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Tempos extremos

O livro “Tempos Extremos”, de Miriam Leitão, me foi recomendado por muitos amigos que o haviam lido.Todos foram unânimes em sugerir que deveria ler esse livro.

 

Confesso que havia outros livros na frente. Mas sempre haverá outros livros na frente de outros. E a conta da leitura nunca fechará. É impossível.

 

Para começar, quero agradecer aos amigos que me indicaram essa leitura. Não é um livro bom, mas simplesmente ótimo. Um livro que me levou a reminiscências pessoais em vários momentos históricos narrados. Confesso ter passado, em minha vida, por muito do que vivem os personagens do livro, o que para mim só comprova que são absolutamente factíveis. A escrita é econômica, um texto primoroso, ágil e ao mesmo tempo cinematográfico.

 

Vamos a ele?

 

O livro é narrado em várias camadas históricas,  em que o passado ocupa um lugar central na narrativa, que transita das cicatrizes da escravidão aos subterrâneos do regime militar, até os dias de hoje.

 

Fazendo um breve resumo dos personagens dessa história, podemos fazer da seguinte forma: Maria José, mãe de quatro filhos, perdeu seu marido muito cedo e criou seus filhos praticamente sozinha. Hélio, o filho mais velho, um rapaz que tinha uma personalidade metódica e cheia de regras, resolveu seguir a carreira militar após o golpe de 64 e se formou nas Agulhas Negras em 1970. Acabou não sendo prestigiado pelas Forças Armadas e se aposentou mais tarde como general de pijama. Teve um filho, André, formado em física, de que falaremos mais adiante. Alice seguiu um caminho totalmente diferente. Em 1968 começou sua carreira revolucionária. Grávida de Carlos (seu marido), foi presa juntamente com seu companheiro, que foi torturado no batalhão da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita na Tijuca, Rio de Janeiro, de onde desapareceu sem deixar nenhum vestígio. Alice transformou-se numa prisioneira eterna de uma guerra já encerrada. Sua gravidez acabou gerando uma menina dona de uma incrível sensibilidade chamada Larissa, que ao longo de sua vida profissional trocou o jornalismo pelo estudo de história. Sonia é uma mulher descolada. Ao contrário dos outros irmãos, resolve investir na profissão e é a mais bem-sucedida financeiramente da família. Emocionalmente bem resolvida, vive minisséries afetivas com homens com a mesma perspectiva de classe escolhida por ela, ou seja, ricos, não importando o estado civil deles. Marcos passou a juventude sonhando em ser músico, mas se frustrou e nunca conseguiu ter uma estabilidade financeira. Raciocinando dentro dos parâmetros atuais, alguns poderão chamá-lo de looser, ou seja, um perdedor. No entanto, com o seu jeito relax, não conseguiu uma profissão fixa. Um homem que precisa se reinventar sempre. Ele, através de seu enorme repertório musical, dá o fundo musical de toda essa história.

 

Nessa história familiar existem dramas insanáveis, como a relação entre Alice (revolucionária e torturada) e seu irmão Hélio (militar com convicções muito próximas aos seus superiores na época da ditadura). Com a prisão de Alice, grávida de sua filha Larissa, e o desaparecimento do marido, Carlos, nos tempos da opressão, Hélio (o irmão militar) virou inimigo número um de Alice. Nessa relação trágica vivida entre os irmãos Alice e Hélio, o mito de Antígona ganha mais uma expressão na obra “Tempo Extremos” através de Alice, uma mulher capaz de assumir os valores mais elevados, mesmo com o risco da própria vida.

 

De um lado, a fé em suas ideias libertárias, tendo como defesa o cumprimento das leis da sua consciência, segundo ela, superiores às leis vigentes na época.

 

De outro lado, o inquisidor (Hélio), que tenta mostrar que ela (Alice) agiu errado, explicando seus motivos e razões, mas cada um continua impávido em suas crenças. Destemida, ousada e indomável, atreveu-se a desafiar a tirania, mesmo ciente da punição que a vida lhe impôs. O certo é que Alice recusou-se a obedecer as leis civis da época do regime militar, por achá-las inferiores aos seus desígnios éticos. Mas pagou um preço alto, como vocês verão quando lerem o livro. No entanto, o enredo do livro “Tempos Extremos” vai seguindo seu curso natural, fornecendo-nos uma fazenda centenária nas serras de Minas Gerais, longe da estrada, chamada Soledade de Sinhá, que fora marcada por camadas de tempo, registrando diversos ciclos econômicos da história do Brasil, como os relacionados à mineração, a plantações e criações de gado. Nessa propriedade, Larissa, filha de Alice, descobre uma “fissura no tempo” que nos leva ao século XIX, no qual aparições vindas da senzala comunicam-se com ela. O primeiro espectro é Constantino, um escravo, e depois seus dois filhos, Bento e Paulina, que querem saber sobre o seu futuro:

 

“Nós a trouxemos na esperança de que o futuro tivesse resposta – diz Paulina. – Hoje entendo que cada um lutará sua luta solitária. Bento e eu sonhamos o mesmo sonho, mas construímos estradas opostas. Minha esperança, quando fui enviada a buscá-la, era que você tivesse a resposta para nós. E você nada soube dizer. Se o futuro não tem respostas, é porque meu é o destino e minha a escolha”... “... Queríamos interrogar o futuro. Que dia será amanhã? Terei minha liberdade? Você é capaz de ler o livro escrito depois de nós. Como será a liberdade para cada um de nós? Essa era esperança. Entendo o que você tem dito: foram vários os caminhos”... (pg. 136) “...Não sabemos da vasta multidão de pessoas que, em cada pedaço do Brasil, travou sua batalha solitária. Na verdade, é essa longa teia de resistência que permite a vitória, mas a história é cruel com os anônimos” (pg. 137)

 

Afinal, em  que tipo de fissura do tempo que Larissa entrou? Seu primo André, que é físico, responde às suas indagações. Larissa pergunta:

 

 “- Pode-se voltar no tempo? - Não. Isso não. O passado passou. - Não posso voltar? - Não pode. - O tempo vivido é irreversível? - Sim.” (pg. 149)

 

A pergunta ainda continua: em que fissura do tempo Larissa entrou? Larissa é uma historiadora convidada pelos mortos a ouvi-los sobre o passado, sem perder de vista os indivíduos que a própria história tratou de esquecer ao longo do tempo. São vozes caladas que construíram uma narrativa ao longo do tempo em que viveram, mas que foram caladas pelas vozes hegemônicas, ou seja, pela narrativa dos vitoriosos.

 

 No entanto, apesar de vencidas, essas pessoas deixaram suas marcas no tempo, viveram experiências autênticas, conceberam suas próprias narrativas, fizeram história. Do passado, elas perguntam para futuro o que foi feito delas. Larissa nos convida a refletir não apenas sobre uma história oficial, mas sobre muitas histórias amontoadas em escombros sobre escombros. Ela bem que gostaria de demorar-se no passado, juntar seus destroços e falar das imprecisões dos fatos pretéritos, das injustiças às quais os ditos perdedores sofreram. Larissa gostaria de despertar os mortos e juntar os destroços. Mas é do futuro que sopra uma tempestade, enquanto as ruínas do tempo crescem até o céu. E essa tempestade tem um nome: se chama progressoe traz em sua narrativa um profundo conformismo e uma visão fatalista do passado, ignorando o ponto de vista daqueles que também fizeram a história com seu trabalho e seu sofrimento e que não tiveram seus nomes gravados em documentos e nem tiveram estátuas erguidas em seu nome.

 

- O futuro nada sabe de nós? De que serve ser do futuro se é para ficar na ignorância do que foi vivido? – pergunta Bento. (pg. 137)

 

Foi assim que li “Tempos Extremos”, de Miriam Leitão. Mas admito que essa interpretação pode não ser unânime. Daí, convido a todos que leram, ou que ainda planejam ler esse livraço, a um debate aqui neste espaço.

 

Este é um dos grandes livros que li em 2016 e sem pestanejar recomendo. É um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


< O estrangeiro Almas mortas >
Tempos extremos
autor: Míriam Leitão
editora: Editora Intrinseca

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