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Almas mortas

Sempre quando via o livro “Almas Mortas” de Nikolai Gogol na estante de uma livraria imaginava que o livro falasse sobre a miséria, guerras, coisas que nos remetessem a algo trágico da alma humana.

 

O livro não deixa de falar um pouco sobre as almas, mas carrega uma ironia própria dos grandes escritores. Reza a lenda que Pedro, o Grande, Czar da Rússia, resolveu que todo mundo que possuía alma deveria pagar um imposto por ela. Pedro, o Grande, não era um rei religioso e não acreditava no conceito de alma, mesmo assim fazia outros ateus pagarem um imposto por sua não religiosidade, que era o equivalente ao imposto da alma. Os proprietários de terras eram tributados em sua folha de pagamento de servos, que incluía aqueles que já tinham morrido. Se isso foi verdade ou não, pouco importa, mas o livro “Almas Mortas” fala sobre o tema.

 

A história é insólita. O personagem central do livro, Pável Ivánovitich Tchítchicov, é um homem que planejava ganhar dinheiro, mas não ficava só por aí, ele queria mais, buscava vantagens, respeito, tudo isso se utilizando de uma lábia fora do normal.

 

Na época em que se passa a história, os grandes donos de propriedades rurais eram donos de muitas almas, que eram os servos que aravam a terra sem nunca ter o direito à posse delas.

 

O livro é um exame satírico da nobreza russa de 1800 e da sociedade, em que os proprietários de terra mediam sua riqueza não pelas terras que possuíam, mas pelo número de almas que possuíam. Nosso herói vem do baixo escalão, possui as palavras certas para os lugares certos no tocante aos elogios a terceiros. Thichikov foi criado por um pai que o aconselhava a agradar sempre os superiores, a não ser seduzido por amizades, e que lhe lembrava que nada na vida é mais importante que o dinheiro.

 

Logo no início do romance, Tchitchikov chega pela estalagem da cidade-sede da província NN. O nosso protagonista vai visitar muitas pessoas influentes e causa uma boa impressão a todos. Ele é um homem charmoso, educado, talentoso, sagaz e bonito. Sua personalidade encanta a todos. Em um primeiro momento temos a impressão de ser um homem honesto e bondoso. Ele recebe inúmeros convites para visitar novos amigos, que vivem na zona rural.

 

Ninguém tem a menor ideia dos motivos de uma visita tão “ilustre”.

 

Quais seriam os motivos? A primeira parte do livro é contada sobre o prisma do narrador. Parece ser uma visão na terceira pessoa onisciente, mas o narrador também coloca suas próprias opiniões no livro. Este ponto de vista onisciente dá ao leitor a oportunidade de conhecer tudo sobre o protagonista. Mas o narrador é tão encantado por Tchitchikov que acaba transformando-o em um herói, quando na verdade ele não passa de um impostor.

 

Acrítica de Nikolai Gogol vai direto ao ponto, ou seja, da burocracia russa ineficiente e numerosa (em 1885, o número de funcionários rondava o meio milhão) ao regime de servidão e da miséria. Tchitchicov é um escroque mentiroso funcionário dessa burocracia, um homem estratégico que sabe o que quer. E o que ele quer? Viajar pelo interior da Rússia, seduzir com sua lábia de homem educado que era, ganhando a confiança e o respeito dos detentores dos mais altos cargos das províncias e cidades distantes, e adquirir os servos já mortos que ainda não foram dados como mortos pelo recenseamento.

 

Em outras palavras, ele quer hipotecar almas como se todas estivessem vivas e com isso obter lucro. Mas na verdade é muito mais do que isso. Seu engenhoso plano de comprar almas tem como objetivo tornar-se um proprietário de terras. Como assim? Simples. Se o proprietário vende uma alma, para Tchitchicov, o vendedor não perde nada. Pelo contrário, ele economiza no imposto que teria que pagar e ainda ganha uma quantia em rublos. Quanto ao comprador, ele adquire essas almas mortas como suas e elas serão anexadas ao seu patrimônio, o que lhe permitirá dá-las como penhor e obter empréstimos úteis para futuras transações.

 

Nessa passagem do livro, Nikolai Gogol, através de seu personagem Tchitchicov, mostra como a estranha operação narrada acima se processava. Leiam com atenção para entendê-la:

 

“... – diga- me mãezinha, têm morrido camponeses, seus? - Nem me fale paizinho – dezoito homens! Disse a velha com um suspiro. – E tudo gente boa que morreu, bons trabalhadores. É verdade que nasceram outros depois, mas o que valem? É tudo criançada; mas o fiscal chegou, mandando pagar a taxa por alma, da mesma forma. Os homens estão defuntos, mas eu tenho que pagar como se estivessem vivos. Na semana passada morreu queimado o meu ferreiro tão capaz e também era mestre serralheiro. - Mas não houve incêndio aqui, mãezinha? - Deus me livrou duma desgraça dessa, um incêndio teria sido pior ainda; ele se queimou por si mesmo, meu paizinho. Não sei como, as entranhas dele pegaram fogo, ele tinha bebido demais, foi só uma chama azul que saiu dele, e ele se foi consumido, consumindo, enegreceu como um tição – e era um ferreiro tão habilidoso! E agora nem posso sair com o meu carro: não tenho ninguém para ferrar meus cavalos. - Tudo é vontade de Deus, mãezinha - disse Tchitchicov com um suspiro. – Não se pode dizer nada contra a sabedoria divina... Não quer cedê-los a mim, mãezinha? - Todos esses aí, que morreram. - Mas cedê-los de que maneira? - Muito simples, assim mesmo. Ou então, se preferir, venda-os. Eu lhe daei dinheiro por eles. - Mas como assim? Confesso que não estou entendendo. Não é que o senhor vai querer desenterrá-los das sepulturas? Tchitchicov percebeu que a velha estava longe e que era imprescindível esclarecer-lhe do que se tratava. Em poucas palavras, ele lhe explicou que a transferência ou compra apenas no papel e que as almas seriam registradas como se fossem vivas. - Mas para que é o senhor precisa delas? – perguntou a velha, de olhos arregalados de espanto. - Isso já é assunto meu. - Mas se elas estão mortas! - E quem é que está dizendo que estão vivas? É por isso mesmo que elas lhe dão prejuízo – por estarem mortas; a senhora paga imposto por elas, e agora eu vou livrá-la das preocupações e dos pagamentos. Está entendendo? E não só vou livrá-la das preocupações e dos pagamentos. Está entendendo? E não sou vou livrá-la de tudo isso, como ainda lhe pagarei quinze rublos. Está tudo claro agora?” (pgs. 83 e 84)

 

O plano de Tchitchicov é simples. Ao comprar almas mortas a partir de pequenos proprietários de terra, esses servos permanecem em livros dos fazendeiros até o próximo recenseamento e, muito embora mortos, são tributáveis. Ao comprá-los, aliviam a carga fiscal dos proprietários.

 

Seu plano é instalar esses servos mortos nas listas fiscais de uma propriedade distante, em que ele vai, então, ser capaz de obter uma hipoteca generosa do governo e sair com uma pequena fortuna. Conseguirá Tchitchicov alcançar os seus objetivos? Teria ele ficado rico? Ele é um fantasista que se imagina um dia correr uma propriedade produtiva, com uma esposa bonita e crianças finas, ser o próprio modelo do perfeito cidadão russo.

 

Bem, deixarei a resposta com vocês. “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, é um livro espetacular, escrito por um gênio da literatura russa e universal. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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Almas mortas
autor: Nikolai Gogol
editora: Editora Perspectiva
tradutor: Tatiana Belinky

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