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Alceste

Eurípedes escreveu a peça “Alceste” quase duas décadas antes de ter sido encenada pela primeira vez em 438 a.C. É a peça mais antiga de sua obra. Essa peça, ao que se sabe, lhe rendeu o segundo lugar no festival na Dionísia Urbana de Atenas. O primeiro lugar foi de Sófocles, que venceu com uma tetralogia desconhecida. “Alceste” sobreviveu à guerra do Peloponeso.

Essa peça não é uma tragédia, é chamada de uma peça problemática, não sabemos em que categoria essa peça estaria inserida. Segundo alguns eruditos, pelo final feliz da peça e pelo tom levemente humorístico de algumas passagens, ela é considerada um drama satírico ou uma tragicomédia. Outros consideram uma tragédia, pois existem alguns elementos que podem ser encontrados nas demais tragédias de Eurípedes e, em menor grau, nas tragédias de Ésquilo e de Sófocles. E claro que a peça que tirou o segundo lugar foi aceita no concurso de tragédias.

Eu acho uma tragédia, mas quem sou eu? É apenas uma opinião pessoal facilmente rebatida por um especialista em teatro grego. O que não é o meu caso.

Vamos a ela? Vamos falar de “Alceste”?

 Vemos que tudo se passa na Tessália, na Grécia. Apolo acaba de sair do palácio do rei Admeto. O motivo de Apolo encontrar-se nesse palácio deve-se a uma punição de Zeus, por Apolo ter matado os Ciclopes (em retaliação por Zeus ter matado o filho de Apolo). Na sentença, coube a Apolo se aproximar de Admeto e até o salvou de uma morte precoce predestinada. Como Admeto não morreu, coube ao destino que alguém morresse no seu lugar. Seus pais se recusaram, mas sua esposa, Alceste, concordou em morrer em seu lugar. Antes de morrer, Apolo e Tânatos tiveram um entrevero.

 Mas, antes de explicar esse entrevero, cabe a explicar quem foi Tânatos na mitologia grega. Tânatos é a personificação da morte enquanto Hades reinava sobre o mundo dos mortos no mundo inferior. Tânatos é conhecido por ter um coração de ferro e as entranhas de bronze.

 Filho de Nix, a noite, e de Érebo, a escuridão, filhos do Caos. Tânatos é a personificação da morte. Tãnatos é representado por uma nuvem prateada que arrebatava a vida dos mortais.

Apolo foi a divindade do sol, da agricultura, da poesia, da música, do canto, da lira, da juventude, do arco e da flecha e da profecia. Foi o deus mais venerado do panteão grego depois de Zeus. No entanto, seu relacionamento com Zeus passava longe de ser algo tranquilo. Foi marcado por desavenças. Apolo casou-se com Coronis, que lhe deu o filho Esculápio. Esculápio era um mestre na arte de curar. Era capaz de ressuscitar os mortos. E com isso Zeus, vendo-se ameaçado, acaba sendo morto pelo raio de Zeus. Apolo não deixou barato e matou os Ciclopes que haviam forjado os raios e por isso foi castigado, sendo condenado a trabalhos forçados como um mortal para Admeto. Tânatos está vindo para levar Alceste.

 Apolo se dirige ao público, explicando que sua escravidão foi culpa de Zeus, não de Admeto:

Apolo: “O palácio de Admeto. Onde me vi coagido a trabalhar como servo humilde, sendo embora um deus, como sou! Zeus assim o quis, porque tendo fulminado pelo raio meu filho Esculápio, eu, justamente irritado, matei os Ciclopes artífice do fogo celeste. E meu pai para me punir, impôs-me a obrigação de servir um homem, a um simples mortal! Eis por que vim a ter a este país; aqui apascentei os rebanhos e meu patrão, e me fiz protetor deste solar até hoje. Sendo eu próprio bondoso, e servindo a um homem bondoso – o filho de Féres – eu o livrei da morte, iludindo as Parcas. Essas deusas prometeram-me que Admeto seria preservado da morte, que já o ameaçava, se oferecesse alguém, que quisesse morrer por ele, e ser conduzido ao Hades.” (pág. 75)

 

Apolo profetiza que um homem forte está chegando e derrotará a morte.

“Apolo: Tu moderar-te-ás, por muito cruel que sejas. Eis que se aproxima um homem do palácio de Féres. É um herói, que Euristeu envia das longínquas regiões da Trácia, para apoderar-se dos cavalos de Diomedes: mui breve será recebido, como hóspede, no palácio de Admeto, e pela força, há de arrebatar a esposa. Assim nenhuma gratidão te deverei: tu não farás o que eu não quero que faças, e não menos execrado por isso.

Tânatos: Dize o que quiseres; nada mais terás de mim. Esta mulher descerá à mansão sombria de Hades. Vou preludiar, pela espada, o sacrifício; porque é imediatamente consagrado aos deuses infernais aquele de cuja cabeça esta lâmina cortar um só fio de cabelo.” (pág. 78)

 Um coro, um grupo de cidadãos idosos, se reúne na entrada do palácio. O líder do coro, notando o silêncio da casa, se pergunta se Alceste ainda vive. O coro procura sinais da morte, sabendo que a morte de Alceste já havia sido decretada.

“O Coro: Para onde quer que se envie uma galera ninguém poderá salvar a alma dessa infeliz; quer na Lícia, quer nas regiões de Ámon: porque o Destino é inexorável, e não tarda! Não sabemos a que deuses devemos recorrer nem a que sacerdote pedir auxílio neste transe....” (pág. 79)

O líder do coro vê a serva de Alceste saindo do palácio, ela está chorando. O líder do coro pergunta se Alceste ainda vive. A serva responde:

“O coro: Que ela saiba, pois, que tem a morte gloriosa, sendo a melhor de todas as mulheres que têm existido sob o sol!

A Serva: E como não seria a melhor esposa? Quem o negará? Que outra mulher se lhe poderá avantajar? Que outra esposa faria mais por seu marido do que oferecer-se para morrer por ele? Toda a cidade disso está ciente: mas vós tereis vossa admiração aumentada ao saberdes o que ela fez no interior do lar. Quando sentiu que era chegado o dia fatal, lavou o seu corpo alvíssimo na água do rio, e, retirando dos escrínios os seus mais belos ornatos, vestiu-se ricamente; depois diante do altar doméstico, fez esta prece: “Ó Deusa! Vou para a região das sombras, mas quero venerar-te, pela última vez em minha vida, rogando-te que tenhas pena de meus filhos órfãos. Concede-me que um deles tenha uma boa esposa, e a outra, um digno marido. E que eles não morram, como a sua infeliz mãe, antes do prazo fixado pelo destino, mas que vivam, felizes e prósperos na terra da Pátria!”. Em seguida visitando todos os altares que há no palácio de Admeto, ela depositou flores de murta, e orou sem um só gemido ou lamentação, porque a iminência do trespasse em nada alterou sua fisionomia plácida.” (pág. 80; pág. 81)

 

A serva relata os preparativos de Alceste para a morte. Naquela manhã banhou-se no rio e vestiu-se com suas roupas mais bonitas. Então ela visita os altares e reza pedindo, para o seu filho, uma esposa amorosa e, à sua filha, um marido gentil, permitindo que ambos vivessem vidas longas. Alceste deseja ver a luz do sol o maior tempo possível antes de partir para o submundo escuro.

 

Quando Admeto e Alceste saem do palácio com seus filhos, a vida de Alceste começa a desaparecer rapidamente. Embora Admeto implore para que ela fique, Alceste se despede da família, e pede que Admeto não se case novamente e entrega os seus filhos aos seus cuidados.

“Alceste: Deixa-me! Deixa-me! Quero deitar-me... os pés já não me sustentam mais! O Hades está próximo...uma noite escura cai sobre os meus olhos. Ó meus pobres filhos... gozai a luz... a luz radiosa do dia!” (pág. 83)

Alceste fala da saudade que sentirá da luz do sol e do abrigo da terra. Ela vê os olhos negros da morte franzindo a testa sobre ela. À medida que a morte se aproxima, Alceste agarra os seus filhos e se despede deles.

Alceste reúne forças para fazer seu último pedido. Ela diz a Admeto:

 “Alceste: Admeto, bem vês que extremidade cheguei: desejo, antes de morrer, que ouças o que te quero revelar. Amando-te sinceramente, e dando a minha vida para que continues a ver a luz. Morrerei por ti quando poderia viver por longo tempo ainda, receber por esposo, dos tessálios, que eu preferisse, e habitar um palácio real. Mas recusei-me a viver privada de tua companhia, e a ver meus filhos sem pai; não me poupei, dispondo embora dos dons da mocidade e dos meios de os usufruir. Traíram-te teu pai e tua mãe, sim! pois sua avançada idade lhes permitiria uma morte gloriosa, salvando o filho por um rasgo meritório. És, com efeito, o filho único que possuem; após a tua morte, nenhuma esperança lhes serias forçado a educar órfãos de mãe..., Mas um deus quis que as coisas tomassem este rumo... Seja! De tua parte, e porque sempre hás de lembrar disto, concedei-me uma graça, em troca; não igual à que te faço, pois não há bem mais precioso que a vida; mas justa, como tu mesmo reconhecerás. Tu amas a nossos filhos tanto quanto eu, se teu coração é sincero e honesto. Que sejam eles donos de nosso lar! Não os submeta nunca a autoridade de uma madrasta, que seria certamente inferior a mim, e que impelida pelo ciúme, maltratarias essas pobres crianças que são teus filhos, mas também são meus.” (pág. 83; pág. 84)

Alceste pede a Admeto que não se case novamente, pois uma segunda esposa reinaria com ciúmes sobre seus filhos, principalmente sua filha.

Admeto não apenas jura o que Alceste pediu, mas vai além de seu pedido com uma série de votos excessivos na emoção do momento – prometendo nunca mais desfrutar a felicidade.

 O líder do coro, com a sua lealdade em meio à dor, exorta Admeto a resistir bravamente diante da morte.

“O coro: Admeto é mister que te conformes com a desgraça! Tu não és o primeiro dos mortais a perder uma esposa virtuosa! Bem sabes que a morte é uma dívida que todos nós devemos pagar.” (pág. 87)

O clima está pesado, a tristeza impera, mas eis que que surge Héracles (Hércules na mitologia romana), o maior herói da Grécia antiga, contrastando com o triste desamparo que acaba de ser expresso pelo coro. Héracles entra e cumprimenta o coro, que pergunta o que o traz para Tessália. Héracles explica que tem um trabalho a realizar para seu mestre, Euristeu de Tirinto. Ele apareceu, pois pretende apoderar-se dos corcéis (cavalos) de Diomedes.

Admeto entra vestido de luto, e dá as boas-vindas a Héracles. No entanto, para Héracles havia algo errado. Qual o motivo de Admeto estar vestido daquele jeito de luto? Admeto explica o ocorrido, sem mencionar a morte de Alceste.

“Héracles: Afinal, por quem choras, tu, então?

Admeto: Uma mulher. É uma mulher que penso!

Héracles: Uma estranha ou pertence à família?

Admeto: Uma estranha..., mas muito ligada a mim, e a minha casa...” (pág. 91)

Héracles, ao ver todos em um clima de velório, acaba optando por sair do palácio. Mas Admeto o agarra com força. Héracles resiste, dizendo que não se pode lamentar e receber um amigo ao mesmo tempo. Admeto insiste para que ele fique. O coro entra criticando Admeto e lembrando a promessa feita à mulher, Alceste.

A próxima cena é entre Admeto e Feres. E aqui cabe um parêntese. Feres é o pai idoso de Admeto. Ele e sua esposa se recusam a morrer no lugar de Admeto. E, nesse encontro no funeral, surge um clima azedo, quando Feres traz presentes fúnebres para homenagear Alceste:

Feres: Aqui estou eu, meu filho, para partilhar de tua dor. Perdeste uma esposa virtuosa ninguém o negará! Mas é preciso que te resignes a este golpe, embora seja penoso suportá-lo...

Admeto: Tu não foste convidado, por mim a este funeral! Eu não te considero meu amigo, entre tantos que aqui estão presentes...

Coro: Cessa! Cessa! Já não é bastante a desgraça presente? Não amargures ainda mais, Admeto o coração do seu pai.

Féres: Filho meu, a quem injurias assim? Será por acaso a algum Lídio ou frígio, comprado com dinheiro? Não sabes que sou tessálio, filho de pai tessálio, e livre de nascença? Tu me ofendes em demasia! Mas depois de teres lançado tão violentas censuras, não ficarás impune! Dei-te a vida, e te eduquei, para que fosse depois de mim, o chefe de meu patrimônio, mas nunca me obriguei a morrer em teu lugar...” (pág. 94; pág. 95)

Os servos carregam o caixão de Alceste para o funeral. É neste momento que parece uma cena no mínimo inusitada da peça, podemos dizer que é o ponto de virada. Héracles encontra-se bêbado. Em contraste com o clima de enterro que está rolando. Ainda como hóspede, ele não sabe que a mulher de Admeto havia morrido. Ele encontra-se bem bêbado arrotando quando fala. E critica todos por causa das caras feias que estão fazendo para ele.

Héracles: Houve, então, uma desgraça que Admeto não me quis revelar? (pág. 99)

O servo conta a verdade. Héracles imediatamente se transforma de herói bêbado em algo compatível com sua estirpe, ou seja, um herói destemido. A força de Héracles é tão formidável que até mesmo os poderes de Hades (os poderes do reino da morte) serão forçados a se submeter e entregar Alceste de volta.

Admeto duvida do milagre. Ele pensa que Alceste é um fantasma.

“Admeto: Cuidado Héracles! Não será um fantasma egresso das profundezas infernais?

Héracles: Admeto seu hóspede nunca foi um invocador de almas!

Admeto: Então é mesmo, minha esposa, aqueles a quem eu já havia dado a sepultura?

Héracles: Sem dúvida! É ela própria! E não me admira que tu hesites em acreditar na tua fortuna!

Admeto: Poderei então falar-lhe, como falava a minha esposa em vida?

Héracles: E por que não? Fala-lhe, homem! Tu readquiriste, na verdade, o tesouro por que tanto suspiravas!” (pág. 110)

 Com a sua proclamação final, Admeto mostra que abraçou a moral da peça e agora vai refazer sua vida de acordo, assim como o público. Agora que aceita a mortalidade, ele será capaz de viver feliz pela primeira vez.

“Alceste”, de Eurípedes, merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 26 junho 2023 | Tags: Tragédia, Grega


< As nuvens As Aves >
Alceste
autor: Eurípedes
editora: Ediouro
tradutor: J.B. Mello e Souza

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