delas dançam ao som de uma vitrola invisível, dando uma vaga sugestão lésbica. Alaíde, uma jovem senhora, vestida com sobriedade e bom gosto, aparece no centro da cena. Vestido cinzento e uma bolsa vermelha.)

Alaíde (nervosa) – Quero falar com madame Clessi! Ela está?

(Fala à primeira mulher que, uma das três mesas, faz “paciência”. A mulher não responde.)

Alaíde (com angústia) – Madame Clessi está – pode-me dizer?

Alaíde (com ar ingênuo) – Não responde! (com doçura) Não quer responder?

(silêncio da outra.)

Alaíde (hesitante) – Então perguntarei (pausa) àquela ali.

(corre para as mulheres que dançam.)

Alaíde – DESCULPE. Madame Clessi. Ela está?

(segunda mulher também não responde.)

Alaíde (sempre doce) – Ah! Também não responde?

(Hesita. Olha para cada das mulheres. Passa um homem, empregado da casa, camisa de malandro. Carrega uma vassoura de borracha e um pano de chão. O mesmo cavalheiro aparece em toda a peça com roupas e personalidades diferentes. Alaíde corre para ele.)

Alaíde (amável) – Podia-me dizer se madame…

(O homem apressa e desaparece.)

Alaíde (num desapontamento infantil) – Fugiu de mim! (no meio da cena, dirigindo-se a todas, meio agressiva) Eu não quero nada demais. Só saber se madame Clessi está!

(A terceira mulher deixa de dançar e vai mudar o disco da vitrola. Faz toda a mímica de quem escolhe um disco, que ninguém vê, coloca-o na vitrola também invisível. Um samba coincidindo com este último movimento. A segunda mulher aproxima-se, lenta, de Alaíde.)

Primeira Mulher (misteriosa) – Madame Clessi?

Alaíde (numa alegria evidente) – Oh! Graças a Deus! Madame Clessi, sim.

Segunda Mulher (voz máscula) – Uma que morreu?

Alaíde (espantada olhando para todas) – Morreu?

Segunda Mulher (para as outras) – Não morreu?

Primeira Mulher (a que joga “paciência”) – Morreu. Assassinada.

Terceira Mulher (com voz e velada) – Madame Clessi morreu! (brusca e violenta) Agora, saia!

Alaíde (recuando) – É mentira. Madame Clessi não morreu. (olhando para as mulheres) Que é que estão me olhando? (noutro tom) Não adianta, porque eu não acredito!…

Segunda Mulher – Morreu, sim. Foi enterrada de branco. Eu vi.

Alaíde – Mas ela não podia ser enterrada de branco! Não pode ser.

Primeira mulher – Estava bonita. Parecia uma noiva.

Alaíde (excitada) – Noiva? (com exaltação) Noiva – ela? (tem um riso entrecortado, histérico) Madane Clessi, noiva! (o riso, em crescendo, transforma-se em soluço) Porém com essa música! Que coisa! “ (pág. 9; pág. 10; pág. 11; pág. 12)

A iluminação se apaga e muda-se para outra cena da peça. Vemos agora um outro plano. O plano da realidade.  Um ambiente de jornal, telefones tocando, todos falando ao mesmo tempo. Notícias, reportagens sobre os acontecimentos, até que chega a notícia. Um atropelamento aconteceu na Glória, e o chofer fugiu:

“Pimenta: Bonita, bem vestida

Redator D’Anoite: Morreu

Carioca repórter: Ainda não, mas vai.” (pág. 14)

Volta-se ao plano da alucinação. e então, encontramos Alaíde em um bordel,  ela espera por um homem. Quando esse homem se aproxima, Alaíde percebe que o homem em questão é o seu marido. Primeiramente, ela o acaricia e depois o esbofeteia por ele estar em um bordel. Ela percebe que todos ali têm a cara de seu marido, Pedro.

Abre-se o plano da memória. Depois do susto, ela sai dali, e encontramos Alaíde em uma conversa com seus pais a respeito da própria madame Clessi, que era moradora da residência.  Dizem que ela morreu assassinada. Muda-se para o plano da alucinação, e ela se encontra com Madame Clessi.

“Alaíde (com volubilidade) – Aconteceu uma coisa, na minha vida, que me fez vir aqui. Quando foi que ouvi seu nome pela primeira vez? (pausa) Estou-me lembrando!

(Entra o cliente anterior com guarda-chuva, chapéu e capa. Parece boiar.)

Alaíde : Aquele homem! Tem a mesma cara do meu noivo!

Madame Clessi:  Deixa o homem! Como foi que você soube do meu nome?

Alaide: Me lembrei agora! (noutro tom) Ele está me olhando. (noutro tom ainda) Foi uma conversa que eu ouvi quando a gente mudou. No dia mesmo, entre papai e mamãe. Deixe eu me recordar como foi...Já sei! Papai estava dizendo: “O negócio acabava...”

(Escurece o plano da alucinação. Luz no plano da memória. Aparecem pai e mãe de Alaíde)

Pai (continuando a frase) ...” numa orgia louca”

Mãe – E tudo isso aqui?

Pai – Aqui estão?!

Mãe – Alaíde e Lúcia morando em casa de Madame Clessi. Com certeza, é no quarto de Alaíde que ela dormia. O melhor da casa!

Pai – Deixa a mulher! Já morreu!

Mãe – Assassinada. O jornal não deu?

Pai- Deu. Eu ainda não sonhava conhecer você. Foi um crime muito falado. Saiu fotografia.

Mãe – No sótão tem retratos dela, uma mala cheia de roupas. Vou mandar botar fogo em tudo.

Pai – Manda.

(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.)(pág. 22; pág. 23)

(Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.)

Mesa de cirurgia. Alaíde está sendo operada pelos médicos, que são absolutamente protocolares, sem nenhuma empatia com a paciente; pelo contrário, são indiferentes.

“PRIMEIRO MÉDICO : Pulso?

SEGUNDO MÉDICO : 160. [...]

PRIMEIRO MÉDICO: Rugina

SEGUNDO MÉDICO: Como está isso!

PRIMEIRO MÉDICO: Tenta-se osteossíntese

TERCEIRO MÉDICO: Olhe aqui

PRIMEIRO MÉDICO: Fios de bronze

PRIMEIRO MÉDICO: o OSSO!

TERCEIRO MÉDICO: Agora é ir até o fim.

PRIMEIRO MÉDICO: Se não der certo , faz-se amputação

PRIMEIRO MÉDICO: Depressa!”

 (apaga-se a sala de operação. Luz plano da alucinação) (pág. 26;pag27)

No plano da realidade, o diálogo frio entre os médicos revela que Alaíde está sobre uma mesa de operação. Alternam-se os diálogos entre Alaíde e Clessi no plano da alucinação e cenas do passado. Lembra-se de uma mulher com véu.

“Alaíde: Interessante. Estou me lembrando de uma mulher, mas não consigo ver o rosto. Tem um véu. Se eu reconhecesse!...” (pág. 32)

Madame Clessi pede a Alaíde que recorde o dia em que se casou. Alaíde lembra-se de que sua futura sogra elogiou o vestido de noiva pouco antes de ela entrar na igreja.

Dona Laura parece ter notado a presença de uma pessoa que até então não vira. Dirige-se a essa pessoa invisível, beijando-a presumivelmente na testa. Ela conversa com essa pessoa invisível e vai para junto de Alaíde.

“Dona Laura: Cuidado com a cauda!” (pág. 48)

No segundo ato, vemos o diálogo entre Alaíde e Clessi ao microfone. As duas discutem de uma forma áspera. Clessi está disposta  a estragar o casamento de Alaíde. E nesse diálogo vamos descobrindo o motivo. E qual é o motivo?

“Clessi: É impossível que não tenha havido mais coisas.

Alaíde: (impaciente com a própria memória) Mas não me lembro Clessi. Estou com memória tão ruim!

Clessi: Olha, Alaíde. Antes de sua mãe entrar, quando você pediu o buquê, tinha alguém lá? Sem ser Pedro?

Alaíde (desorientada): Antes da mamãe entrar?

Clessi: Sim. Tinha que ter mais alguém. Já disse – uma noiva nunca fica tão abandonada na hora de vestir!

Alaíde (como que fazendo um esforço de memória): antes de mamãe entrar... Só pensando. Deixa eu ver...

(luz no plano da memória, Alaíde, vestida realmente de noiva está tentando uma banqueta. Agora o espelho imaginário se transformou num espelho, verdadeiro, quase do tamanho de uma pessoa. A grinalda está posta ainda. Alaíde sozinha)

Clessi (microfone) Ah! Quer ver uma coisa? Quem foi que dona Laura beijou na testa, depois que falou com você!

(diante do espelho , Alaíde está retocando a toalete , ajeitando os cabelos, recuando e aproximando o rosto do espelho etc.)

Clessi: Ah! Outra coisa! Quem foi que vestiu você? Foi sua mãe? Não ? Pois é, Alaíde! (luz amortecida em penumbra. Entra uma mulher, quase que magicamente. Um véu tapa-lhe o rosto. Luz normal)

 Clessi (microfone): Não disse que tinha que ter mais gente? Olha aí! (noutro zoom) A mulher de véu”! (pág. 51; pág. 52)

Resta agora a pergunta: quem será a mulher de véu?

“ (Acende-se a luz. Só Alaíde e a Mulher de Véu)

Clessi(microfone continuando) ...que esse casamento se realize!”

Alaíde: Mas o que que eu fiz – diga? Para você estar assim?

Mulher de Véu (exaltada): O que foi? Sua hipócrita!

Alaíde : Diga então o que foi!

Mulher de Véu: Quer dizer que você não sabia que eu estava namorando o Pedro?

Alaíde (indignada): Aquilo, “namoro”? Um flerte a toa!

Mulher de Véu (mais indignada): Você quer dizer a mim que foi flerte. Quer me convencer?

Alaíde(teimosa): Foi

Mulher de Véu (violenta): E aquele beijo que ele deu no jardim também foi flerte?

Alaíde: Sei lá de beijo! Que beijo?

Mulher de Véu: está vendo como você é? Viu tudo! Você apareceu no terraço e entrou logo. Mas viu!

Alaíde (desesperada): eu não admito que você  venha recordar essas coisas! Ele é meu noivo!

Mulher de Véu: (perversa) Viu ou não viu?

Alaíde: Não!

Mulher de Véu: Viu sim!

 Alaíde: Por que é que você não protestou antes? Por que você não falou na hora?

Mulher de Véu: Por que não quis. Quis ver até onde você chegava(noutro tom) esperei por esse momento. (pág. 56; pág. 57; pág. 58)

Aos poucos, descobre-se o motivo: o noivo fora namorado da Mulher de Véu, e Alaíde roubara-o dela. Clessi interroga Alaíde sobre a identidade da Mulher de Véu.

“Clessi (microfone)Então você tirou os namorados da Mulher de Véu?

(pausa para uma réplica de Alaíde que ninguém ouve)

Clessi: Também você não se lembra de nada! Procure vê-la sem véu. Ela não pode ser uma mulher sem rosto. Tem que haver um rosto debaixo desse véu, Alaíde.” ( pág. 61)

Plano da realidade: os médicos tentam os últimos recursos para salvar a vida de Alaíde. Sua memória está em franca desagregação. Imagens do passado e do presente se confundem e se sobrepõem. As recordações deixam de ter ordem cronológica. Apaga-se o plano da memória. As luzes laterais são acendidas. Dois homens descem lentamente. Um deles é gordo de barba negra, e empunha um círio. Eles descem lentamente. As luzes acendem  , se cumprimentam e vão se ajoelhar diante de um cadáver invisível. Ambos estão no plano da alucinação.

Duas cenas nos são apresentadas de maneira descontinuada. A primeira, a Mulher de Véu revela seu desejo de vingança.

 “Mulher de Véu: Você pode morrer minha filha. Todo mundo não morre?

Alaíde: Você quer dizer talvez me mata?

Mulher de Véu( mais séria) quem sabe ( noutro tom – Baixo) você acha que eu não posso matar você?

Você não teria coragem. Duvido!

 Mulher de Véu: Talvez eu não tenha coragem para matar. Mas para isso eu tenho! ( pág. 64)

 Na segunda cena, Clessi conversa com um jovem adolescente namorado, e este sugere que os dois se matem de amor.

“Fulano: Quer morrer comigo? Fazer um pacto como aqueles dois namorados da Tijuca?

Clessi ( sempre terna) Lindo tem os cabelos tão finos!( pág. 66)

Clessi não parece levar a sério a conversa do garoto. No plano da alucinação, uma mulher se senta junto a dois homens. Um homem de barba e  um rapaz romântico dialogam com uma personagem, a mulher inatural. Enquanto isso, a conversa entre Alaíde e a Mulher de Véu fica cada vez mais violenta.

“Mulher de Véu (exasperada): Oh meu deus, será possível?

Alaíde (sombria): Então você deseja a minha morte!” ( pág. 70)

No plano da memória  Pedro, encontra-se com a  noivo, Alaíde antes da cerimônia o que significa um mau presságio.

Alaíde: Me esqueci que faz mal o noivo ver a noiva antes. Não é bom. (pág. 73)

Pedro encontra-se com a mulher de véu no quarto da noiva:

“Pedro (perverso, para a mulher de véu): Você tem namorado?

Mulher de Véu (fria): Por quê?

Pedro (cínico): Por nada. Seu gênio é tão esquisito!

Mulher de Véu (com perversidade). Tive ele vai se casar com outra.

Pedro: Então o homem é um vilão autêntico!

Mulher de Véu: É.

Alaíide (sardônica): Não faz mal ela gosta dele assim mesmo. (pág. 72; pág. 73)

Clessi e Alaíde aparecem no alto de uma escada lateral, sentadas num degrau, em um velório.

“Clessi: Você parece maluca!

 Alaíde (ao lado de Clessi) Eu?

Clessi: Você está fazendo confusão! Casamento com enterro!...Moda antiga com moda moderna! Ninguém usa mais aquele chapéu de plumas, nem aquele colarinho!

Alaíde: Tudo está tão embaralhado na minha memória! Misturo coisa que aconteceu e coisa que não aconteceu. Passado com presente! ( num lamento) É uma misturada!” (pág. 80)

A mulher de véu vai se revelando aos poucos. É Lúcia, sua irmã.

“Pedro (cínico): Se você chegasse um pouquinho mais tarde, o casamento teria se realizado!

Lúcia se desprendendo-se de Pedro, gritando, com o punho erguido, como uma saudação comunista): Eu é que devia ser a noiva!...

Alaíde (excitadíssima, também com o punho erguido) : Mentirosa! Sua mentirosa! Roubei seu namorado e agora ele é meu! Só meu!

Lúcia (com o punho erguido): Confessou. Até que enfim! Pelo menos diga, berre: “roubei o namorado de Lúcia!!!...” (pág. 89)

No plano da realidade: Pedro pergunta aos médicos sobre a condição de sua esposa. Os médicos informam que o estado da paciente é grave, mas o médico não demonstra nenhum abalo emocional.

“Pedro: E ela sofreu muito, doutor?

Médico: Não nada. Chegou em estado de choque. Nem vai sofrer nada.

Pedro( chocado) Estado de choque?

Foi. E isso para um acidentado é uma felicidade. Uma grande coisa. A pessoa não sente nada – nada (pág. 90 ; pág. 91)

Alaíde tomou o namorado da irmã. Depois de uma violenta discussão com a irmã e troca de acusações, Alaíde sofre o acidente.

No terceiro ato, no plano da memória, vemos uma discussão entre Pedro e Dona Ligia, Clessi e o namorado . A mãe do namorado de Clessi aparece e pede que ela deixe de ver seu filho:

“Mãe (num largo gesto, visivelmente caricatural, trêmulo na voz):  A senhora é a madame Clessi?

Clessi (humilde): Sou a senhora não quer sentar-se?

Mãe (em tom de dramalhão): Não estou bem assim. ( exageradíssima) Sou a mãe de Alfredo Germont

Clessi (humilde) Eu sei.

Mãe (com ternura na voz): então a senhora não tem consciência?

Clessi (chocada, mas doce): Eu?

Mãe (cada vez mais patética): A senhora, sim. Então isso se faz? Com a criança?

Clessi ( suave e dolorosa): Mas que culpa tenho eu?

Mãe: Que culpa! (Noutro tom) Um menino, uma verdadeira criança, chegando em casa às duas, três, quatro horas da manhã! A senhora não vê?” ( pág. 105; pag106)

Alaíde lamenta-se por confundir essas pessoas com personagens de La Traviata e do filme E o Vento Levou.

“Alaíde: (microfone): Você está vendo, Clessi? Outra vez. Penso que estou contando o seu caso, contando o que li nos jornais daquele tempo sobre o crime, e quando acabo, misturo tudo! Misturo “Traviata”, e o vento levou...”, com o seu assassino! Incrível. (pausa) Não é?” (pág. 107)

Em seguida, vemos o plano da realidade. Repórteres noticiam o acidente de Alaíde e descobrem se tratar de alguém importante:

“Primeiro fulano (berrando): Diário!

Segundo fulano (berrando): Me chama o Oswaldo?

Primeiro Fulano: Sou eu

Segundo Fulano: É o Pimenta. Toma nota.

 Primeiro fulano: Manda

Segundo Fulano: Alaíde Moreira, branca casada, vinte e cinco anos. Residência , Rua Copacabana. Olha!

Primeiro fulano: Que é?

Segundo fulano: Essa zinha é importante. Gente rica. Mulher daquele camarada, um que é industrial, Pedro Moreira

 Primeiro fulano: Se me lembro. Continua.

Segundo fulano: Afundamento dos ossos da face. Fratura exposta do braço direito. Escoriações generalizadas. Estado gravíssimo.” (pág. 109; pág. 110)

No plano da alucinação, Alaíde conta a Clessi suas recordações sobre a morte da mulher. Pedro chega e Clessi sai de cena.

“Pedro: Que negócio é esse de você andar falando com madame Clessi?

Alaíde ( o que é que tem demais meu filho?

Pedro ( com veemência)Ela não é direita! Não quero relações![

Alaíde ( exaltando-se): Ela não é direita. E você é “direito” – é? Você pensa que eu não sei de nada? Pensa mesmo?

Pedro( espantando-se) : Não sabe o quê?

Alaíde( excitada) Que você e Lúcia...( ameaçadoramente) Sim, você e Lúcia andam desejando a minha morte!” ( pág. 113)

Alaíde acusa Pedro e Lúcia de quererem a morte dela. Lúcia aparece. A princípio, Lucia não confirma a intenção  de querer vê-la morta. Mas...:

“Alaíde: Sabe, sim. Sabe! Aquela insinuação que você fez...Que eu podia morrer!

Lucia( virando-lhe as costas) Você está sonhando, minha filha! Disse coisa nenhuma!

Alaíde: Covarde! Agora está com medo! Mas disse – disse a mim!

Pedro: mas se ela nega, Alaíde!

Lúcia (noutra atitude): Pois disse! Pronto! Disse! E agora?

Alaíde (patética) Então me mate! Por que não me mata? Estamos sozinhos! Depois vocês escondem o meu corpo debaixo de qualquer coisa!( E a medida que ela fala, os três se aproximam, juntam as cabeças) (pág. 115)”

 

No plano da realidade, os médicos constatam a morte. Os repórteres noticiam a morte. Pedro e Lúcia estão chorando. Lucia está desolada e pede que Pedro nunca mais a procure.

“Lucia: Discutimos quantas vezes! Ameacei- a de escândalo. Mas ontem foi horrível – horrível!  Sabe o que ela me disse? “Nem que eu morra deixarei você em paz!”

(Lucia fala com a cabeça entre as mãos.)”(pág. 119)

 

Alaíde ameaça a irmã. E Lúcia acusa Pedro de tê-la sugestionado a praticar o crime.

“Lucia (com medo): você é tão ruim, tão cínico, que me acusa!

Pedro (com veemência mas baixo): Ou você opu ela tinha que desaparecer. Preferi que fosse ela.

Lucia (com angústia): essa conversa quase diante do caixão!

Pedro  sempre baixo): não estudamos o “crime” em todos os detalhes? Você nunca protestou! Você é minha cúmplice!

Lucia (olhando espantada) Mandaram tantas flores!

Pedro (insistente): Agora você se acovarda porque o corpo ainda está aqui!

Lucia (meio alucinada): Você se lembra do que ela dizia? Daquela vaidade?

Voz de Ala[ide ao microfone): Eu sou muito mais mulher do que você – sempre fui!

Lúcia (noutra atitude): Foi você que nunca perdeu minha alma

Pedro (rápido): E você a minha

Lucia (sardônica): Você nunca prestou! Foi sempre isso! Não me olhe, que não adianta!

Pedro: Está bem . Depois eu falo com você

Lucia: É inútil. Não serei de você, nem de ninguém. Você nunca me tocará, Pedro.

 Perdro: Você diz isso agora!

Lucia Jurei que nenhum médico veria o meu corpo.

Pedro (cruel): Então ela ficou impressionadíssima com as mulheres vestidas de amarelo e cor de rosa. Uma vitrola! Duas fulanas dançando.

Lucia (chorosa) Não fale assim! Ela está ali. Morreu.

Pedro (sardônico) Era louca por toda mulher que não prestava. Vivia me falando em Clessi. Uma desequilibrada!

Lucia(revoltada): Você deve estar bêbado para falar assim!

Pedro (sério): Ou louco... (grave) Não tenho o menor medo da loucura.” (pág 124; pag 125)

“Vestido de Noiva” é uma obra-prima do teatro moderno brasileiro. O onírico e a subjetividade da protagonista são retratadas de uma forma fascinante. Nelson Rodrigues provoca o público, desafiando-o a refletir sobre os mistérios da alma humana. “Vestido de Noiva” merece um lugar de “HONRA” na sua estante.


Data: 22 agosto 2024 | Tags: Tragédia


< Jean e João A Serpente >
Vestido de Noiva
autor: Nelson Rodrigues
editora: Editora Abril cultural

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