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Notas sobre humor

Beto Silva. Quem não conhece? Um dos integrantes do Casseta & Planeta, lendário grupo de humor carioca que fez história na TV e fora dela, acaba de lançar mais um livro, “Notas Sobre Humor”.

Para os interessados, como eu, por essa arte tão controversa, tão antiga, “Notas sobre humor”, de Beto Silva, é uma reflexão bem-humorada e inteligente sobre humor, sem a pretensão de ditar regras, mas compartilhar sua experiência como humorista, roteirista e consumidor dessa arte.

Um livro que aborda temas polêmicos, sem determinismos e respostas fáceis, mas que fará você pensar sobre questões que irão além do humor – reflexões objetivas, como, por exemplo,  no que estamos nos transformando? Uma boa opção para profissionais do humor ou interessados no tema.

Uma das primeiras questões: o humor é do contra. E isso não vem de agora. É antigo. Aristófanes, um dos maiores comediantes da Grécia Antiga, ficou conhecido por uma peça teatral intitulada “As Nuvens”, uma sátira a Sócrates e aos sofistas. Fico pensando: seria Aristófanes, hoje, cancelado pelos socráticos, por sua crítica? Certamente.

No Brasil, apesar de nossa realidade repleta de contradições, o que não nos falta é material para piadas. Somos uma piada pronta. Ou quase pronta, como define o autor:

“O Brasil poderia ser o país da piada pronta, mas não é. Na verdade, o orçamento da piada foi superfaturado, a verba destinada a piada sofreu vários desvios, molhou-se a mão de várias autoridades e a grana acabou antes de terminarem a piada. Parece que foi pedida uma suplementação de verba que ainda não saiu. Portanto, a piada pronta brasileira, que já era para estar terminada, não ficou pronta, e não sabemos ainda se o final é engraçado” (pág. 34)

Certa vez, Fernanda Montenegro, a dama do teatro brasileiro, comentou (não me perguntem a fonte, eu não me lembro) que o humor é uma das artes mais difíceis de ser interpretada no palco. Concordo. Humor é “timing”. É a capacidade e conduzir a piada no tempo certo, em seu princípio, meio e fim. Um talento nato ou técnica adquirida?

 “... timing se aprende sim. Mas que é preciso ter paciência, experimentar bastante, estudar e escutar outros humoristas. É preciso ter timing para entender o timing” (pág. 45)

“Notas para o Humor” aborda temas interessantes e pertinentes, como:  tem hora para rir? Humor do bem, humor do mal. Piadas de mau gosto. Humor inteligente. Humor escatológico. O politicamente correto e os cancelamentos. Liberdade de expressão e limites do humor. Humor e religião, pode ou não pode? Humor e política. Todos temas relevantes numa sociedade que se reinventa a cada instante.

Humor e política, por exemplo, é uma linha muito tênue. E, aqui, Beto Silva vai no ponto – você pode agir como comediante quando está no poder? A oposição jamais vai rir de suas piadas. Tiririca, cujo slogan de sua campanha era “Vote em Tiririca, pior que está não fica”, era muito engraçado. Mas a piada acabou ali.

Muito bem lembrado, por sinal, foi a menção feita a Volodimir Zelenski, presidente da Ucrânia. Ele era formado em Direito, mas foi na comédia que ele se tornou conhecido em toda a Ucrânia. Havia um programa de humor no país, onde ele interpretava, adivinha quem? Isso mesmo, ele representava o presidente de seu país. Ele debochava dos políticos de hoje e do passado, e em 2019, ao se lançar a candidato à Presidência, alcançou 73% dos votos. Putin não gostou do novo presidente e resolveu enviar mísseis, aviões, tanques. E estamos vendo Zelenski sair de seu papel de  humorista para se transformar num respeitável chefe de estado.

Uma pergunta que Beto Silva faz é: e se o Casseta & Planeta estivesse no ar hoje, eles conseguiriam mostrar a mesma performance das piadas contadas nos anos 90? A resposta de Beto Silva é muito sincera:

No entanto, os tempos mudam, os contextos são outros, o que valia naquela época não vale mais hoje. Eu tenho certeza que nos anos 90, assim que a novela das nove acabava, ninguém falava:

- Oba! Agora eu vou ver Casseta & Planeta Urgente porque é um programa politicamente incorreto.

Não! Não se pensava nisso. As pessoas gostavam do programa por conta de seus personagens, paródias e piadas com a atualidade. O conceito politicamente incorreto até existia, ele não é tão recente assim, mas ele cresceu muito no século XXI, com o seu lado importante e justo na defesa das minorias, mas também com todos os seus exageros e hipérboles que frequentemente passam do ponto.

Então se a gente voltasse a fazer o programa hoje com as mesmas piadas que fazíamos nos anos 90, como gostaria o sujeito que faz a sempre repetida pergunta, certamente teríamos uma carreira muito curta. Provavelmente nem o cara ia gostar de assistir ao programa. (pág. 62 a 63)

Um outro tema bem controverso, atual e  abordado com elegância é o cancelamento. Alguém se sentindo ofendido por uma piada pode ser fatal. E o cancelamento tem a ver com o tribunal das redes sociais. O tribunal das redes sociais é uma sentença sem direito a apelação. Não há juízes, nem advogados de defesa. Só existem promotores. São os fiscais do comportamento. Meu pai sempre me dizia uma frase “Meu filho, ninguém resiste a uma devassa.” Nunca, como nos dias de hoje, essa afirmação foi tão real.

Não se discute uma questão do presente, o passado é checado, farejado. Muitas vezes, por causa de uma piada homofóbica feita na década de 80, você estará cancelado. E o autor continua:

 “O cara faz uma piada no século XX, mas paga com a jurisprudência do século XXI. Às vezes não consegue esboçar reação, pois foi proibido de abrir a boca e é xingado de velho reacionário por uma bobagem que falou há muito tempo num contexto diferente. E assim, quando ele tenta se explicar, ele acaba escutando:

- Cala boca, velho reacionário!

- Velho reacionário é a puta que o pariu! – Ele responde.

- O que você tem contra prostitutas que engravidam?

E assim que começa mais um processo de cancelamento contra o velho humorista reacionário. (pág. 91; pág. 92)

Isso entra em outro território, a liberdade de expressão. E aí Beto Silva dá uma explicação bem interessante sobre esse tema:

“Se um comediante sobe no palco e manda:

- O Beto Silva é um merda!

Eu não vou gostar, vou começar a desconfiar que o cara é um babaca, mas vou achar que ele tem o direito de se expressar, mesmo sendo através de uma opinião idiota. E se a plateia rir eu vou ficar cabreiro.

Então o cara continua:

- Ele é um safado, está levando o meu dinheiro!

Aí eu já vou ter certeza de que o cara é um escroto, além de um mentiroso do cacete! Eu não estou devendo dinheiro para ninguém! Mas mesmo assim vou relutar no meu íntimo pelo direito tem de se expressar.

Mas se depois do show, ele ainda vier me cobrar a dívida, aí eu vou ter que chamar a polícia. Liberdade de expressão tem limites! (pág. 94; pág. 95)

Beto Silva leva mais longe esse exemplo. Em um determinado momento, o humorista babaca diz:

“Tem que matar esse judeu caloteiro!”

Isso deixou de ser liberdade de expressão passando para liberdade de supressão. Liberdade de supressão é incompatível com liberdade de expressão.

Ou seja, “Notas sobre humor” é um livro amplo, que nos leva a refletir sobre o humor e seu lugar no mundo, e todas as questões com as quais estamos sendo obrigados a nos relacionar, num mundo que desenha uma nova ética, mas ainda não estabeleceu limites claros.

Um livro, na verdade, sobre todos nós diante de questões que estamos tentando resolver. Para aqueles que desejam se tornar ou já são profissionais ou para curiosos como eu.  Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 01 junho 2023 | Tags: Comédia


< Filoctetes As nuvens >
Notas sobre humor
autor: Beto Silva
editora: 7 letras

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