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Jean e João

Sempre gostei de livrarias. Tive a oportunidade de trabalhar em duas, no Rio de Janeiro – a livraria da Travessa e a livraria Argumento. Sempre fui um frequentador de sebos e livrarias, e, para minha grata surpresa, o autor do livro que trago hoje, “Jean e João”, o escritor Jorge Bastos, foi sócio de duas livrarias muito queridas e frequentadas por mim, nos idos anos 1980/90 (acho que foi por aí), as livrarias Taurus e Dazibao. Não posso afirmar, mas tenho quase certeza de que nos conhecemos, entre uma pilha de livros e outra, um “débito ou crédito?” naquele momento final em que saímos felizes, recompensados por comprar alguns volumes. Quem nunca?

O currículo de Jorge Bastos é extenso e rico. Viveu doze anos na Europa,  é um tradutor premiado e já foi indicado ao prêmio Jabuti em 2009  quando traduziu o  livro “Uma vontade Louca de Dançar”, do escritor Elie Wiesel, prêmio Nobel da Paz.  Lançou dois livros: “Atrás dos cantos” (contos) e “O deserto As tentações de Santo Antão” (ensaio biográfico).

Vamos à história de “Jean e João”?

Aos dezoito anos,  João buscou exílio durante a ditadura militar. Não foi por causa de a uma militância entre aparelhos revolucionários asfixiantes da época. João não se encaixa nesse perfil. Na verdade, foi um autoexílio. Ele emigrou para a Europa levado por um estranho mal-estar.

Esse mal-estar está ligado à busca de oxigênio libertário criativo que soprava na Europa nesse período. Estamos falando de maio de 1968 em que palavras de ordem eram: “Imaginação no poder”, “É proibido Proibir”. E associado a Sartre, Foucault e a uma legião de intelectuais que agitaram o imaginário estudantil da época. Isso sem contar com os exilados de diversas nações que procuravam na França um refúgio. E a generosidade francesa sempre se fez presente nesses momentos.

A França recebeu muitos exilados, tanto vindos das ditaduras latino-americanas, como os intelectuais exilados da cortina de ferro. E aí podemos falar de Milan Kundera, Cioran, Mircea Eliade, estudantes de diversas nações, como o alemão Daniel Cohn Bendit. João se transforma em Jean, pois os franceses não conseguem pronunciar o til. Em vez de João, fica Joao. Jean era a única alternativa possível.

“Jean e João”, de Jorge Bastos, é um livro envolvente onde as lembranças do personagem João ocorrem sem muito esforço consciente:

 “Seja como for, Jean pode guardar um grande carinho pelo seu conjunto de lembranças, mantidas todas como num álbum de retratos ou como os slides de viagem que naquele tempo eram projetados numa parede da sala para parentes e amigos. Ele esperava poder levá-las aquelas lembranças-slides ao Julgamento Final e apresentá-las ao júri em sua defesa” (pág. 22)

Nesse cenário, João se transforma em Jean (Jeanovich) em busca de criar as suas próprias histórias, onde convive com hippies, pickpockets, crenças, amores vertiginosos, viagens por Paris, Roma, Marrocos. Viveu o  “paz e amor” colorido por ácidos lisérgicos, somados a muita leitura de Hemingway , Celine, e descendo o rio  Amazonas lendo Robinson Crusoé. Ele tem por hábito anotar em tiras de papel todas as sensações vividas no limiar entre  a realidade e a ficção. Tudo se entrelaça na busca de sua própria odisseia: a procura de viver o  momento heroico para chamar de seu. Era mais fácil se apresentar como Jean. Afinal, cobrar acentuação e pronúncia correta de estrangeiros pode gerar uma perda de tempo desnecessária. E assim João se assumiu Jean.

“Nosso herói situa-se entre aquele, o Odisseu, e um Crusoé. É antes de tudo um navegador. De um tem o pragmatismo, do outro a irremediável ilha. Ulisses, diga-se, tinha para onde retornar, por menos atraentes que nos possam parecer o seu lar-doce-lar e sua matrona. Já o Crusoé equivocou-se ao voltar a civilização. Não tinha mais o que fazer ali: certamente nunca se reintegrou, nunca mais foi feliz nem deixou de carregar aquela ilha em volta da cintura, como uma bola, um cinto, um cinto daqueles de chumbo que os mergulhadores usam para afundar. Certamente não foi culpa sua, pois ninguém diz não à salvação ( a perdição é cruel, a salvação é perversa).

Do navegador, Jean guarda sobretudo a nostalgia da terra, assim como o paguro – o mais conhecido é o bernardo-eremita – tem nostalgia de uma casca imemorial: é um caramujo exilado, vivendo em conchas alheias, sempre obrigado a mudanças ao se sentir sem espaço suficiente na primeira concha escolhida. E Jean se solidarizava com a sina desse crustáceo, saudoso de uma casa que ele nunca conheceu.” (pág. 75)

Não é um diário. É a memória seletiva que desempenha aqui um papel crucial no desenvolvimento da história tanto de Jean como de João. Não é uma memória cronológica linear com espaços contínuos influenciados por fatores contextuais. Pequenos momentos escolhidos a dedo. O autor cobre o tempo, a geografia e a história graças a essa reminiscência. É por meio  desse movimento que João se inventa e se reinventa em  Jean através dos giros de sua roleta mental.

 “Uma noite serena e fechada. O barulho dos seus próprios movimentos, tudo lhe proporcionava um grande bem-estar. Várias lembranças troteavam sem ordem e nem prioridade, mas pouco a pouco se juntavam num ponto central...que era ela, quisesse Jean pressionado pelo daimon) ou não. Era que ele pensava duas terças partes de seus dias. (pág. 93)

Seu autoexílio durou doze anos. Nesse período, experimentou tudo que a vida pode oferecer. Ao longo desses anos, viveu em sua terceira margem algo que escapa à compreensão racional, algo totalmente intransferível. Agora ele precisa organizá-las, distanciá-las e reciclá-las tornando-a uma história aceitável.

“É muito complicado contar algo simples e banal como, por exemplo, as maneiras de nos movimentarmos num labirinto. A sua comunicação exata exige meios nada simples e banais, quando não dispomos de um fio de Ariadne. O que realmente vem a cabeça é abordar o simples-e-banal pelo que nele há de heroico – sempre há – mas buscando uma linguagem própria e estabelecida com esse intuito.” (pág. 122)

Mas antes ele precisa voltar para o Brasil. Jean volta a ser João.  Lá pelos 30 anos de idade, quando enfim voltou ao seu país natal, ficou assombrado com o Novo Mundo. E na volta conhece “N” em uma situação de desmoronamento em sua vida, e se  imaginou feliz. Um anjo da guarda. N tem uma história linear comprovável, ela possui o completo domínio de sua própria história e álibis inquestionáveis o que de uma certa maneira ajudou João.

“Para ele, de fato, apenas o sexo parecia calmante e homogeneizador, um viés inventado para tornar possível a comunicação entre pessoas. Não imaginava outras possibilidades senão neurolépticas e medicamentosas. De alguma forma N firmemente se impôs, desarrumando com delicadeza o estruturado aparato que ilustrava para João, o que é uma relação de casal, o que é monogamia e o que é, a grosso modo uma felicidade possível. A existência de João, que ele tentara, desde o jovem Jean, tornar o mais livrescas se tinha organizado como uma biblioteca de pequenos manuais explicativos à semelhança daqueles de uma antiga coleção que fez sucesso, certa época, em livrarias.”( pág. 142)

“Jean e João” é um livro divertido e ao mesmo tempo poético, com referências literárias da mais fina erudição do alter-ego do autor Jorge Bastos. Uma escrita elegante. Não estamos falando de uma história convencional. Ele tenta construir um tempo puramente mental de sua memória, sem muita preocupação com os encadeamentos tradicionais de causalidade nem com uma cronologia rigorosa do enredo. “Jean e João” é antes de tudo uma aventura estética extraordinária para aqueles que admiram uma excelente escrita. Um  livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 30 julho 2024 | Tags: Romance


< Trabalhos de um Amor Perdido Vestido de Noiva >
Jean e João
autor: Jorge Basto
editora: Editora do Silvestre

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