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Viagem ao fim da noite

Sempre tive por esse escritor um enorme preconceito. A sua adesão ao nazismo e seu antissemitismo sempre me geraram repulsa. E assim como eu, muitos já se decepcionaram com ele ao constatar seu apoio voluntário ao governo “fantoche” de  Vichy, após a rendição da França às tropas alemãs, na Segunda Grande Guerra.

Porém, temos na história da literatura um bom número de escritores que eram excelentes no ofício da escrita e ao mesmo tempo verdadeiros canalhas. Louis Ferdinand Celine pertence a esse grupo. Sem dúvida “Viagem ao fim da noite” é um dos melhores romances do século. As primeiras cem páginas relatam massacres absurdos só encontrado em Erich Maria Remarque, em seu romance “Nada de Novo no Front”.

Na brilhante apresentação feita por Rosa Freire d’Aguiar um trecho merece destaque: “Um livro que denunciava com tanta veemência a guerra, o colonialismo, o capitalismo, o taylorismo, a pobreza do subúrbio, só podia ser um homem “de esquerda”. E assim foi Celine rotulado.

Para o jornal anarquista Le Libertaire, “como não simpatizar com a sua insubmissão total à velha sociedade burguesa?. Para o Monde, semanário próximo ao Partido comunista e dirigido por Henri Barbusse, “Celine é um dos nossos”. Houve quem frisasse as ambigüidades ideológicas do romance, mas coube ao escritor comunista Paul Nizan pôr os pingos nos is: “essa revolta pura pode levar Celine a qualquer lugar: até nós, contra nós ou a lugar nenhum”.

“Viagem ao fim da noite” foi o primeiro romance de Louis Ferdinand Celine. Esta obra quase autobiográfica desenha livremente seu banco de experiências através de seu herói-narrador - Ferdinand Bardamu.

O romance se situa cronologicamente na Primeira Guerra Mundial, precisamente, no período confuso do entre guerras, numa França que vivia seus últimos dias de glória como potência. Como o próprio título sugere “Viagem ao fim da noite” é um romance obscuro, com humor cínico onde o pessimismo em relação à natureza humana, as instituições sociais e à vida gera uma nova literatura ácida. Repleto de gírias e palavrões é uma sinfonia literária de violência, crueldade e niilismo obscenos. Ele aborda quase todos os aspectos negativos da experiência humana: a guerra, a covardia, mentiras, corrupção, traição, a escravidão, manipulação, exploração, perversão, a perseguição, traição, cobiça, doença, solidão, loucura, luxúria, fofocas, o aborto, a doença, vingança e assassinatos.

Pouco a pouco, o protagonista caminha entre o medo e a loucura de suas experiências de guerra. “Viagem ao Fim da Noite” é um grande retrato da loucura, mas não de um homem só, mas de toda uma sociedade.

Praticamente não há uma palavra alegre que possa ser encontrada, e seu estilo influenciou diretament Henry Miller e Anais Nin,  se espalhou pelo século inspirando Charles Bukowski que disse certa vez que “ O livro Viagem ao Fim da Noite foi o melhor livro escrito nos últimos dois mil anos." A banda The Doors  compôs a música "End of the Night" influenciado pelo  trabalho de Celine.

Mas não fica só por aí a lista de escritores influenciados por esse escritor: Jean Genet, os chamados “realistas sujos”; Pedro Juan Gutierrez e até Will Self foram alguns desses que poderíamos dizer influenciados pelo escritor francês. Do ponto de vista literário, esse primeiro romance de Céline talvez seja o mais notável, pois revela um estilo literário incrivelmente novo, que parece ser um reflexo da fala coloquial, equilibrando-se na fluidez do diálogo popular com imagens poéticas dignas da alta literatura.

Este livro chocou a maioria dos críticos, quando foi publicado pela primeira vez na França, em 1932, mas rapidamente tornou-se um sucesso de público na Europa, e mais tarde nos Estados Unidos. A história do improvável Bardamu, das trincheiras da I Guerra Mundial, para a selva Africana, a Nova York e Detroit, e finalmente para a vida como um médico em Paris, leva os leitores à conclusão de um romance inevitavelmente triste.

Céline é raramente apontado como um escritor relevante. Acredito que seu ostracismo se deve às escolhas sórdidas que fez em vida. O mundo de Celine é um lugar triste, amargo e solitário. Ao lermos esse livro somos forçados a visitar esses lugares, e, às vezes, alguns se perdem, nunca terminando a sua jornada.

Que a sua memória e suas opções ideológicas continuem nas trevas do fim da noite, mas que sua obra receba o reconhecimento merecido.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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Viagem ao fim da noite
autor: Louis-Ferdinand Céline
editora: Cia das Letras
tradutor: Rosa Freire D'Aguiar

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