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O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha - Volume 1

Vamos começar esse 2021 com o melhor livro já escrito na literatura Ocidental, pelo menos na minha opinião de leitor. Miguel de Cervantes escreveu a primeira obra-prima sob a prensa de Gutemberg.

Com a descoberta da prensa por Gutemberg, a impressão da Bíblia foi concluída no ano de 1455 e se tornou o primeiro grande livro produzido na Europa. Mas o segundo livro mais lido foi Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Jorge Luís Borges escreveu uma vez que todos os livros de Don Quixote em castelhano e traduzidos poderiam se perder, serem queimados, mas a figura de Dom Quixote já faz parte da memória da humanidade.

Vou logo dizendo a todos vocês no início do ano que se inicia que esta resenha vai ser longa. Afinal, o livro tem mais de mil páginas. Não há como não ser. É aquele livro que emociona, e cabem diversas interpretações sobre o personagem. O nosso Dom Quixote em português (a meu ver) foi o personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Minha modesta opinião. Inclusive o livro encontra-se resenhado aqui no site.

O livro se divide em duas partes. A primeira parte chama-se “O Engenhoso Fidalgo Don Quixote De La Mancha”(publicado em 1605), e a segunda parte do “Cavaleiro Engenhoso Dom Quixote de La Mancha” foi escrita em 1615, pelo escritor Miguel de Cervantes, um dos clássicos mais lidos da literatura ocidental. O romance foi um grande e contínuo sucesso. Poucos leram esse livro. Mas todos conhecem a história.

No prólogo do livro, um suposto amigo de Cervantes o repreende por sua preguiça e o aconselha a escrever poemas e creditá-los a poetas famosos ignorando quaisquer objeções dos acadêmicos. Ele nos fala sobre a dificuldade de escrever esse prólogo, que, segundo Cervantes, foi mais difícil do que escrever o livro propriamente. Pois esse amigo começa a dar alguns conselhos. Um deles é que o trabalho pareça erudito. Seu amigo o aconselha a inserir frases latinas aleatórias entre suas frases nos contextos mais apropriados.

E como traduzir na prática esses conselhos (segundo o seu amigo)?

“E quanto a citar nas margens dos livros e autores de onde extraístes as sentenças e os ditos constantes de vossa história, basta-vos-á fazer de maneira que venham a pelo algumas sentenças ou latinórios que saibais de memória, ou, pelo menos, umas frases que deem pouco trabalho de ser encontradas como seria o caso, se estivésseis tratando de liberdade e cativeiro:

 No bene pro totó venditur auro (Não se compra com ouro a liberdade total).

E em seguida, na margem, citar Horácio, ou quem quer que o tenha dito. Se tratardes do poder da morte, podeis logo acudir com esta:

Pallida mors acquo pulsat pede pauperum tabernas, regumque turres. (A morte pálida tanto bate na choupana do pobre como no palácio do rei)

Se for sobre amizade e amor que Deus ordena votar-se ao inimigo, recorrei de imediato à escritura Divina, popis apenas um pouquinho de curiosidade poderíeis repetir nada mais, nada mnos que as palavras ditadas pelo p´roprio Deus:

Ego autem dico vobis: diligite inimicos vostros. (Eu também vos digo: amai vossos inimigos)

Se tratardes de maus pensamentos, acudi com o Evangelho:

De corde exeunt cogitationes malae. (Os maus pensamentos saem do coração)

Se da instabilidade dos amigos, aí está o Catão para darvos seu dístico:

Dome eris felix, multos numerabis amicos. (Enquanto fores feliz seus amigos serão numerosos)

Tempora si fuerint nubila solus eris. (Mas quando os tempos se tornaram adversos, estarás sozinhos)” (pg10)

 E na mesma página uma infinidade de outros conselhos divertidíssimos.

 “...para vos mostrardes erudito em humanidades e Cosmografia, fazei de modo que na vossa história se mencione o Rio Tejo e isso vos proporcionará outra notável anotação” (pg10)

O amigo prometeu encher o livro de Cervantes com todo tipo de anotações eruditas. Mais importante ainda, diz o amigo, não há necessidade real de citar estudiosos e filósofos porque o propósito do livro é completamente novo. O livro foi escrito para zombar de romances de cavalaria, então tudo que ele precisa fazer é imitar e satirizar esses romances. Acima de tudo, deve instruir e agradar a todos que o leem, de forma simples e direta.

O prólogo em si serve para nos mostrar como o autor é um bom contador de histórias. A franqueza absoluta de Cervantes não só admite a sua ignorância ao escrever o prólogo, mas transcreve uma conversa inteira para mostrar o desenvolvimento de seus pensamentos. O leitor sabe que não aparece nenhuma erudição nessa “história profana” do famoso Cavaleiro de La Mancha, e a história parece verdadeira.

Cervantes expõe suas principais qualidades como escritor: os detalhes realistas retratados como se estivessem em uma pintura escrita intencional para destruir a influência perniciosa dos livros de cavalaria. Além de divertir o leitor no prólogo, Cervantes promete uma história didática e verdadeira, o que de fato ele conseguiu fazer. Não é à toa que é considerado o primeiro romance moderno da literatura ocidental.

 Na introdução do livro cujo título é “Universalidade de Cervantes”, escrita por Julio G.Garcia Morejon, é feita esta comparação interessante entre Dom Quixote e Hamlet:

Os homens da época não percebiam claramente o que se passava (no caso na Espanha com sua obsessão de grandeza que ofuscava sua visão de mundo), embora alguns pressentissem o desastre.

“... Ramiro de de Maetzu interpreta o mito de Cervantes como o mito da promessa, e o de Dom Quixote como o mito do amargo resíduo de uma promessa já realizada.” (pg XIX)

Em síntese, podemos dizer, a partir da citação acima, que a obra de Cervantes é a obra do desencanto espanhol. Mas, mais do que isso, podemos dizer que a obra de Cervantes é a obra mais humanamente dramática que uma imaginação já concebeu. É a força e a ideia que se chocam contra os rochedos da racionalidade humana. Bem, dito isso, vamos ao que interessa. Vamos à história?

 Nosso herói à beira dos cinquenta anos de idade:

“era de compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto madrugador habitual e amigo das caçadas. Dizem que tinha o sobrenome de Queixada, ou Queijada, mas há nisto uma discordância entre os autores que escreveram sobre este caso; outrossim, certas conjecturas verossímeis levam à suposição que se chamasse Quixana. Mas isso pouco importa à nossa história: basta que, durante a narrativa, não nos afastemos da verdade.” (pg 27)

Vive modestamente na aldeia espanhola de La Mancha com a sobrinha Antonia e uma empregada mal-humorada. Quixano era um homem respeitoso com as classes dominantes, que ele aceita sem questionar como seus superiores. Ele não é movido nem pela ambição nem pela riqueza ou posição social. É respeitoso com os servos. Ele não é movido nem pela amargura de uma pobreza refinada.

Os únicos bens valiosos para ele são os seus livros. A partir de suas leituras e estudos, ele se torna gradualmente interessado, e depois obcecado com os códigos, feitos e contos de cavalaria – de cavaleiros errantes em alguma missão cortês e idealizada. À medida que aumenta seu apetite pelas tradições de cavalaria, Quixano começa a vender acres de suas terras agrícolas, usando os fundos para comprar mais livros, dedicando-se cada vez mais aos estudos.

“Daí para frente, foi ficando tão obcecado com a leitura, que a ler passava as noites de claro e os dias de turvo em turvo. E assim, o pouco dormir e o muito ler se lhe secaram de tal maneira o cérebro, que acabou de perder o juízo. Sua imaginação encheu-se até à borda com tudo aquilo que lia nos livros, tantos nas feitiçarias como de contendas, batalhas, e de tal modo se lhe afigurou verdadeira toda a trama das sonhadas invenções que lia, que para ele não poderia haver no mundo histórias mais reais.” (pag 28)

Estimulado por sua paixão pelo código de cavalaria, ele encontra uma armadura antiga e anexa um visor feito de papelão a um capacete velho. E, junto com seu corcel Rocinante, um cavalo magro, começa a sair em busca de aventuras de cavaleiros.

 “...nome que lhe pareceu eminente sonoro, e que, passava de um rocim, antes de ser o que agora era: o que vinha antes de todos os rocins do mundo. Posto esse nome tão ao seu gosto quis também denominar-se a si próprio, e nesse pensamento dispendeu mais oito dias, ao cabo dos quais decidiu de que devia chamar-se Dom Quixote, donde, como já foi dito concluíram os autores desta tão verdadeira história que, sem dúvida, seu nome devia ser Queixada, e não Queijada, como quiseram outros. Porém, lembrando-se de que o valoroso Amadis não se contentara com o chamar-se secamente Amadis, mas como que acrescentara o sobrenome do seu reino e pátria, a fim de torna-la famosa, tornando-se assim Amadis de Gaula, ele, como bom cavaleiro, também quis juntar ao seu nome o de sua pátria, intitulando-se Dom Quixote de la Mancha, com o que, na sua opinião, declarava alto e bom som sua linhagem e pátria, honrando-a com o tomar-lhe emprestado o sobrenome.” (pg 30, pg 31)

Dom Quixote parte em busca de aventura sozinho, e sente a necessidade de ser nomeado cavaleiro pelo primeiro que vê. Ele sai pela manhã e, chegando à noite, entra em numa loja que confunde com um castelo. Lá, duas meninas riem de sua aparência ridícula, mas ele impõe um certo respeito ao senhorio, que lhe oferece uma pousada.

Essa pousada que Dom Quixote considera um castelo na verdade é um prostíbulo. E Dom Quixote trata as donzelas como nobres. E aí temos que fazer uma observação. Cervantes escreve com tanto realismo que, quando o lemos, a impressão que dá é que elas são donzelas nobres. E o dono fica até feliz em permitir que seu hóspede vá embora sem pagar pela hospedagem.

Dom Quixote decide voltar para casa. No caminho, ele começa uma briga com um grupo de mercadores, e eles o vencem. Ele retorna à sua aldeia para se recuperar. Enquanto Quixote dorme, seus amigos, o padre e o barbeiro decidem queimar a maioria de seus livros de cavalaria, que eles culpam por sua loucura e ferimentos recentes. Quixote considera isso obra de feiticeiros do mal, que geralmente atormentam os cavaleiros errantes. Ele convoca um camponês chamado Sancho Pança e o convence a agir como o seu escudeiro com a promessa de que Sancho terá uma ilha para governar, e eles partem para a segunda investida.

Dom Quixote e Sancho Pança vivem a primeira aventura. Dom Quixote confunde um campo de moinhos de ventos com gigantes e tenta lutar contra eles, mas finalmente conclui que um mágico deve ter transformado os gigantes em moinhos de vento.

O combate ao moinho é rico em simbolismo. O que importa aqui é que apenas um ato de vontade positivo é capaz de atacar qualquer coisa, e o sucesso ou fracasso não são importantes. Na visão de Unamuno, o triunfo de Dom Quixote aqui está na ousadia, não no sucesso. Dom Quixote não é vitorioso porque ousa; ele é sempre espiritualmente vitorioso apenas porque ousa; ele é sempre espiritualmente triunfante também. É capaz de desconsiderar suas falhas físicas, e está sempre disposto a seguir suas aventuras após algum momento mínimo de sucesso.

Posteriormente, ataca um grupo de monges pensando que aprisionaram uma princesa, e também luta contra um rebanho de ovelhas entre outras aventuras, quase todas elas terminando com Dom Quixote, Sancho ou ambos sendo espancados.

Mas é no capítulo IX que Cervantes nos dá uma explicação sobre a história do famoso cavaleiro La Mancha, que foi interrompida no momento em que dois combatentes estão prestes a desferir um golpe mortal um no outro.

O narrador começa expressando sua decepção por uma história tão maravilhosa ter terminado tão prematuramente. Ele conta que a encontrou em uma pilha de papéis à venda em Toledo, escrita inteiramente em árabe por um historiador chamado Cide Hamete Benengeli. Ele pagou a um mouro (termo então aplicado a muçulmanos de ascendência árabe ou africana) para traduzir todo o texto.

“ Pensando assim, apressei-me em solicitar-lhe que lesse o princípio, e ele o fez, traduzindo de improviso do árabe para o castelhano: “História de Dom Quixote de La Mancha, escrita por Cide Hamete Benengueli, historiador árabe. Precisei de muita discrição para dissimular o contentamento que tive, quando me chegou aos ouvidos o título do livro; e, antecipando-me ao trapeiro, comprei ao rapaz todos os seus papéis e cadernos por meio real. Fosse ele esperto, e soubesse do muito que eu os desejava poderia ter relutado um pouco, e acabaria por vende-los ao preço de mais de seis reais. Afastei-me com o mourisco pelo claustro da igreja matriz e roguei-lhe que me traduzisse para língua castelhana todos aqueles papéis que tratavam de Don Quixote, sem lhes tirar nem pôr; e prometi pagar-lhe o que pretendesse. Contentou-se com duas arrobas de passas e duas fangas de trigo, e assegurou-me que os traduzirias bem e fielmente, e com muita brevidade; eu porém, para facilitar mais o negócio e para não deixar de mão tão bom achado, levei-o a minha casa, onde, em pouco mais de mês e meio, traduziu toda a história, do mesmo modo como aqui vem a referida. (pg 85)

Aqui começa uma pequena confusão em relação à autoria. O autor explica que procurou uma continuação do conto de Quixote após a leitura dos primeiros capítulos. Isso significa que ele não é o autor (Cervantes), mas um colecionador. Ele juntou os primeiros oito capítulos com a tradução do restante. Mas é claro que sabemos que a autoria é apenas uma subnarrativa do romance. É Cervantes o escritor.

 

Seguindo a citação acima, em suas viagens com os mouros, o autor descobriu um antigo manuscrito em árabe escrito por um historiador chamado Cid Hamet Benegali. Por mera coincidência, passa a ser a história de Dom Quixote, e em seguida, de acordo com o segundo manuscrito, começa com a luta entre o cavaleiro de La Mancha e o biscainho (habitante de Biscaia) que Cervantes descreve exatamente como Cid Hamet o escreveu.

Cervantes descreve a luta entre Dom Quixote e o escudeiro basco como um combate épico entre iguais.

“Dom Quixote que contemplava tudo sossegadamente, saltou do cavalo logo que viu o outro cair, e, com muita ligeireza, acercou-se dele e, pondo-lhe a ponta da espada entre os olhos disse-lhe que se rendesse, caso contrário lhe cortaria a cabeça. Estava o biscainho tão perturbado que não pode responder palavra; e o pior que lhe teria sucedido, tão cego estava Dom Quixote, se as senhoras do coche, que até então haviam assistido à contenda por entre desmaios, não se aproximassem de onde ele estava e não lhe pedissem encarecidamente que lhes fizesse o grande favor e mercê de perdoar a vida ao escudeiro. Ao que Dom Quixote respondeu com grande altivez e grandeza:

- Por certo, formosas senhoras, sinto-me bastante contente de fazer o que me pedis; mas há de ser com uma condição e acordo: este cavaleiro me há de prometer que irá a localidade de Toboso, onde se apresentará, de minha parte, a incomparável Dona Dulcinéia, para que esta faça dele o quie melhor lhe aprouver.

 As temerosas e desconsoladas senhoras, sem mais indagações quanto ao que pedia Dom Quixote, e sem perguntar sequer quem era Dulcinéia lhe prometeram que o escudeiro faria tudo aquilo que de sua parte lhe fosse ordenado.

- Pois, fiado na vossa palavra, não lhe farei mais dano, embora me pareça que ele bem o teria merecido.” (pg 86, pg 87)

A história prossegue entre conversas de Dom Quixote com seu escudeiro ignorante, que deseja saber o máximo possível sobre cavaleiros errantes. Dom Quixote instrui Sancho que, embora haja muitas ilhas para conquistar, eles também devem aceitar as muitas situações pobres e infelizes que os cavaleiros errantes encontram no caminho. Sancho se deleita com a possibilidade de encontros felizes. Dom Quixote então fala sobre um bálsamo maravilhoso cuja receita ele aprendeu nos livros de cavalaria. Esse bálsamo pode curar um homem mesmo que seja cortado em dois pedaços.

“- É um balsamo – respondeu Dom Quixote – cuja receita trago na memória, e com o qual não há o que temer a morte, nem recear a morrer de ferida alguma. Assim, quando eu o preparar e o preparar e to der,  nada mais terás de fazer senão que, quando o vires que nalguma batalha me houverem partido o corpo ao meio (como sói acontecer amiúde), hás de apanhar com muita discrição, a parte lhe houver caído ao solo, e sutilmente, antes que o sangue gele, haverás de coloca-la sobre a outra metade do corpo que tiver ficado na sela...” (pg 89, pg90)

Dom Quixote se encontra em um ambiente humilde em que, ao invés de comer, prefere fazer um discurso eloquente sobre as virtudes da Idade do Ouro, quando os homens viviam em íntima comunhão com a natureza, mas foi perdendo a sua pureza à medida que as noções do “meu” e o “teu” foram se estabelecendo e a natureza humana foi perdendo a pureza e inocência. E a ordem da cavalaria foi estabelecida para se opor à torrente de violência. Os pastores que estavam desfrutando daquele convívio não entendiam bulhufas sobre o assunto, mas prestavam atenção e ouviram enquanto comiam:

 “ – Ditosa idade e séculos ditosos aqueles a que os antigos chamavam de Dourados, não porque neles o ouro, que tanto se estima nesta Idade do Ferro, se alcançasse então sem fadiga alguma, mas porque os que nela viviam ignoravam as palavras ”teu” e “meu”. Naquela santa idade eram comuns todas as coisas; ninguém precisava, para conseguir o ordinário sustento, ter outro trabalho que não o de alçar e colhê-lo nos robustos azinheiros que liberalmente os convidavam, com seu doce e sazonado fruto. As fontes claras e os rios correntes lhes ofereciam, em magnifica abundância águas transparentes e saborosas. Nas quebradas dos penhascos e nos ocos das árvores, formavam a sua república as solícitas e discretas abelhas, oferecendo a qualquer mão, sem interesse algum, a fértil colheita do seu dulcíssimo trabalho. Os excelentes sobreiros despregavam de si, sem outro artifício que não o de sua cortesia, as amplas e leves cortiças, com que se começaram a cobrir as casas, sobre as rústicas estacas sustentadas, somente para defesa contra as inclemências do céu. (pg 94)

Aqui podemos ver uma coisa importante. A ideia de Quixote de cavalheirismo é profundamente sentimental e nostálgica. Seu papel, ele acredita, é trazer de volta um tempo de bondade e decência.

Depois de conversarem a noite inteira, um menino chega para dizer que um famoso aluno e pastor chamado Crisóstomo havia morrido na manhã de amor infeliz por uma mulher chamada Marcela. Seu amigo Ambrósio insiste para que o enterro fosse na selva onde ele a viu pela primeira vez, e os pastores decidem ir ao enterro. Um dos pastores de cabras conta a Dom quixote que o morto era um cavalheiro rico, ex-aluno da Universidade de Salamanca e poeta habilidoso. Alguns meses depois de voltar de Salamanca, ele e seu amigo Ambrósio se fantasiaram de pastores e foram à colina seguir a pastora Marcela por quem Crisóstomo havia se apaixonado.

Aqui cabe uma consideração importante: o mundo no qual  Quixote entra (o que não era tão incomum nas aldeias e pastagens da Espanha do século XVI) é aquele tipo de vida em que as pessoas abandonam-se por um grande amor – onde as pessoas estão dispostas a se reinventar o tempo todo. A morte de Crisóstomo não tem a ver com posses, apesar de Marcela ser uma mulher rica.

O amor nesse caso é uma força avassaladora neste mundo. Esse enredo é como uma pequena história de amor ambientada no mundo maior, mais duro e mais bruto do romance, um tipo de história que Quixote adora. A única coisa que falta a essa história é um cavaleiro para defender a inocente e bela senhora.

Na manhã seguinte o grupo parte para ir ao funeral. No caminho, eles encontram um grupo de pastores, cavaleiros e servos também a caminho do enterro. Todos questionam o estranho traje que Quixote estava vestindo. Nessa hora ele responde que é um cavaleiro errante dedicado a ajudar os indefesos, e todos o acham louco. Mas alguns comparam a profissão de Quixote a de um monge, mas Quixote responde:

“Quero dizer que nós os religiosos, com toda a paz e quietude do céu, pedem ao céu o bem da terra; mas nós, os soldados e cavaleiros, executamos o que eles pedem e defendendo-a com o valor dos nossos braços e os fios das nossas espadas, não debaixo do teto, mas a céu aberto, alvos expostos aos insuportáveis raios de sol de verão e aos arrepiantes gelos do inverno. Assim também somos ministros de Deus na terra, e os braços que executam a sua justiça” (pg 107)

Embora a tradição do amor cortês idolatre as mulheres bonitas, gentis e fracas, muitos personagens do romance admiram mulheres que não são apenas belas, mas também fortes, obstinadas e inteligentes, como a pastora Marcela. Mas ela é irreal. Na verdade, ela é uma coleção de ideias, e os homens que querem se casar com ela querem transformar essa coleção de ideias em uma esposa. Quixote defende esta menina feita de ideias dos homens que querem torná-la real.

As fronteiras entre a imaginação e realidade para Dom Quixote é uma coisa bem difusa. No entanto, a essência da loucura se dá de uma forma bem nítida no episódio em que a mulher do vendeiro pede à sua filha e a uma criada, uma moça de aspecto estranho chamada Maritones, que arrumem as camas para dois viajantes. Maritones era quase cega e corcunda. As camas do sótão eram horríveis e desconfortáveis. Sancho explica para Maritones o que é um cavaleiro errante:

“... Um sujeito que, com duas cajadadas, se vê espancado e imperador: hoje é a mais infeliz criatura do mundo, e a mais necessitada; amanhã terá duas ou três coroas reais para dar ao escudeiro.”

... não trocaria minhas esperanças pelo melhor título da Espanha.” (pg 133)

Aqui o autor Cervantes elogia Cide Hamele Benengueli por descrever os acontecimentos sórdidos que se seguem com tantos detalhes cuidadosos. Naquela noite, os dois começam a sentir suas dores. Perseguido por suas dores físicas, Dom Quixote começa a fantasiar sobre o castelo e pensa que a filha do dono da hospedaria é uma linda princesa que se apaixonou por ele:

“Essa maravilhosa quietude e os pensamentos do nosso cavaleiro, sempre voltados para os sucessos que a cada passo se contam nos livros causadores de sua desgraça, lhe despertaram na imaginação uma das estranhas loucuras que bem se podem figurar: foi a de imaginar ter chegado a um famoso castelo (pois como já disse, castelos lhe pareciam todas as vendas onde se alojava), e que as filhas do vendeiro o era do senhor do castelo; cativa de sua gentileza, a moça se enamorara dele e lhe prometera que, naquela noite, as ocultas dos pais, viria ter com ele por dilatado tempo. Julgando solida e verdadeira toda essa quimera por ele mesmo engendrada, começou a afligir-se e a pensar no perigoso transe que sua honestidade teria de enfrentar; mas de coração prometeu não trair a lembrança da sua senhora Dulcinéia del Toboso, inda que defrontasse com a própria rainha Ginebra e sua camareira Quintanhoma” (pg 135)

Uma confusão começa quando um carregador de mulas fica furioso e bate em Quixote ao perceber que sua amante Maritornes está lutando para se livrar de Quixote. Na escuridão uma briga começa incluindo Sancho. O carregador de mulas e Quixote desmaiam rapidamente. Um oficial da Santa Irmandade entra na sala ao ouvir a comoção e teme que Quixote esteja morto.

Mas ele ainda vive. Ao reviver, pede os ingredientes para preparar para si o verdadeiro bálsamo de Ferrabrás. Ele prepara o bálsamo e vomita, desmaia e quase morre. O efeito não se dá por reações químicas, mas por meio de uma reação de ideias. As propriedades terrenas de coisas como óleo e sal não tem o menor sentido para Quixote. Suas propriedades são mágicas e espirituais para ele.

No dia seguinte, o cavaleiro e o escudeiro deixam a pousada sem pagar. Quixote acredita que seja um castelo encantado e se ofende com a sugestão de pagar. Sancho não escapa tão facilmente como Quixote. Ele é raptado e roubado.

De repente, eles veem duas nuvens de poeira se aproximando deles. São rebanhos de ovelhas, mas Dom Quixote pensa que são exércitos. Ele ataca as ovelhas e os pastores atiram pedras nele. Uma pedra machuca suas costelas e algumas quebram os seus dentes e alguns dedos. Dom Quixote explica a Sancho que os feiticeiros transformaram os exércitos em ovelhas para irritá-lo.

Quixote se torna amigo de Cardênio, o Cavaleiro esfarrapado. Ele conta sua história. Quando era jovem, ele se apaixonou por uma linda menina chamada Lucinda, e eles decidiram se casar. Naquela época, um homem famoso, Duque Ricardo, pediu a Cardênio que ficasse com ele na Andaluzia como companheiro de seu filho mais velho, e Cardênio não teve escolha a não ser concordar. Ele partiu em dois dias para propriedade do homem. E Lucinda acabou se casando com outro homem: Dom Fernando.

Triste por essa perda, começa a levar uma vida de mendigo andando seminu pelas colinas da Serra Morena. Quixote acaba fazendo um discurso retórico sobre livros de cavalaria, e os dois acabam em um mal-estar:

“Enquanto Dom Quixote dizia essas palavras, deixou Cardênio pender a cabeça sobre o peito dando mostras de estar profundamente pensativo. E apesar de lhe haver dito duas vezes Dom Quixote que prosseguisse com a história, nem erguia ele a cabeça, nem respondia a palavra. Porém ao cabo de bom espaço de tempo, levantou-se e disse:

- Não me poderão tirar do pensamento, nem haverá no mundo que mo tire, nem que dê a entender o contrário, e seria tolo o que entendesse ou cresse outra coisa, senão que aquele grande velhaco do mestre Elisab andava amancebado com a rainha Madásima.” (pg217)

Cardênio e Quixote brigam porque ambos não conseguiram distinguir a ficção da realidade. Para Cardênio, a história fictícia de Dom Quixote não tem nada a ver com a dele. Para Cardênio, a vida influencia a arte, e não o contrário.

Por viver em um mundo ficcional, a grandeza do Cavaleiro do qual ele incorpora é alcançada através da imitação. Por essa razão, ele imita por exemplo Amádis de Gália (mencionado na história) se isolando e agindo como um louco em honra de sua amada. Dom Quixote manda uma carta em verso à Dulcinéia para que Sancho a entregue. Sancho questiona as errâncias constante dos cavaleiros que parecem viver um monte de mentiras, mas Quixote explica com raiva que os feiticeiros estão fazendo com que tudo relacionado à errância dos cavaleiros pareça miragem e loucura por rancor.

Cervantes nos envolve com ideias de autenticidade e originalidade. Quixote acredita em um mundo cavalheiresco de valores claros e essenciais, princípios básicos sólidos. No entanto, o romance de Cervantes abunda em imitações – cópias de algum princípio autêntico e original. Essa cadeia de cópias retrocede no tempo, mas quanto mais longe você segue a cadeia, mais cópias você encontra. O original e o autêntico simplesmente não existem.

Dulcinéia, é mencionado sempre, no entanto, é uma inspiração invisível e desconhecida de todas as façanhas de Dom Quixote. Não encontramos Dulcinéia no romance visivelmente. Apesar de sua ausência no romance, Dulcinéia é uma força importante porque ela resume a concepção cavalheiresca de Dom Quixote da mulher perfeita. Sua importância não é por quem ela é, mas pelo que representa e pelo que ela indica sobre o personagem Dom Quixote.

Sancho volta à pousada em busca de algo para comer. Na pousada ele encontra o padre e o barbeiro da aldeia de Quixote; eles se propõem a levar Quixote para curá-lo de sua loucura. Sancho lhes conta sobre suas recentes aventuras. Quando Sancho conta aos homens que Quixote havia feito uma promessa de Quixote de dar-lhes uma ilha, eles se convencem de que ele está tão doido como seu mestre. O padre veste-se como uma donzela mascarada para tentar atrair Quixote. E o barbeiro se disfarça de escudeiro com uma barba ruiva e falsa. Chegam ao esconderijo de Quixote com a ajuda de Sancho, que diz que tinha encontrado Dulcinéia.

Em algum momento do caminho, eles ouvem uma bela voz cantando uma canção triste. Eles caminham até lá e veem um homem, e esse homem era Cardênio.

A história de Cardênio é interrompida por uma voz triste. O padre e o barbeiro acabam encontrando atrás da pedra um outro personagem: uma menina vestida de menino, uma linda garota chamada Dorotéia. Ela ameaça fugir, mas o padre e o barbeiro a acalmam e lhe pedem que ela conte a história dela.

Ela diz que seu nome é Dorotéia, filha de um rico fazendeiro da Andaluzia. Um nobre chamado Dom Fernando se apaixonou por ela, e prometeu se casar com ela, seduziu-a e abandonou-a. Ele havia deixado a cidade e resolveu se casar com uma mulher chamada Lucinda. Ela se vestiu de menino para procurá-lo e repreendê-lo por seu comportamento ignóbil.

Dorotéia contou que, quando chegou à cidade de Lucinda, um homem lhe contou sobre o casamento. Lucinda fez seus votos e desmaiou imediatamente. Dom Fernando encontrou um bilhete no corpete informando que já estava noiva de Cardênio, e que ela planejava se matar após o casamento. Dom Fernando quando leu, ficou furioso e foi impedido de cometer uma tragédia. Ele, furioso, sai da cidade. Lucinda procura Cardênio desesperadamente para se casar com ele.

Dorotéia decide procurar Dom Fernando para fazê-lo se casar com ela. Resolveu trabalhar para um pastor. Quando o pastor tenta seduzi-la, ela fuge para o deserto.

Ao terminar essa história, Dorotéia pergunta aos ouvintes onde ela poderia viver no anonimato e na reclusão.

 Cardênio aparece e revela a verdadeira identidade, e diz a ela que eles ainda podem se casar com as pessoas que desejam, pois ambos ainda são livres: Cardênio ainda pode se casar com Lucinda e Dorotea ainda pode se casar com Dom Fernando. O sacerdote os convida a restaurar as forças em sua aldeia natal, e o barbeiro conta a estranha história de Dom Quixote e Sancho Pança e descreve seu plano para restaurar a sanidade.

Dorotéia finge ser a princesa Micomicona, necessitando desesperadamente da ajuda de Dom Quixote. Dorotéia se reencontra com Dom Fernando, e Cardênio se reencontra com Lucinda. Isso acontece na mesma pousada que Quixote havia visitado antes (onde apanhou do amante de Maritomes). Inúmeros convidados chegam à pousada. Enquanto irmãos há muito perdidos se reencontram, os pares de namorados são abençoados e Dom Quixote tem um mandado de prisão contra ele. A Santa Irmandade tem um mandado de prisão em virtude de libertar os escravos da galera. O barbeiro e o sacerdote dizem que Quixote é louco.

Quixote se defende dizendo que o seu objetivo era ajudar os mais necessitados. Dorotéia pede que ele se acalme e faz lembrar de seu voto, e conta a história da princesa com mais detalhes. Quando a princesa ficou órfã, o gigante malvado havia invadido o seu reino, então ela partiu para Espanha em busca de ajuda do famoso Dom Quixote. Dorotéia diz que ele deve viajar de volta ao seu reino, derrotar o gigante e então torná-la sua esposa.

O Oficial concorda; Quixote é trancado em uma gaiola e levado para casa. Ele acredita que a gaiola é um encantamento, mas, quando fica claro que vai para casa, não reclama. Claro que no livro I, Quixote sai em sua terceira e última investida. O livro I, “O Engenhoso Fidalgo de La Mancha”, não é resolvido. Vamos para o livro II de “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”.


Data: 02 janeiro 2021 | Tags: Aventura


< A Idade da razão O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha - Volume 2 >
O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha - Volume 1
autor: Miguel de Cervantes
editora: Editora Itatiaia Limitada
tradutor: Eugênio Amado

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