Livros > Resenhas

Diário da queda

O livro “Diário da Queda”  de  Michel Laub é uma obra que me remeteu a Walter Benjamin. Tentarei ser breve ao tentar falar da história e do “paralelo” que me permiti fazer. O livro é apresentado em forma de diário, marcado por fluxos de memória e divididos em nove capítulos cujos títulos são: “Algumas coisas que sei sobre meu avô”, “Algumas coisas que sei sobre o meu pai”, “Algumas coisas que sei sobre mim”. Há ainda os capítulos intermediários que são as “Notas”. Nessas notas estão reunidas as partes excluídas, a princípio pelo autor, mas que são reaproveitadas ajudando a elucidar na construção da história.

“Diário da queda” narra a história de um personagem de família judia cujo avô havia sofrido com as atrocidades de Auschwitz e cujo pai lembrava ao filho sobre isso frequentemente.

"Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao menos em relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu, de ter chegado ao Brasil num daqueles navios apinhados”.

Percebe-se aqui neste trecho que a terrível experiência coletiva e histórica vivida pelo avô resultou na sombra do seu silêncio. Não há experiências a serem contadas - apenas sombras. Ele saiu de Auschwitz incomunicável e não  rico em experiências, ao contrário, saiu mais pobre. Perdeu todos os seus familiares, pai, mãe, irmãos, tios, avós, namorada, incluindo seus amigos de rua. Tudo. Perdeu seu passado. Seu avô foi um dos poucos sobreviventes que conseguiu refazer sua vida ocultando tudo o que viveu e readquiriu a dignidade que lhe foi roubada. Aos poucos, ele se exclui do convívio social para, trancado em seu escritório, escrever páginas e mais páginas de verbetes para uma estranha enciclopédia.

O narrador e neto, por sua vez, rememora sua vida de forma confessional. Em um colégio israelita na cidade de Porto Alegre, ele nos relata uma passagem que o marcou: quando João, um bolsista “goi”, foi alvo de bullyng pelos amigos judeus em sua própria festa de 15 anos. Em uma brincadeira característica de Bar Mitzva, João é jogado 13 vezes ao alto por colegas, todos eles judeus, mas na última vez, combinam de não ampará-lo. João cai e se machuca de maneira humilhante na frente de seu pai, um viúvo que preparara a festa com as dificuldades de uma pessoa humilde.

O narrador, desde então, passa a conviver com um sentimento de culpa que o acompanhará por toda sua vida. Acaba por decidir sair do colégio e denunciar para a diretora o nome de todos que participaram daquela maldade. Seu pai, inconformado com a decisão do filho em sair do colégio e pelo fato ocorrido, dá-lhe uma surra, e a partir daí nunca mais a relação entre os dois foi a mesma. Essa trama é desenvolvida em 151 páginas, um espaço conciso para Laub revelar a ausência de comunicação entre todos os envolvidos. Onde a experiência empobrecida do homem moderno é revelada de maneira exemplar.

Os livros de guerra que continuam invadindo o mercado literário não são experiências transmitidas de boca a boca. Porque nunca houve uma experiência mais sofrida por um povo do que ser incinerado sistematicamente. Experiências como essas geram apenas um sentimento: o desejo do total e mais absoluto esquecimento. Como se fosse possível que através do silêncio, tudo pudesse ficar distante e ser apagado pouco a pouco da memória mais recente, como se nunca houvesse existido. E esses sobreviventes, calados entre suas tristes memórias, aspiram, intimamente, que todo esse sofrimento, um dia, possa resultar em algo minimamente decente para aliviar suas vidas marcadas. E é neste ponto, na forma de transmitir as histórias vividas e lições aprendidas que inicio meu “paralelo” com as análises de Walter Benjamin sobre o papel do narrador.

Magia e técnica, arte e política”, no capítulo chamado “O Narrador”, Benjamin trata sobre o declínio da arte de narrar experiências coletivas. A arte de narrar sempre exerceu um vínculo estreito entre o narrador e seu povo, principalmente em suas camadas artesanais como camponeses e marinheiros. Na própria natureza da narrativa havia uma dimensão utilitária, pois o narrador era um homem que dava conselhos, tecidos na substância da própria vida. Era um homem que dispunha de sabedoria. “Um conselho fiado no tecido da experiência vivida, é uma sabedoria.” Segundo Benjamin, a narrativa chega a seu fim por desaparecer esse lado épico da sabedoria.

Vamos dar um exemplo através desta parábola: “Um velho no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio de tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho.” Nas sociedades pré-modernas, a narração funcionava como fato gerador de aglutinação social, pois almejava a vocalização genuína da cultura por meios de lições de vida, interesse prático e na forma de conselhos aos ouvintes.

O surgimento do romance está relacionado à solidão do indivíduo incapaz de narrar, de dar conselhos ou de ser aconselhado. Na verdade, o romance é uma tentativa do homem moderno de conferir sentido pessoal a sua existência considerada caótica e gratuita. O interesse do leitor moderno é a esperança de conseguir vivenciar histórias e sentimentos através da leitura. O leitor percorre ansiosa e solitariamente o texto no desejo de encontrar um sentido para sua vida. E fecho minha linha de pensamento exatamente  nesta obra, onde o neto não chegou a conhecer o avô. O que restou foi uma sombra que consumiu seu avô, passando para o pai e em seguida para ele mesmo. Percebam que não é a experiência vivida que é transmitida, mas uma sombra, uma ausência que por último chega ao narrador.

Os dezesseis cadernos que se constituíam no diário de seu avô em nenhum momento tratam sobre o Holocausto, mas silenciam esta experiência traumática. Os diários de seu pai, onde se observa a tentativa de manutenção dessa sombra se esvai com o Alzheimer, e por fim a própria relação do pai com a sua biografia.

Encerro esse paralelo com uma citação de Walter Benjamin:

“Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias e como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel de geração em geração? Quem é ajudado hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará se quer, lidar com a juventude invocando sua experiência? Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa.

Recomendo esta obra de Michel Laub, autor de quem me tornei freguês.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


< A montanha mágica Indignação >
Diário da queda
autor: Michel Laub
editora: Cia. das Letras

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

A Profissão da Sra. Warren

Resenhas

A Morte do Caixeiro Viajante

Resenhas

Casei com um comunista