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Na praia

Ian McEwan é um desses escritores que já tive problemas, não com ele, não exatamente com ele, mas com seus fãs. Aliás, já disse isso em “O Jardim de Cimento” já postado aqui no blog sobre essa birra. O que sempre me irritou era o clima afetado em torno desse autor. Prometo nunca mais mencionar tal fato no próximo livro que ler desse escritor. Podemos gostar de escritores da mais variadas formas, eu mesmo, tenho os meu favoritos, e Ian McEwan – acreditem - fazem parte deles, mas não discuto literatura como grife, gosto de suas histórias e da forma como ele nos conduz suas narrativas.

O Livro “Na Praia” foi finalista, em 2007, do Book Prize. A história cujo enredo se passa no ano de 1962 entre dois jovens de aproximadamente vinte anos e profundamente diferentes em suas origens: Mayhew Edward é um historiador de pós graduação, irmão de duas irmãs gêmeas e filho de um professor, e cuja mãe possuía lesões cerebrais significativas; Florence Ponting, uma violinista tímida e sensível filha de um industrial austero, e de uma conferencista em Oxford que não tinha o menor ouvido musical e relações afetivas próximas.

O casal se conheceu por uma dessas obras do acaso. Talvez, a escolha de Florence por Edward tenha sido em função de seu meio musical, onde havia músicos ambiciosos, mas ignorantes de tudo que estivesse fora do seu instrumento de escolha e de seu repertório. Edward era um tipo diferente.

No início do livro, a frase de abertura da obra nos dá exatamente a sensação do que ocorrerá ao longo da história: "Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversa sobre dificuldades sexuais era simplesmente impossível”.

Edward e Florence representam a última geração que nunca faria sexo antes do casamento. O romance centra nas diferentes personalidades do casal e, ao mesmo tempo, no pleno alvorecer de um despertar sexual nos anos 1960 na Grã Bretanha, e em todo mundo marcada como uma das décadas que revolucionou comportamentos em todo o mundo. Florence era uma violinista que possuía uma interpretação precisa, conhecida pelas riquezas de seus tons e pelo seu grande talento musical. Seus movimentos em relação ao seu instrumento transmitiam confiança, possuía a liderança em um quarteto de cordas. Ela era o “olhar” que os outros membros do grupo sempre procuravam para obter aprovação - ou não. Tinha uma dedicação total à música. Florence era uma dessas musicistas que se dedicavam quatro horas por dia ao seu violino e, nas horas vagas, ela ia a concertos com as amigas. Preferia acima de tudo os recitais de câmara no Wigmore Hall, e às vezes chegava a assistir a cinco por semana. Seu gosto musical não era incomum, mas intenso e clássico. Apesar de seus atributos musicais serem inquestionáveis, sofria e carregava a indiferença de sua mãe no início de sua infância. Nunca haviam trocado um beijo, um abraço, e com a frieza e austeridade do pai.

Seus sentimentos eram algo absolutamente exclusivo, vivia em um mundo encurralado entre ela e as inseguranças que guardava consigo. Principalmente no tocante a sua família. Possuía discordâncias políticas com o pai, mas nada que fosse algo importante. Mas tinha uma vida fora da música. Sabia discutir assuntos fora das partituras.

Edward nasceu em julho de 1940, na semana em que teve início a Batalha da Grã Bretanha. Tinha duas irmãs gêmeas. Seu pai, um professor que não possuía mais idade para servir ao exército. Sua mãe Marjorie, com o tempo foi adquirindo uma doença mental, uma figura fantasmática: “uma fada boa e triste, com o cabelo desgrenhado, que vagava pela casa como pela infância deles, por vezes comunicativa e até afetuosa, por outras distantes, absorvida em seus hobbies e projetos.”

Vez ou outra tateava as mesmas músicas errando na mesma nota. Vivia em seu próprio mundo. Aos quatorzes anos, Edward ouviu de seu pai algo surpreendente: sua mãe era deficiente mental. Possuidora de uma lesão cerebral irreversível. Mas nada mudou e tudo percorria a mesma rotina gentil com a mãe. Todos mantinham a ficção que ela mantinha a casa.

A narrativa do livro conduz os leitores a flashbacks onde a infância de Edward e Florence são expostas, na configuração social em que ambos se localizam, especialmente sobre o tabu: sexo e a vida dos amantes. É bom se manterem ligados que o livro não fica apenas na experiência sexual dos futuros nubentes. McEwan mostra a complexidade de cada pensamento dos personagens em jogo, principalmente sexual. Edward é mais ousado, Florence nem tanto, ou melhor, tem suas repressões e apreensões.

Florence anseia pela experiência sexual, mas nunca  ninguém a tocou e ela acredita que, mesmo este homem que ela ama não será capaz de dobrar sua história, seus medos e repulsas sentidos após ler um manual de casamento onde termos como “mucosa”, “glande” e “penetração” agrediram sua moral. Edward, por sua vez, sonha com fervor silencioso, com o prazer ininterrupto. Mas inevitavelmente estes dois mundos colidirão várias vezes de uma forma não favorável.

O brilhantismo de McEwan está em sua capacidade de colocar os momentos de forma única isolando cada cena distinta e investindo em significados. As implicações destes diferentes registros da educação repercutem de formas inesperadas em como essa história se desenrola. E as consequências dessas diferenças aparecem na incapacidade de ambos em se compatibilizarem sexualmente. Edward desesperado para possuir sua noiva e Florence desesperada para tentar aquilo que ela mais teme: a penetração. Ela se culpa por seus medos. Há muitas dicas do narrador onisciente que toda a questão teria se resolvido se ambos tivessem nascidos um pouco mais tarde, nos tempos mais permissivos. O jantar de núpcias é maravilhosa, e dolorosamente requintado e descrito pelo autor, no detalhe de uma cereja espetada a uma fatia de melão.

O que acontece no quarto é de uma solidão e tristeza acachapantes. McEwan descreve o pêlo pubiano no lençol. As marcas deixadas na praia de Chesil revelam dolo, repressão e arrependimento.

Não tenho direito de contar mais sobre a trama que envolveu toda essa triste história. Apenas dizer que Edward, com o passar dos anos, após perder seus pais e ter um casamento fracassado relembra Florence nas lojas de CDs quando encontra Florence e seu violino.

Talvez Florence precisasse de sua paciência, pois ela o amava. Mas é assim que muitas coisas deixam de acontecer quando não fazemos nada. Quando não gritamos o nome daqueles que estamos perdendo. Poderiam ter voltado, mas sempre preferiram o silêncio frio e honrado sentados na beira do caminho vendo as chances correr na praia perdendo-se nas ondas até se tornar um borrão, um ponto borrado, desaparecendo, desaparecendo, até virar uma luz distante. E aí já é tarde. Só restam as dores do arrependimento em uma praia qualquer.

Um livro que considero uma obra prima. Simplesmente maravilhoso.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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Na praia
autor: Ian McEwan
editora: Cia. da Letras
tradutor: Bernardo Carvalho

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