Antígona
Antes de entrar na história de Antígona de Sófocles, gostaria de fazer alguns esclarecimentos em relação ao teatro grego. Em primeiro lugar, o teatro grego nunca foi um lazer privado, nem litúrgico, mas uma espécie de contemplação de fundamento religioso, político e da sociabilidade.
O objetivo da tragédia é colocar em cena um fundo lendário antigo relatando episódios ligados à fundação das cidades. Estes mitos milenares foram transmitidos de geração em geração pela tradição oral, isto é, uma espécie de educação pela narrativa, que transmite os valores e regras sociais fundamentais.
O culto aos mitos são a própria manifestação da vida pública, que por sua vez fornece o fundamento às instituições da cidade. No entanto, na época clássica os poetas retomam os mitos antigos isolando alguns episódios das narrativas orais. Nessa reescritura, o passado remoto da lenda heroica transforma-se em pano de fundo para uma reflexão sobre os problemas atuais. A tragédia reflete a organização social, e questiona o modo como os governos fazem justiça e a possibilidade (através dos conflitos) de encarar as contradições fundamentais da existência humana. O teatro grego, podemos dizer a grosso modo, é um bate-papo entre a religião e a sociedade e a política.
Na tragédia de Sófocles, “Antígona” é a representação do choque entre a divina lei natural e a lei da comunidade humana. Estas divisões desdobram-se na tensão entre os deuses de baixo, venerados por Antígona, e os deuses Olímpicos que Creonte evoca como protetores da cidade. Creonte foi cunhado de Édipo, tornou-se rei de Tebas quando os dois filhos de Édipo morreram lutando entre si pelo controle da cidade. Creonte acredita no estado de direito e na autoridade do estado. Ele é mais do que um bárbaro que abusa do poder, ele acredita que algo precisa ser feito para salvar Tebas da catástrofe iminente – o que aparentemente contradiz as evidências.
Sófocles dá a Antígona uma ambiguidade trágica. Ela é consciente de seu papel no direito sucessório de sua linhagem e ao mesmo tempo detentora de uma personalidade forte para uma mulher da época. Sua personalidade dava a ela algo de divino devido às suas atitudes, seu modo de ser e seu modo de agir. É o oposto de sua irmã Ismene, que é mais passiva.
Vamos ao que interessa. Vamos à história?
Antes de falarmos sobre a história, cabe aqui uma contextualização. A história começa um pouco antes de quando Édipo matou involuntariamente seu pai, Laio, e se casou com sua mãe, Jocasta. Ele e Jocasta tiveram quatro filhos juntos: dois homens, Eteoles e Polynices, e duas mulheres, Antígona e Ismene. Depois que descobriram que eram mãe e filho, Jocasta se mata e Édipo se cegou e foi exilado de Tebas, cidade que governou com Jocasta.
Eteócles e Polinices brigaram sobre qual deles deveria governar Tebas, e acabaram entrando em guerra e se matando. Eteócles defendeu a cidade quando seu irmão liderou um exército contra ela. Creonte, irmão de Jocasta, tornou-se governante de Tebas agora que não havia herdeiros masculinos da linhagem de Édipo. Com a morte dos dois irmãos, Creonte decretou que Eteócles deveria ser enterrado com todas as honras, enquanto Polinice não deveria ser enterrado. Em termos religiosos gregos, isso equivalia a enterrar alguém fora do cemitério de uma igreja, implicando que sua alma não seria aceita na vida após a morte.
Este é o pano de fundo de “Antígona”. A peça começa quando Antígona fica sabendo da decisão de Creonte de que seu irmão Polinice não será enterrado em solo consagrado. Antígona resolve se apossar do corpo de seu irmão morto e enterrá-la ela mesma.
Antígona e Ismena discutem sua dor no palácio. Antígona está revoltada pelo fato de que na disputa entre Eteócles (que defendia Tebas) e Polinice, seu irmão, ambos morrem, mas só Eteócles terá direito a um enterro digno, com honras. Antígona se revolta. E para piorar, Creonte ordenou que qualquer um que tentasse enterrar o corpo de Polinice fosse condenado à morte.
Irritada e desafiadora, Antígona resolve enterrar o corpo de seu irmão. Ismene fica assustada com a decisão da irmã, que claramente desafia as ordens de Creonte. Ismene pede que Antígona obedeça à lei de Creonte. Antígona desafia as leis da cidade ao enterrar Polinice. Antigona argumenta:
“...Se ao fazê-lo tiver que morrer, que bela morte será! Amada repousarei com ele com ele, com meu amado criminosamente pura, por mais tempo deverei agradar aos lá de baixo que os lá de cima. Lá repousarei para sempre. Tu, se te parece, descura o que honra os deuses.” (pág 11)
Antígona desafia Ismene a contar ao mundo o que Antígona está prestes a fazer e então ela sai. Ismene diz que, embora pense que sua irmã é irracional, ela a ama e vai embora.
O Corifeu e o coro entram. Eles são cidadãos mais velhos de Tebas. Eles oferecem um canto ao sol nascente e contam a batalha em que Tebas derrotou Polinice e seu exército. O Corifeu fala de Zeus, que acreditam ter ajudado a defender Tebas, da deusa Vitória, e então invocam Dionísio para comemorar a vitória.
“Corifeu:
Sete valentes contra sete batentes, na luta de iguais contra iguais deixaram prêmios de bronze a Zeus Protetor. Menos os dois desditos, do mesmo pai, da mesma mãe nascidos, lançando mútuas lanças comungam ambos da morte comum.” (pág. 16)
Creonte entra e se dirige ao coro. Ele explica que, após a morte dos dois filhos de Édipo, ele agora é rei.
“Creonte
...E quem acima da pátria, estima o amigo, declara-o ninguém, pois eu, saiba-o Zeus que sempre que tudo vê, não silenciarei percebendo a ruína ameaçar, nociva ao bem-estar” (pág. 18)
Creonte reafirma sobre sua liderança, e nada deve ser colocado acima das leis do Estado. Sendo assim, Eteócles (como defensor de Tebas) receberá um enterro com honras militares. Polinice será condenado a uma morte obscena.
Quando subitamente entra um guarda esbaforido. Ele teme dar a notícia, que não boas é boa para Creonte, mas finalmente é persuadido a dizer o que sabe. Alguém descobre que Polinices está recebendo ritos funerários. Creonte acusa o guarda de ter sido subornado para permitir a realização dos ritos fúnebres. Ele ameaça torturar o guarda. O guarda sai e retorna escoltando Antígona.
Creonte chega e o guarda conta como removeram a sujeira do corpo de Polinice, e depois ficaram à espreita. Enquanto observavam, um redemoinho repentino levantou uma nuvem de poeira. Quando a poeira baixou, eles viram Antígona de pé sobre o corpo gritando porque ela estava nua.
“Guarda:
...Assim está percebendo o cadáver descoberto, prorrompeu em lamentos, proferiu iradas imprecações contra os sacrílegos. Sem demora juntou o pó ressequido suas próprias mãos e com um vaso de bronze forjado verte três vezes libações sobre o corpo antes de cobri-lo. Ao presenciarmos isso, precipitamo-nos e a prendemos sem que ela mostrasse receio. Lançamo-lhe em rosto atos proibidos, de antes repetidos agora. Ela não negou nada. Senti-me alegre e triste ao mesmo tempo. Escapar a dificuldade é bem agradável, mas lançar pessoas na desgraça é doloroso. Enfim, nada me é mais importante que minha reabilitação.” (pág. 32; pág. 33)
Creonte pergunta à Antígona se ela nega essa acusação. Ela reafirma. Ele dispensa o sentinela e pergunta se ela desconhece o seu decreto de que ninguém pode enterrar Polinice. Ela afirma que estava ciente e que sabia que estava infringindo a lei. Antígona diz:
“... Não foi com certeza, Zeus que as proclamou, nem a justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de recuperar as leis não escritas, perenes dos deuses, visto que és mortal...” (pág. 34)
Antígona segue as leis dos costumes e da religião, não as leis de homens como Creonte. Ela acredita que está obedecendo a um poder superior à legislação imperfeita feita pelo homem Creonte. Antígona sabe que vai morrer, e que ela está nas mãos de Creonte, mas não arreda o pé. Afinal, ela já conheceu muita tristeza em sua vida. Mas ela está preparada, ela sabe que Polinice não era um escravo, era o seu irmão.
Creonte pergunta como Antígona pode homenagear Polinices, que matou seu outro irmão, o patriótico Eteócles. Antígona responde que todas as pessoas devem receber os mesmos ritos de morte – é o que os deuses ordenam.
“Creonte
Este (Polinices) atacava sua pátria, o outro defendia
Antígona
A lei do reino dos mortos é igual para todos
Creonte
Mas o mau não tem direitos iguais aos justos
Antígona
Quem sabe se lá embaixo se terá este princípio piedoso
Creonte
O inimigo, nem morto, será considerado justo.
Antígona
Não fui gerada para odiar, mas para amar.
Creonte
Muito bem, se precisas amar os mortos (incorpora-te a eles, ama-os. Mas na minha vida, não permitirei que uma mulher governe.)” (pág. 38; pág. 39)
Pela lógica de Creonte, a recusa de Antígona em seguir suas leis faz de Antígona uma ameaça ao Estado que deve ser eliminada.
Ismene entra chorando e diz que é cúmplice de Antígona, mas Antígona se recusa furiosamente a deixar Ismene compartilhar a glória de morrer por esta causa.
Creonte continua comprometido com a supremacia de suas leis. Ele não vai abrir exceções só porque seu filho Hemon (filho de Creonte) é apaixonado por Antígona. Regras são regras.
No entanto, o destino parece querer Édipo e seus descendentes. Eles passaram do auge poder quando Édipo era rei de Tebas ao parricídio, incesto, fratricídio e agora a irmã morrendo pelo direito de enterrar seu irmão. O coro ainda não consegue ver que o destino de Creonte é que está correndo riscos. Assim como Édipo tentou lutar contra o destino dado a ele pelos deuses, agora Creonte considera suas próprias leis dos deuses. E na literatura e no mito grego, as coisas nunca dão certo para as pessoas que tentam se elevar acima dos deuses.
Hemon, filho de Creonte, diz que obedecerá ao pai. Mas o filho pede que deixe Antígona ir, mas para Creonte isso é inegociável. Hemon adverte Creonte que não cabe a ele corrigir o rei, mas o povo simpatiza com Antígona. O povo tem medo de Creonte, mas acredita que Antígona deveria enterrar seu irmão. Ele implora ao pai pque não seja tão rígido.
Creonte reage com raiva ao conselho do filho. Ele chama Antígona de traidora. E Hemon responde:
“...Hemon
Não há cidade que seja de um só.
Creonte
A cidade não pertence a quem governa?
Hemon
Belo governante serias, sendo único numa cidade deserta. (pág. 53)
A discussão ganha contornos acalorados, e Creonte lança insultos cada vez mais duros contra o seu filho.
“...Creonte
Verdade? Juro pelo Olimpo, fica sabendo que impunemente não lançarás injúrias contra mim. Trazei-me a maldita, que morra agora mesmo, à vista de seu noivo.
Hemon
De maneira alguma! Não contes com isso. Ela não morrerá na minha presença. E tu não verás mais o meu rosto com os teus olhos. Exibe a tua loucura a quem dos teus se disponha a vê-la.” (pág. 56)
Creonte não mostra a mínima misericórdia. Antígona clama aos deuses porque acredita que o poder e as leis deles têm precedência sobre as de Creonte.
Tirésias, o profeta cego, entra, conduzido por um menino. Creonte o cumprimenta e concorda em seguir os conselhos de Tirésias. Ele aconselha a Creonte que ele está vivendo um momento delicado e que Polinice deve ser enterrado para apaziguar os deuses e proteger Tebas de sua ira.
“ Tirésias
Maldição! Não há quem raciocine?
Creonte
O quê? Que queres com essas vulgaridades?
Tirésias
Que juízo é maior dos bens
Creonte
Como, penso, a falta de juízo é o maior dos males
Tirésias
É precisamente este o mal que te afeta.
Creonte
Recuso-me a ultrajar um adivinho
Tirésias
Ultrajas, contudo, se declara meus vaticínios mentirosos
Creonte
A classe dos adivinhos é ávida por dinheiro
Tirésias
Os tiranos preferem os lucros desonestos
Creonte
Sabe que te referes a quem te governa?
Tirésias
Sei! Se governas esta próspera cidade é por interferência minha.
Creonte
És um adivinho esperto, mas gostas de molestar
Tirésias
Não me obrigues a dizer o que guardo na mente
Creonte
Fala, desde que não seja para tirares proveito.
Tirésias
Pois sabe que o sol não completará muitas voltas em seu carro antes que tenhas que entregar um morto saído de tuas próprias entranhas como pagas para outros mortos, visto que lançaste um dos daqui entre os de lá. Ao encerrares, para vilipendiar, uma pessoa viva numa sepultura, enquanto preservas aqui um de lá, propriedade dos deuses infernais, cadáver sem sepultura, ultrajado. O que fizeste não é permitido nem a ti nem aos deles lá do alto, aos quais tu impuseste um cadáver a força. Quem comete tais crimes será procurado pelas Fúrias dos deuses e da morte infatigáveis, para ser punido com os mesmos males. Considera agora se digo isso sedento de ouro. Pouco tempo passará e se ouvirão em tua casa gemidos de homens e mulheres. O ódio já arregimenta todos os estados cujos filhos dilacerados não tiveram outras sepulturas que cães, feras ou alguma ave a contaminar nos altares com porções pestilentas. Estas são as flechas – pois me feres- que envio certeiras ao teu coração. Do fogo desta ferida não escaparás. Menino leva-me para casa. Que este derrame sua cólera sobre os mais jovens aprenda a cultivar linguagem menos agressiva e mostre juízo mais equilibrado que o que agora ostenta.” (pág. 72; pág. 73; pág. 74; pág. 75)
Tirésias agora revela todo segredo que conhece. Ele diz que somente os deuses dominam os mortos e que os mortais podem governar os vivos. Tirésias avisa Creonte. Mas ele permanece teimoso. A mesma sorte não teve Édipo, que teve seu destino selado. Creonte ainda goza do livre arbítrio, mas não cede à teimosia. Ele diz que, como punição por enterrar Antígona viva, os deuses e as fúrias logo tirarão a vida do próprio filho de Creonte. Além disso o ódio de todos aqueles cujos entes queridos foram mortos se levantarão contra Creonte. Tirésias sai.
No entanto, o Corifeu (o regente do coro) diz:
“Creonte
O que devo fazer?
Corifeu
Corre! Tira a moça da gruta subterrânea. Ergue um túmulo a quem tombou
Creonte
Teu conselho é este? Pensas que devo ceder?
Corifeu
E o mais rápido possível, Senhor. Os velozes danos dos deuses alcançam os infratores indecisos.” (pág. 76)
Um mensageiro chega com notícias terríveis. Hamon se matou. Euridice, a mãe de Hamon, ouve a comoção e pede ao mensageiro que lhe conte o que aconteceu. O mensageiro diz que ele e Creonte foram os primeiros a enterrar Polinice. Quando completavam o enterro, ouviram um grito. Era Antígona enforcada e Hamon histérico de dor por ela. Hamon, ao ver essa cena, investiu contra o pai, ele errou e usou a espada para se matar. Eurídice sai sem dizer nada, seguida pelo mensageiro.
Creonte, desesperado, chora. O mensageiro retorna com a notícia de que Eurídice, a rainha, se suicidou. Eurídice amaldiçoa o marido.
E o Corifeu no fim mostra a moral da história.
“Corifeu
A prudência é, em muito a primeira das venturas. Contra os deuses não convém agir. Palavras altivas trazem aos altivos castigos atrozes. Velhice ensina prudência.” (pág. 90; pág. 91)
Uma das melhores peças de Sófocles que já li. “Antígona” merece um lugar de honra na sua estante.