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A Idade da razão

“A Idade da razão” é o primeiro livro de uma trilogia escrita por Jean Paul Sartre que se passa na França na época da Segunda Guerra Mundial. O segundo romance chama-se “Sursi”, e o terceiro “Com a morte na alma”.  A “Idade da razão” é uma obra de cunho filosófico-existencialista que trata da problemática da liberdade, da consciência e da moralidade na constituição do homem através da história de Mathieu Delarue, um professor de filosofia que, por defender a ideia de uma liberdade individual irrestrita, despreza qualquer tipo de compromisso.

Antes de entrar na história propriamente dita, vamos falar um pouco sobre a filosofia do autor. Sartre é conhecido como um filósofo existencialista. No entanto, ele não foi o primeiro a formular o existencialismo. Apesar de seu nome estar profundamente ligado a esse sistema de pensamento, ele não foi o fundador do existencialismo.

A questão da existência é um tema que preocupa os seres humanos desde os primórdios e, desde o início da Bíblia, o livre arbítrio tem sido uma grande preocupação. Pode-se ler nos Eclesiástico (15:14) os seguintes dizeres: “Desde o princípio, Deus criou o homem e o entregou ao poder de suas próprias decisões”. Essa noção de liberdade ecoa através dos tempos, de vários pontos de vista. O Contrato Social de Rousseau gira em torno da citação acima, ou seja, o homem nasce livre, mas está acorrentado em toda parte, e o mesmo acontece com as obras dos escritores que conhecemos como existencialistas.

Existem duas categorias amplas de existencialistas: cristãos e ateus. Entre os cristãos, encontram-se Sören Kierkegard, Karl Jaspers. Entre os ateus, o mais célebre, antes de Sartre, foi Martin Heidegger.

Kierkegard, um filósofo dinamarquês do século XIX, é considerado um dos fundadores do existencialismo moderno. Como cristão, afirmou que alguém poderia escolher uma vida com Cristo ou uma vida sem Cristo. Ele admitia que não havia razões lógicas para acreditar em Cristo e que a fé não é uma prova racional da existência de Deus. Ele acreditava que, independentemente das escolhas religiosas de alguém, a humanidade seria atormentada pelo desespero consciente ou inconsciente.

Kierkegard não estava interessado em uma prova objetiva e científica de Deus; ele sabia que a vida, independentemente da religião, era cheia de desespero e que uma “objetividade” desapegada era incapaz de mudar isso. Ele propôs que a única maneira possível para encontrar a verdade seria através das intuições e sentimentos de alguém, através do salto da fé (“verdade é subjetividade”). Essa forma de existencialismo, ancorada na crença em Deus, não foi a escolha de Sartre.

Heidegger, o filósofo alemão, era mais próximo ao seu pensamento, que ainda estava em formação. Para Sartre, a existência precede a essência, especialmente dada a conclusão de Heidegger de que a vida é tecida com cuidado e pavor, e que todos os projetos acabam em nada, ou seja, na morte. Em seu tratado filosófico “Ser e o Nada”, carrega a marca muito clara desse modo de raciocínio. Sartre tirou de Heidegger a noção básica de que a vida é absurda, de que o universo era irracional e sem sentido e de que o absurdo final era a morte. A partir dessas ideias, ele criou o seu próprio sistema de pensamento e desenvolveu o que conhecemos como existencialismo sartriano.

Sartre via o universo como algo irracional, sem sentido. A existência era absurda, e a vida não tinha sentido, propósito ou explicação. A morte era a cereja do bolo totalmente absurda, tornando a vida ainda mais intolerável, mais ridícula. Foi nesse estado de espírito que ele produziu seu grande estudo filosófico “O Ser e o Nada”, um estudo da ontologia fenomenológica da humanidade (a natureza do ser). Sartre não se interessava pela metafísica tradicional, pois sentia que os problemas ancestrais desses pensadores nunca seriam resolvidos pela humanidade. Sartre sugeriu, por exemplo, que os argumentos contra ou a favor da existência de Deus eram igualmente equilibrados e que nenhuma argumentação racional forneceria a palavra final. Seu raciocínio era simples: a humanidade era virtualmente incapaz para descobrir soluções para tais problemas, então por que perder tempo? Sartre abandona a abordagem racional e opta pela abordagem fenomenológica.

A fenomenologia foi originada pelo filósofo Edmund Husserl, no final do século XIX. A fenomenologia é um método usada para definir a essência dos dados conscientes (eidos), e investigava apenas aqueles fenômenos que podiam ser vistos, tocados, verificados, vivenciados diretamente por nós e relacionados em termos de nossa experiência consciente. Uma metodologia lógica, baseada na relação de atos conscientes com objetos significativos.

Em Sartre, o Ser e o Nada baseou-se na filosofia apresentada por Husserl. Ele definiu a consciência humana como um nada, e a colocou em oposição ao ser, isto é, à coisa. É de acordo com essa definição que Sartre abandona Deus; sua decisão é por motivos morais, pois acreditar em Deus limita a liberdade e, em última instância, a responsabilidade da pessoa. Deus não é algo que não pode ser visto, tocado ou percebido de maneira verificável – portanto, ele não pode pertencer ao sistema fenomenológico. Ser e Nada é um estudo psicológico, como a maioria das obras filosóficas de Sartre: ele identifica a teoria da liberdade com a da consciência humana, mostrando que todas as descrições objetivas da humanidade falham em definir os humanos adequadamente.

Uma vez que a consciência de uma pessoa está fora dos limites da investigação objetiva, resta a liberdade de escolha, que envolve crenças e ações da vida. Essa liberdade de escolha está no centro do existencialismo.

Falaremos mais sobre isto em outra ocasião.

 

Vamos ao livro?

Li pela primeira vez “A Idade da razão” quando estava entrando para a Universidade, havia gostado muito. No entanto, meus estudos estavam direcionados a outras disciplinas filosóficas. “A Idade da razão” é simplesmente sensacional, o livro se move de uma forma fácil, e com muita imaginação.

O livro possui ideias e questões que são universalmente importantes. Os personagens da história existem em uma atmosfera repleta de uma consciência cinzenta sobre a finitude humana. A Guerra Civil Espanhola se esconde em um plano mais secundário, pois um conflito maior está no horizonte. Os protagonistas são jovens o suficiente para ter um futuro que almejam, mas também são velhos o suficiente para saber que esse futuro não é infinito. Eles podem ver os sinais na idade avançada nos rostos uns dos outros e, assim como estão melancólicos com o passar da juventude, também estão preocupados com o futuro. Ao longo do romance, nosso olhar mental é, portanto, atraído para trás e para frente, encorajando-nos a contemplar o passar do tempo e a encarar com urgência a tarefa de abraçar a vida e os projetos que escolhemos.

A história se concentra em Mathieu, um professor de filosofia em Paris, que enfrenta uma terrível crise existencial. O tema central do romance diz respeito às suas lutas enquanto tenta compreender o significado e o propósito de sua vida ao envelhecer e enfrentar a sua própria liberdade de escolher caminhos alternativos de vida.

O livro começa com Mathieu Delarue descendo a rua Vercingetorix quando é parado por um homem bêbado (presumivelmente um sem-teto) ansioso por uma grana para beber. Mathieu lhe dá uma grana até ser parado por um policial que questiona a grana dada, mas Mathieu alega que eram amigos e tudo fica por aí mesmo. Esse pequeno incidente é importante porque logo depois ele terá um problema, mas ele sempre foi um gastador. Ao ser convidado para beber com o sem-teto, ele opta por  ir à casa de sua amante Marcelle, que mora com a mãe idosa.

Quando chega à casa de sua amante, percebe que ela está infeliz. Mathieu percebe uma fotografia:

“Havia em cima da lareira uma fotografia que ele não conhecia. Aproximou-se e viu uma jovem magra, penteada como rapaz e que ria de um jeito ríspido e tímido. Envergava um paletó de homem e calçava sapatos de salto baixo.

- Sou eu – disse Marcelle, sem erguer a cabeça.

 Mathieu voltou-se. Marcelle levantara a camisola sobre as coxas gordas. Estava curvada e Mathieu adivinhava sob a vestimenta a fragilidade dos seios pesados.

- Onde é que você achou isso?

- Num álbum. Data do verão de 1928..

... Mathieu pegou a fotografia e ela arrancou-lhe das mãos. Ele sentou-se ao seu lado. Ela teve um arrepio e afastou-se um pouco. Olhava para a fotografia com um vago sorriso:

- Como eu era engraçada- disse.

 A jovem mantinha-se rígida, apoiada à grade de um jardim. Abria a boca e devia estar dizendo também: “É cômico”, com a mesma desenvoltura atarantada, a mesma ousadia sem firmeza. Só que era jovem e magra.

Marcelle sacudia a cabeça

- É de morrer de rir! Foi tirada em Luxemburgo por um estudante de farmácia. Está vendo o meu blusão? Eu o comprei nesse mesmo dia, porque íamos dar um grande passeio a Fontainebleau no domingo seguinte. Meu Deus...!

Havia alguma coisa por certo. Nunca seus gestos tinham sido tão bruscos, sua voz tão masculina. Ela estava sentada à beira da cama, mais do que nua, sem defesa, como um pote enorme no fundo do quarto cor-de-rosa, e era penoso ouvir essa voz masculina enquanto o cheiro forte e sombrio se exalava dela. Mathieu tomou-a pelos ombros, apertando-a.

- Tem saudades dessa época?

Marcelle respondeu secamente:

Dessa época não, mas na vida que poderia ter tido” ( pg14)

Eles mantinham uma relação que já durava sete anos. Mathieu havia se cansado de Marcelle, mas continuava a ir vê-la regularmente, quatro vezes por semana. No entanto, nessa noite, um novo elemento surge, a rotina muda, pois Marcelle conta que está grávida de um filho.

 “Pois é - disse Marcelle. – Você já sabe. Que vamos fazer?

- Pôr para fora, não acha?” (pg 23)

Mathieu deseja que um aborto seja o mais seguro possível. Ele consulta Sarah Gomez, que interrompeu a gravidez alguns anos antes. Sarah lhe dá um endereço de um médico confiável, mas caro, que partirá de Paris para os Estados Unidos em alguns dias. Mathieu deve ter que conseguir quatro mil francos. Para isso, ele vai ao seu amigo Daniel Sereno, que afirma não ter tanto dinheiro (embora na verdade ele tenha dez mil francos na carteira). Em seguida, Mathieu se volta para o seu irmão, mas é também rejeitado. Jacques também tem dinheiro, mas desaprova a vida boêmia do irmão. Se ele se casar com Marcelle, seu irmão promete que lhe dará dez mil francos. Mas se recusa a pagar um aborto.

Boris Serguine é um aluno e admirador de Mathieu. Ele não tem essa quantia, mas sua amante, Lola Montero, mantém sete mil francos em seu quarto. Para sua surpresa, quando ele lhe pede quatro mil francos, ela se recusa. A discussão que se segue a aflige tanto que ela toma uma overdose de cocaína. Boris acorda com ela totalmente fria, com o quadro de morte por overdose. Ele foge do apartamento.

Quando Boris sai totalmente sem chão, ele encontra Mathieu e implora para que ele volte ao quarto de Lola e remova algumas cartas, para que Boris não seja implicado na morte de Lola. Mathieu concorda e, ao mesmo tempo que pega o pacote incriminador, pensa em roubar o dinheiro de que necessita. Enquanto ele hesita, Lola se recupera, revive. Ele ainda tem a chave do baú dela e, mais tarde naquele mesmo dia, com mais resolução, ele pega os cinco mil francos.

Quando ele apresenta o dinheiro a Marcelle, ela pega o dinheiro e joga na cara dele. Ela quer ficar com a criança, e Daniel, que há algum tempo a visita, a encoraja maliciosamente a acreditar que Mathieu  se casaria com ela.. Em vez de concordar com um aborto e continuar seu caso com Mathieu, ela se casará com Daniel, sem suspeitar que ele seja homossexual que está levando uma vida para humilhar Mathieu e a si mesmo.

Ao retornar para seu apartamento, Mathieu encontra Ivich, uma mulher jovem e bonita, atormentada por todos os tipos estranhos de ansiedade e problemas psicológicos. Ela é irmã de Boris, seu aluno. Ela havia sido apresentada por Mathieu, que se apaixona por ela devido à sua aparência e juventude. Além de uma estranha relação com a arte que ambos desfrutam.

Pois bem, ela não aceita ser tocada por ele e sai. Mas, quando se preparava para partir, quem aparece? Lola, namorada de Boris, acusando-o de ter roubado o dinheiro dela. Mathieu explica o que aconteceu, e Daniel aparece com o dinheiro que Marcelle recusou. Fico por aqui, mas tem mais.

Para finalizar, é preciso que o leitor desta resenha entenda a filosofia de Mathieu e o peso de suas escolhas, ou tentar se manter alheio a tudo. O jovem professor de filosofia enfrenta o seguinte dilema: de que serve a liberdade para se comprometer? O que nos leva a um comprometimento? A gravidez de Marcelle como um convite a um compromisso ou a de seu amigo Brunet, que o chama a se filiar ao Partido Comunista no meio de uma ocupação alemã na França? É algo contingente?

Para Sartre, a existência precede a essência, a liberdade absoluta, e a existência é liberdade. Sartre não acredita que qualquer essência ou substância possa ser atribuída a indivíduos antes de sua existência. Em primeiro lugar, os indivíduos existem, e não a é “natureza humana” que existe fora dos seres. A liberdade é, portanto, ilimitada, mas suas limitações físicas do mundo são levadas em consideração.

Tentarei dar um exemplo para tentar facilitar a noção de liberdade de Sartre. Eu posso, por exemplo, subir ao Corcovado sem nenhuma asa delta e voar, mas é quase certo que vou cair porque não tenho asas, e vou arcar com as consequências de minha ação. Sartre diz que a liberdade significa “por si mesmo determinar-se a desejar”. Trocando em miúdos, o sucesso não é importante para a liberdade. Existe uma diferença entre a escolha, desejo e sonho. Se alguém está preso numa prisão, por exemplo, não é livre para sair da prisão quando quiser.

“A Idade da Razão” coloca para o leitor um paradoxo existencial – somos escravizados e aprisionados por nossa liberdade inescapável – em prática. Matthieu viveu durante toda a sua vida adulta em um período confortável, em um período de ceticismo incontestável. Rejeitando os clichês burgueses do casamento e da unidade familiar nuclear, o único princípio conhecido por Matthieu é “reter a sua liberdade” a todo custo. No entanto, na prática, ele vive em uma zona de conforto.

Sartre coloca as convicções teóricas de Matthieu em rota de colisão com as circunstâncias inexoráveis de sua existência física, enfrentando suas próprias contradições.

“O dia estava acabado e acabava a sua mocidade. Morais comprovadas já lhe ofereciam seus serviços. O epicurismo desabusado, a indulgência sorridente, a resignação a seriedade do espírito, o estoicismo, tudo que permite apreciar, minuto por minuto, como bom conhecedor, uma vida malograda. Tirou o paletó, pôs-se, a desfazer o nó da gravata. Repetia bocejando: - Não têm dúvida, não têm dúvida, estou na idade da razão.” ( pg 320)

Desse modo, podemos concluir que o que o nosso personagem faz é negar a sua própria liberdade. Assumir seu ser equivale a escolher-se, a correr riscos implicados em nossas próprias escolhas. Para isso, ele recorre à má-fé para fugir das situações.

Concluímos que o homem sartriano é livre para negar a sua própria liberdade, o que faz dele um condenado à liberdade. “A Idade da Razão”, de Jean Paul Sartre, é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 18 dezembro 2020 | Tags: Romance


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A Idade da razão
autor: Jean Paul Sartre
editora: Difusão Europeia do Livro (DIFEL)
tradutor: Sérgio Milliet

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