Os filhos de Saturno
Rui Maurício é um escritor português pouco conhecido no Brasil e vem ganhando destaque em Portugal com sua narrativa envolvente. O primeiro livro dele resenhado aqui no site foi um livro excelente de contos chamado “A Ribeira que corre para a Nascente”. Quem tiver curiosidade dê um pulo no site para ler a resenha. O livro de hoje tem um sentido diferente do anterior, que consistia de contos que de uma certa forma se comunicavam.
“Os Filhos de Saturno” é bem diferente do anterior. É um romance policial que explora o mistério, e tem revelações surpreendentes. Revela segredos de família cujo conflito se encontra no passado e no presente.
Vamos à história?
Portugal é um país relativamente tranquilo, mas algo estranho aconteceu no mês de dezembro, um homicídio extremamente violento em um local denominado Rocha da Mina, que no passado foi um lugar de sacrifícios e de adoração a deuses antigos. Nesse momento, chega o jovem inspetor Rodrigo, da polícia de Lisboa. No local da perícia foi encontrado no corpo da vítima um símbolo de uma espécie de ferradura com um arco em cima e a abertura para baixo. No centro da abertura, um ponto.
Quando retornaram a Lisboa, souberam da identidade da vítima, tratava-se de um pastor de uma igreja não católica, sediada em Lisboa, intitulada “Igreja do Jesus Cristo Redentor”. O corpo pertencia ao diretor do colégio interno para crianças. O pastor era uma figura que tinha uma certa proeminência dentro da igreja. E a forma violenta de sua morte causou espanto a todos.
Na manhã seguinte, Rodrigo, após uma noite atormentada por pesadelos envolvendo parte de sua família, recebeu um telefonema do seu parceiro Miguel. Nesse telefonema, foi informado de um novo assassinato. E desta vez a vítima aparecera amarrada a uma árvore no parque “Passeio da Levada”, na cidade do Porto. Uma curiosidade: foi encontrada no bolso do casaco da vítima, uma embalagem de “poppers”, uma espécie de droga conhecida por ser a droga do sexo que, quando inalada, produz impulsos sexuais irresistíveis. E no outro bolso, apareceu algo bem mais dramático: um pênis e dois testículos ensanguentados. E no peito, uma ferida com um símbolo de corte fino com a mesma forma da ferradura com um arco acima e abertura para baixo.
A vítima era uma diretora de uma multinacional. Temos aí duas pessoas mortas de forma violenta. Um pastor de uma igreja e uma diretora de uma multinacional. A partir desse momento, o caso caiu definitivamente nas mãos dos dois detetives, Rodrigo e Miguel. Rodrigo acaba indo à cidade do Porto enquanto Miguel tenta achar um ladrão de nome Nguzu, que tinha como hábito roubar lojas grã-finas e distribuir aos miseráveis do bairro.
Até aquele momento, nenhuma pista havia sido encontrada. No caminho de carro para a cidade do Porto, Rodrigo pensava nas histórias contadas dos seus bisavós. Foi na primeira guerra mundial em que Portugal perdeu inúmeros soldados. E isso traumatizou inúmeras famílias; dentre elas, o seu trisavô, que contava história terríveis sobre esse período nas trincheiras. Tudo isso relatado por sua mãe.
Focado no trabalho, Rodrigo passou o dia tentando juntar as peças desses dois crimes bárbaros. E quando foi dormir, acordou com o pesadelo habitual. que envolvia relatos de família.
No dia seguinte, dois amigos faziam jogging matinal quando encontraram um homem deitado com uma bala na cabeça, na Mata do Monsanto. Detalhe: aa cabeça calva da vítima, o símbolo da ferradura, com o seu corte fino e preciso exatamente igual como nas vítimas anteriores. Dessa vez, o crime foi em Lisboa. O corpo encontrava-se sentado, encostado a uma árvore, com as mãos colocadas em prece, como se estivesse rezando.
E quem era o morto? Quem é o assassino? Seria o mesmo assassino? Devido à coincidência dos símbolos encontrados nos corpos, seria o mesmo assassino? Toda a investigação recaía sobre uma provável seita. A seita do Endovélico no Alandroal? Mas que seita é essa?
A seita Endovélica é chamada de deus dos lusitanos. É descrita como a mais importante da Lusitânia antiga. Essa seita era popular e goza de uma certa notoriedade. que a coloca acima de muitas divindades ibéricas. Há muito que dizem que os portugueses deviam seguir a seita Endovélica por ela ser um deus gerado dos antepassados portugueses.
Muito trabalho teria que ser feito para descobrir a ligação entre todos os mortos com as mesmas características simbólicas. Rodrigo resolveu passar na casa de sua mãe. E lá algumas fotos de seu trisavô foram mostradas, uma delas mostrava seu trisavô, Antônio Videira, com um capacete. E neste capacete estava desenhada uma ferradura com a cabeça para baixo e o ponto no centro, exatamente como o símbolo das vítimas.
Ao ver essa foto, Rodrigo quase teve uma síncope. Uma dessas fotos mostrava o amigo do seu trisavô chamado Uchoa. Nas costas da fotografia, estava escrito: “Eu e Uchoa, Flandres, dez de março de 1918”. Rodrigo resolveu não mencionar este detalhe da foto às investigações que estavam sendo realizadas. Mas ficou pasmo com a coincidência. Se despediu da mãe. E resolveu ir para casa. Foi quando recebeu um telefonema de seu colega de investigação, Miguel.
Miguel disse que o líder espiritual da Igreja do Jesus Cristo Redentor havia contatado à polícia e disse que estava sendo ameaçado e que temia por sua vida. Rodrigo foi ao encontro de Miguel, em Algés. Este já o esperava. Miguel, que era um policial experiente, pegou um carro acompanhado de um outro policial mais novo, disse:
“- Tudo isto está a ficar muito estranho, acabei de saber de mais uma vítima, no porto de pesca de Peniche. Hoje, de manhã cedo, os pescadores deram com uma mulher espetada por um gancho que lhe entrou por baixo do queixo e que lhe saiu pela boca. Estava assim pendurada numa grua que descarrega o peixe dos barcos. E advinha o que estava escrito nas costas?
- O símbolo da ferradura com o ponto no centro! Exclamou o inspetor mais novo.
- Nem mais – respondeu o outro – Estampado perfeitamente numa das omoplatas da vítima. Parece obra de um artista!” (pág. 105)
Haviam combinado de interrogar os membros da seita do Endovélico, mas isso poderia ser feito em outro dia. Mas uma coisa estava começando a deixar todos pasmos: a quarta morte, além da crueldade, tinha os mesmos símbolos. Teria o assassino a ideia de levar todos a pensarem que são vários executores quando na verdade é apenas um?
Rodrigo começou a pensar na possibilidade de contar o que vira na foto de seu trisavô na Primeira Guerra Mundial. Mas, mais uma vez, resolveu guardar para si essa informação. Pelo menos por enquanto.
Resolveram interrogar dois membros da seita do Endovélico. No caminho lembrou-se de sua mãe e seu tio e de um personagem chamado Seringas, que tinha um aspecto monstruoso com sua cabeça pesada e disforme e sem os dois braços. Quando Rodrigo chegou ao local da seita, foi saber sobre os rituais, e sobre a sua ideologia e práticas de fazerem sacrifícios. E como acontecia em épocas ancestrais em honra de Endovélico. Aos poucos, foram sabendo do que se tratava a seita em questão. Endovélico é um deus subterrâneo, mas não tem nada a ver com o demoníaco. Endovélico é um deus ligado à medicina e à cura dos enfermos.
Rodrigo anotava as informações. Os praticantes da seita continuavam a falar, explicando que procuravam nos antigos templos Endovélicos por forças telúricas, tal como os antigos faziam, almejando uma relação perfeita com as forças da natureza. Era uma seita pagã, que adotou o Endovélico como uma cura para as doenças do corpo. O inspetor Rodrigo não ficou satisfeito com as respostas dadas às suas perguntas.
Mas uma coisa não saía de sua cabeça: as imagens dos seus antepassados, do seu trisavô Antonio Videira, da bisavó Beatriz e de sua tia-avó Alice.
Soube, através de outros interrogatórios, que o pastor da “Igreja do Jesus Cristo Redentor” não era um santo. A escola em que lecionava era composta por crianças entre dez e dezesseis anos. Uma outra informação importante era que o pastor em questão geria uma rede de clientes endinheirados. Crianças eram conduzidas e selecionadas para passar alguns dias na casa de adultos ou em hotéis de luxo. E os clientes podiam ser homens ou mulheres. Quando completavam dezoito anos, tinham que sair da escola, pois eram considerados velhos para os clientes. Eles só queriam adolescentes. E, segundo o inspetor Miguel, o assassino poderia ser um ex-aluno:
- Já reparou que todas as vítimas são figuras importantes e endinheiradas e pelo menos três delas estão relacionadas com a seita desta Igreja.” (pág. 127)
Cansado, Rodrigo resolveu ir para casa. Não conseguia dormir apesar do cansaço. Irritava-se com pensamentos que volta e meia vinham à sua cabeça. De alguma forma, esses pensamentos não eram gratuitos, eles se cruzavam de alguma forma com aqueles crimes. Seus pensamentos fixavam-se na fotografia de seu trisavô numa trincheira da Primeira Guerra com o maldito desenho da ferradura com o ponto no interior.
Quando se dirigiu à delegacia, Miguel já tinha uma bomba prestes a estourar no colo de Rodrigo. Miguel diz:
“ O morto na Mata Monsanto não era de boa rés – continuou Miguel – Descobrimos que era um dos principais beneméritos da “Igreja Cristo Redentor”. Era um cliente assíduo nas cerimônias religiosas e um fervoroso filantropo com doações avultadas à igreja. Desconfio bem das contrapartidas em espécie que deveria ter com tamanhas boas ações...” (pág. 139)
As coisas pareciam apontar para uma direção, as pistas apontavam para alguém da Igreja. Foi quando um grupo de adolescentes se defrontou com um corpo aparafusado na parede. Os adolescentes gritaram, em estado de pânico. O corpo estava preso a uma parede de braços abertos. Um enorme parafuso atravessava o corpo sustentando a vítima na vertical. A camisa da vítima estava rasgada e no peito o mesmo símbolo da ferradura com o ponto no meio.
A esposa da vítima, quando soube do assassinato de seu marido, ficou inconsolável, não podia acreditar naquela notícia. Após muito esforço, ela mencionou que seu marido sofria de muita inveja; no entanto, não se lembrava se ele tinha inimigos. Não tinha a menor ideia de quem poderia ter partido tamanha barbaridade.
Ao ser perguntado por Rodrigo sobre o significado daqueles símbolos achados nos corpos das vítimas, Miguel disse:
“- Em contraste com o alfa, a primeira letra do alfabeto grego que significa o primeiro, o princípio – completou Miguel, com uma ruga vertical na testa amarela.
Rodrigo prosseguiu com as suas descobertas acerca do símbolo.
- A letra ómega em minúsculo tem exatamente a forma da ferradura desenhada nos corpos das vítimas e significa em grego “ohm” , ou seja, unidade e resistência!!
- Eh Lá! Deixou Miguel escapar – Isso torna o tema bastante m ais interessante e menos óbvio
- Podemos estar a lidar com um justiceiro por conta própria – concluiu Rodrigo” ( pág. 146; pág. 147)
A ferradura era o ómega, o fim, mas também uma boca aberta, pronta para aniquilar. Foi assim que tentou interpretar todo o mistério que se debruçava em seu colo. Mas e o ponto? O que significa?
Não teve chances para refletir, pois um outro assassinato acabava de ser descoberto. Desta vez, no Hotel Ritz em Lisboa. E o morto tinha uma identidade, era conhecido da polícia, era um traficante. Com a imprensa, presente com seu aparato de show de divulgação, havia muito mais perguntas do que respostas.
O morto era um sujeito com aproximadamente sessenta e cinco anos, estava nu de barriga para cima, deitado sobre um colchão king size. E o mesmo símbolo havia sido encontrado, dessa vez na barriga, desenhado em batom no umbigo. O umbigo era o ponto.
Qual a relação desse crime com os demais?
E para piorar, o símbolo tinha uma ligação com os crimes que aconteceram com sua família, com os mesmos símbolos. Qual a relação desses crimes do passado com os crimes do presente? Sua bisavó esteve envolvida em um crime na década de 1970.
Depois da batalha de La Lys, em que o exército lusitano foi desbaratado e aniquilado na Primeira Guerra Mundial, nunca mais voltou-se a falar de Uchoa. Sua bisavó Beatriz começou a sonhar com ele. E seu trisavô chegou a desconfiar se o próprio Uchoa de fato existiu.
De Uchoa sabe-se que ele trabalhou com o famoso pintor espanhol Francisco de Goya. Que era fascinado por duas pinturas negras de Goya – a de Saturno, a devorar um dos filhos, e a do anjo Asmodeus. Ele é um espírito do mal cuja origem, na verdade é um deus de origem persa que foi absorvido pelo judaísmo, que o associa à cidade de Sodoma, destruída por Deus no Velho Testamento.
Uchoa sumiu na batalha de La Lys. Essa pequena história passava pela cabeça do inspetor Rodrigo sem que uma resposta minimamente aceitável pudesse sugerir uma solução.
“- Desde o início do século XX, e do nosso antepassado Antônio Videira, que tem havido sempre em cada geração da nossa família um... assassino...um Filho de Saturno.” ( pág. 300)
Terei que ficar por aqui. Seis dias, seis vítimas, os símbolos têm relação com a sua própria família. Mas qual a razão de tudo isso? E os Endovélicos, qual a relação com a Igreja do Jesus Cristo Redentor? Onde está a resposta? Peço desculpas, não posso falar, para não estragar as várias tramas e subtramas que envolvem essa história deliciosa de Rui Maurício.
Mas o único spoiler que eu vou dar é o seguinte: o assassino não foi o mordomo.
“Os Filhos de Saturno”, de Rui Maurício, merece um lugar de destaque na sua estante.