Autobiografia de Martin Luther King Jr
“A autobiografia de Martin Luther King”, organizado por Clayborne Carson, é um livro tão especial que confesso que me estendi ao máximo, para que todos vocês que acompanham este site entendam a grandeza desse homem.
À medida que eu ia lendo os discursos e o pensamento de Martin Luther King, era como se eu estivesse ouvindo canções espirituais entoando uma melodia vinda do coração para o Senhor. Essa forma “Spirituals” tem suas raízes nas reuniões informais de escravos africanos no século XVIII.
Confesso que me entusiasmei, esta resenha tem 14 páginas. Mas foi impossível para mim escrever menos. Nunca um livro me entusiasmou tanto. Quando terminei a resenha, tive aquela sensação de que poderia ter falado mais. Tudo bem, espero que pelo menos vocês tenham o prazer (caso se interessem) de ler uma autobiografia simplesmente divina, no melhor sentido da palavra.
Vamos a ela?
Segundo Martin Luther King Jr, existe uma tensão no coração do universo entre o bem e o mal. O hinduísmo coloca essa questão como uma luta entre a ilusão e a realidade. A filosofia platônica se referia a isso como uma tensão entre o corpo e a alma. O zoroastrismo, como uma luta entre o deus da luz e o deus das sombras. O judaísmo e o cristianismo tradicionais referem-se a isso como uma tensão entre Deus e Satã. Qualquer nome que seja dado, uma coisa é clara: na opinião de Martin Luther King, existe uma luta entre o bem e o mal.
E essa luta não está estruturada apenas por forças externas do universo, ela está estruturada em nossas próprias vidas, ou seja, em nossa vida interior. Os psicólogos trabalham isso à sua própria maneira, e assim afirmam várias coisas. Sigmund Freud, por exemplo, costumava chamar essas forças de id e superego. Alguns de nós sentimos que é uma tensão entre Deus e o homem. E há uma guerra civil em cada um de nós. Não importa onde você mora, há uma guerra civil em sua vida. E toda vez que você se dispõe a ser bom, uma coisa o pressiona dizendo-lhe para ser mau. E isso está acontecendo agora em sua vida. Sempre que se dispõe a ser gentil e dizer coisas boas, algo o pressiona a ser ciumento, invejoso e a espalhar boatos.
Há uma esquizofrenia, como os psicólogos ou psiquiatras chamariam, em curso dentro de nós. E há momentos em que todos nós sabemos, de alguma forma, que há em nós um médico e um monstro. E acabamos tendo de proclamar, juntamente com Ovídio, o poeta romano: “Eu vejo o melhor, mas sigo o pior”. Ou acabarmos nos juntando a Santo Agostinho quando ele afirma em “As Confissões”: “Dai-me a castidade, mas não ainda”. Ou como Goethe, que afirma que “há material dentro de nós para produzir tanto um cavalheiro quanto um velhaco”.
Para Martin Luther King Jr, Deus não nos julga por incidentes e atos isolados que possamos cometer, mas pela propensão geral de nossas vidas. Em última análise, Deus sabe que seus filhos são fracos e frágeis. Em síntese, segundo Martin Luther King, o que Deus exige é que nosso coração esteja certo. Se não estiver certo, peça a Deus para consertá-lo. Que alguém seja capaz de dizer sobre nós:
“Ele pode não ter alcançado o máximo, pode não ter realizados os seus sonhos, mas tentou: “Não seria maravilhoso alguém dizer isso sobre você?” “Ele tentou ser um bom homem. Tentou ser um homem justo. Tentou ser um homem honesto. Seu coração estava no lugar certo.” E posso ouvir uma voz dizendo, proclamando pela eternidade: Eu o aceito. Você é um receptáculo de minha graça porque ele estava no seu coração E é muito bom que ele estivesse lá”. (pg 422)
“A autobiografia de Martin Luther King Jr”, foi organizado pelo historiador Clayborne Carson, um autor conhecido nos Estados Unidos por vários livros sobre a luta pelos direitos civis. O livro se deve ao acesso a um arquivo sem precedentes das próprias palavras de Martin Luther King Jr, que inclui cartas, diários não publicados bem como imagens de vídeo e gravações. E a partir de todo esse material, Clayborne Carson cria um autorretrato inesquecível de Martin Luther King Jr, como aluno, ministro, marido, pai, líder mundial... bem como uma rica e comovente crônica de um povo que ainda passa por mudanças poderosas e ainda ressonantes.
Sempre soube da importância de Martin Luther King Jr na história americana, principalmente através daquele discurso icônico em que ele começa dizendo: ¨I have a dream...!”
Em vários momentos cheguei a me emocionar pela tamanha fé desse homem e de uma honestidade não só intelectual mas também uma honestidade como pastor. Clayborne Carson, o organizador desse livro, criou um argumento especial que se baseia na fonte, iluminando as circunstâncias da vida de King sem deificá-lo. Ele compartilha seus julgamentos e suas lutas, iniciando com o movimento em Montgomery, até a marcha de Selma e o Prêmio Nobel da Paz de 1964, e por aí vai.
Uma questão que precisa ficar muito clara nessa autobiografia é que ela é uma obra muito mais religiosa e política do que um estudo sobre sua vida privada. Limita-se necessariamente aos aspectos que ele escolheu revelar em seus documentos, até porque ele sempre foi muito reservado em relação à sua vida privada. Esse livro é um espólio de King. Dito isso, vamos ao que interessa.
Não prometo ser sucinto nesta resenha por razões óbvias. Martin Luther King Jr é demasiadamente complexo e maravilhoso para que fiquemos apenas brincando no raso. Tentarei dar o meu melhor para mostrar esse personagem maravilhoso da história americana.
Nascido em Atlanta, Georgia, foi o segundo dos três filhos. E foi nomeado Michael (mais tarde seu nome será Martin), em homenagem ao pai. Sempre foi uma criança perfeita e saudável do ponto de vista físico e mentalmente um pouco precoce.
Nascido de uma família de classe média financeiramente segura, o que lhe proporcionou uma educação melhor do que a média dos negros. Ao reconhecer ainda cedo esse desnível, isso o influenciou que olhasse criticamente ao seu entorno. Seu pai esteve envolvido na associação Nacional para o Avanço de Pessoas de Cor, ou NAACP, e liderou uma campanha bem-sucedida visando igualar os salários de professores brancos e pretos em Atlanta.
Quando criança, os encontros de King com a discriminação racial foram moderados, mas formativos. Quando começou a estudar, tinha amigos brancos, mas os pais desses meninos brancos proibiam seus filhos de frequentar a mesma escola primária que a dele e assim começou a ver a injustiça, que levou sua mãe a explicar, certa vez, a história da escravidão e da segregação.
Um fato relevante na vida de Martin Luther King foi quando ele participou de um concurso de oratória em Valdosta, na Georgia, em que ficou com o segundo prêmio. Seu segundo lugar deveu-se a uma longa viagem de ônibus na qual os negros tinham que se levantar para os brancos sentarem. E foi assim que King cresceu em uma família que o encorajou a perceber e responder às injustiças. Mais tarde seus pais o apoiaram em suas escolhas, embora muitas vezes tivessem que testemunhar as trágicas consequências dessas escolhas, incluindo a morte prematura do filho.
Em 1948, King entrou para o seminário Teológico Crozer em Chester, Pensilvânia, onde começou uma séria busca intelectual por um método de eliminar o mal social. Começou a ler seriamente as teorias sociais e éticas dos grandes filósofos, de Platão e Aristóteles a Rousseau, Hobbes, Bentham, Mill e Locke. Todos esses autores estimularam o seu pensamento. Dos grandes filósofos sociais, o que deixou marcas importantes e indeléveis em King foi o livro “Cristianismo e Crise Social”, de Walter Raushnbusch, dando-lhe a base teológica para a preocupação social que já havia nele. No entanto, havia discordâncias. Segundo ele, Rauschenbusch tinha uma visão ingênua sobre o progresso do século XIX, que o levou a um otimismo superficial em relação à natureza do homem. Além disso, ele (nas palavras de Martin Luther King) chegou a interpretar perigosamente ao identificar o Reino de Deus como um sistema social e econômico particular. Mas, apesar dessas discordâncias, King concordava com ele ao insistir que o evangelho trata o homem como um todo, ou seja, não apenas sua alma, mas também o seu corpo.
Em outras palavras, havia uma convergência de pensamentos de que a Igreja não deve apenas se preocupar com as almas, mas deve estar preocupada também com a pobreza e suas condições econômicas. Uma religião que não se preocupa com os pobres é uma religião espiritualmente moribunda.
Martin Luther King, em suas férias de Natal de1949, resolveu decidiu passar o seu tempo lendo Karl Marx para tentar entender o apelo do comunismo para muitas pessoas. Leu “O Capital” e “O Manifesto Comunista”, além de obras interpretativas sobre o pensamento de Karl Marx e Lênin. Ao ler esses escritos comunistas, tirou algumas conclusões. A primeira crítica foi a visão materialista da história, onde Deus não aparece. King não aceitava essa interpretação. Existe um poder pessoal criativo nesse universo que não pode ser explicado em termos materialistas. Em outras palavras, a história é guiada pelo espírito, e não pela matéria.
A segunda crítica é em relação ao relativismo ético do comunismo. Visto que para a Comunidade não há governo divino nem ordem moral absoluta nem princípios fixos imutáveis, consequentemente, quase tudo – força, violência, assassinato, mentira – é um meio justificável para o fim “milenar”. King considerava esse tipo de relativismo como algo repulsivo. Os fins construtivos nunca podem dar justificativa moral absoluta aos meios destrutivos, porque, em última análise, o fim é preexistente nos meios.
O terceiro ponto de crítica de King ao comunismo diz respeito à sujeição do indivíduo ao Estado. Apesar de Marx dizer que o Estado é uma realidade “provisória” que deve ser eliminada quando a sociedade sem classes emerge. No entanto, os chamados direitos e liberdades de qualquer homem impedem esse fim, eles são simplesmente colocados de lado. Sua liberdade de expressão, sua liberdade de votar, sua liberdade de ler as notícias sem censura, escolher os livros. O homem no comunismo é apenas uma engrenagem giratória do Estado.
A depreciação da liberdade individual era questionável para Martin Luther King. O homem não foi feito para o Estado; o Estado é feito para o homem. Privar o homem da liberdade é relegá-lo ao status de uma coisa, em vez de elevá-lo ao status de pessoas. O Homem é um fim porque é filho de Deus.
Mas, apesar de seus métodos malignos, o comunismo cresceu como um protesto às adversidades dos desprivilegiados. O comunismo, em teoria, enfatiza uma sociedade sem classes e uma preocupação com a justiça social, embora King soubesse que na prática ele criou novas classes e um novo léxico de injustiça. Para King, o cristão deve sempre ser desafiado por qualquer protesto contra o tratamento injusto aos pobres.
Martin Luther King procurou em Marx algumas respostas em sua crítica à sociedade burguesa moderna. Marx, segundo King, apresentou um capitalismo como essencialmente uma luta entre os donos dos recursos produtivos e os trabalhadores. Marx interpretou as forças econômicas como um processo dialético pelo qual a sociedade passou de uma sociedade feudal para o capitalismo, ao socialismo, sendo o mecanismo primário desse movimento histórico a luta entre as classes econômicas cujos interesses eram irreconciliáveis.
Para Martin Luther King, a análise de Marx deixa de fora inúmeras complexidades econômicas, morais, religiosas e psicológicas que desempenham um papel vital na formação da constelação de instituições e ideias como conhecemos de civilização ocidental.
No entanto, Martin Luther King via nas análises de Marx deficiências de análise. Na sua adolescência, ele sempre se preocupou com o abismo entre a pobreza abjeta e a riqueza supérflua, e graças à leitura de Marx tornou-se cada vez mais consciente desse abismo. Embora o capitalismo americano tenha reduzido muito a lacuna por meio de reformas sociais, ainda havia a necessidade de uma melhor distribuição de riqueza. Além disso, Marx havia revelado o perigo da motivação do lucro como a única base de um sistema econômico: no capitalismo existe sempre o risco de inspirar os homens a se preocuparem em medir o sucesso pelo índice de nossos salários ou pelo tamanho de bens, e não pela qualidade de nosso serviço e relacionamento com a humanidade. Assim o capitalismo pode levar a um materialismo prático que é (na visão de Martin Luther King) tão pernicioso quanto o materialismo ensinado pelo comunismo.
A leitura de Marx feita por Martin Luther King o convenceu de que a verdade não é encontrada nem no marxismo nem no capitalismo tradicional. Cada sistema revela uma verdade parcial. O Reino de Deus não é a tese da empresa individual nem a antítese da empresa coletiva, mas uma síntese que reconcilia verdades de ambas, na opinião de Martin Luther King Jr.
Martin Luther King chegou a pensar na possibilidade de combater a segregação através da luta armada, mas não conseguia vislumbrar as consequências desse ato em um conflito social. Em um momento, a sua fé foi abalada temporariamente pela filosofia de Nietzsche, “A Vontade de Poder” e “Genealogia da Moral”.
A obra de Nietzsche é uma crítica contundente à moralidade hebraico-cristã com suas virtudes de piedade e humildade, seu caráter sobrenatural, a glorificação da fraqueza, como virtudes e por necessidade de impotência. Além do conceito de um super-homem que superaria o homem, assim como o homem superou o macaco.
Ao passar por todas essas transformações e crise de fé, King foi assistir a um sermão do Dr Mordecai Johnson, presidente da Howard Univesity. O professor tinha acabado de chegar da Índia e falou sobre os ensinamentos de Mahatma Gandhi. Sua mensagem foi tão reveladora que Martin Luther King saiu de sala e foi comprar todas as obras de Mahatma Gandhi.
Essas leituras influenciaram para sempre Martin Luther King, entendendo o método de Gandhi com a sua Marcha do Sal ao Mar e seus numerosos jejuns na Índia. Os conceitos de Gandhi de satyagraha (satya é a verdade que é igual ao amor, e agraha é força: satyagraha, portanto, é a força da verdade ou a força do amor) influenciaram profundamente King.
Antes de ler Gandhi, a filosofia “ame os seus inimigos” ou, quando lhe baterem, “dê a outra face”, Martin Luther King sentia que a ética de Jesus só era eficaz nos relacionamentos individuais. No entanto ao ler Gandhi, viu que estava totalmente enganado. Viu que Gandhi havia sido a primeira pessoa na história a elevar a ética do amor de Jesus acima da mera interação entre indivíduos, a uma força social poderosa e eficaz em grande escala. O amor de Gandhi foi um poderoso instrumento de transformação social. Algo que ele não encontrou nas filosofias de Betham e Mill, nos métodos revolucionários de Marx e Lênin, na teoria dos contratos sociais de Hobbes, no otimismo e “de volta à natureza” de Rousseau e na filosofia do super-homem de Nietzsche. Foi em Gandhi que ele se encontrou. E não parou por aí, participou de diversos seminários teológicos. E começou a questionar a teoria fundamentalista entre os evangélicos.
À medida que Martin Luther King pensava na natureza humana, mais ele via a inclinação trágica para o pecado que nos faz usar nossas mentes para racionalizar nossas ações. A razão (na opinião de Martin Luther King) desprovida do poder purificador da fé nunca pode se libertar de distorções e racionalizações. King chegou a namorar o pacifismo de Niebuhr. Mas o seu pensamento se direcionou a combater a violência com a não violência:
“...Como um jovem que tinha quase toda a vida pela frente, cedo decidi dedicá-la a algo eterno e absoluto. Não a esses pequenos deuses que hoje estão aqui e amanhã se foram. Mas ao Deus que o mesmo ontem, hoje e sempre.
Não vou dedicar a minha fé absoluta em pequenos deuses que podem ser destruídos numa era atômica, mas nos Deus que foi nosso auxílio em eras passadas, e é nossa esperança nos anos vindouros, nosso abrigo em tempos de tormenta e nosso eterno lar. Esse é o Deus no qual deposito minha fé absoluta...O Deus de que falo nesta manhã é o Deus do universo e o que permanecerá através das eras. Se é para irmos em frente esta manhã, devemos retroceder e encontrar esse Deus. Esse é o Deus que nos exige e ordena a devoção total.
Se é para irmos em frente, devemos olhar para trás e redescobrir esses preciosos valores – que toda a realidade se assenta em alicerces morais e tem controle espiritual”. (pg 50 Redescobrindo valores perdidos)
Se Cristo fornecia o espírito e a motivação, Gandhi oferece o método. As pessoas reagiram a essa filosofia com um ardor surpreendente, alguns demoraram para aderir a ela.
Martin Luther King conhece sua mulher Coretta:
Carta para Coretta
Querida, eu sinto muita falta de você. Na verdade, sinto falta demais. Nunca tinha percebido que você era parte íntima da minha vida. Minha vida sem você é como um ano sem primavera que vem para iluminar e aquecer uma atmosfera saturada pela brisa gelada e sombria do inverno... Ah, me desculpe, querida. Eu não queria entrar num voo poético e romântico como esse. Mas de qualquer forma poderia expressar as profundas emoções da vida a não ser pela poesia? O amor não é inefável demais para ser capturado pelas mãos frias e calculistas do intelecto?... (pg 53)
No dia 1º de dezembro de 1955, dentro de um ônibus, a Sra Rosa Parks recusou-se a se mover quando a operadora do ônibus pediu que ela se levantasse e voltasse. A Sra Parks estava sentada na frente do ônibus e resolveu ficar sentada. Todos os assentos estavam ocupados. Pela regra, ela teria que se retirar e ceder o lugar para um passageiro branco que acabava de entrar no ônibus. Ela se recusou a ceder o lugar e foi presa.
Foi nesse momento que começou um boicote aos ônibus. “Não é hora de falar; é hora de agir. Não peguem o ônibus para o trabalho, para a cidade, para escola ou para qualquer lugar. Compartilhando carona ou caminhando, mas não peguem ônibus.” Essa foi a palavra de ordem elaborada na Igreja Batista da Holt Street.
O movimento foi um sucesso apesar de percalços previsíveis e imprevisíveis. Quem liderou o movimento? Ele mesmo, Martin Luther King. Desde o início, uma filosofia básica guiou o movimento. Desde então, o princípio orientador foi a resistência passiva. Foi o Sermão da Montanha, ao invés de uma resistência passiva, que inicialmente inspirou os Negros de Montgomery a uma ação social digna.
A inspiração de Mahatma Gandhi começou a exercer a influência na luta contra a segregação racial. A doutrina cristã operando através do método gandhiano de não violência era uma das armas mais potentes, que Martin Luther King sabia operar tão bem. Mahatma Gandhi começou a ser conhecido em Montgomery. Cristo havia fornecido o espírito e Gandhi o método.
Mas as consequências foram inevitáveis. As agressões, as ameaças, tudo isso fizeram parte da luta. Martin Luther King foi preso.
“Certa noite, numa assembleia, me surpreendi dizendo:
- Se um dia você me encontrarem morto, o corpo estatelado no chão, não quero que revidem com um ato de violência que seja. Peço-lhes que continuem protestando com a mesma dignidade e disciplina que tem mostrado até agora – Um estranho silêncio tomou conta da plateia.” (pg 100)
Não foi à toa que o primeiro atentado contra Martin Luther King Jr. veio logo a seguir quando uma mulher negra com visíveis problemas psiquiátricos lhe desferiu uma facada no peito e por muito pouco ele não morreu. Se Martin Luther King, segundo os médicos, tivesse tossido ele teria morrido ali mesmo.
À medida que o tempo foi passando, Martin Luther King foi se deparando com uma reflexão que cada vez mais ganhava força dentro dele. A ideia de um deus pessoal começou a ganhar força como uma realidade viva, que foi validada nas experiências da vida cotidiana. Deus começava a se tornar real para ele, a ponto de transformar o cansaço e o desespero na alegria e na esperança. Estava convencido de que o universo estava sob o controle de um propósito amoroso e que na luta pela retidão o homem tem companhia cósmica.
Por trás das duras aparências do mundo, existe um poder benigno. Dizer que Deus é pessoal não equivale a dizer que ele é um objeto entre outros objetos ou atribuir a ele uma finitude e as limitações da personalidade humana; é pegar o que é de mais fino e mais nobre em nossa consciência e firmar sua personalidade humana limitada, mas personalidade como tal não envolve limitações necessárias. Significa simplesmente autoconsciência e autodireção. Portanto, no sentido mais verdadeiro da palavra, Deus é um Deus vivo. Nele há sentimentos e vontade.
Foi no dia 28 de agosto de 1963, cerca de milhares de manifestantes, três quartos deles negros, marcharam para Washington DC, do Monumento de Washington ao Memorial Lincoln, onde ouviram discursos de líderes pelos direitos civis, incluindo King. O evento, oficialmente chamado de “Marcha em Washington por empregos e liberdade”, foi um sucesso, como a campanha anterior de Birmingham (que não mencionamos aqui na resenha), e, graças àquela campanha, uma atmosfera acabou proporcionando que uma nova legislação civis pudesse ser aprovada. E foi ali mesmo que um dos discursos mais emocionantes da história foi proferido por Martin Luther King:
“Eu tenho um sonho que um dia nas rubras colinas da Georgia, os filhos de antigos escravos e os filhos dos antigos senhores poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.
Eu tenho um sonho que um dia até mesmo o estado do Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira o calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça.
Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos vão um dia viver uma nação onde serão julgados não pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.
Hoje eu tenho um sonho!
Eu tenho um sonho de que um dia, no Alabama, com os seus racistas malignos, com o seu governador de cujos lábios gotejam palavras de oposição e negação, que nesse dia exatamente em Alabama garotinhas negras poderão dar as mãos a garotinhos brancas e garotinhos brancos como irmãos e irmãs.
Hoje eu tenho um sonho!
Eu tenho um sonho!
Eu tenho um sonho de que um dia todos os vales serão exaltados, todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os tortuosos retificados, a glória do Senhor será revelada e toda a humanidade verá isso junta.
Essa é a nossa esperança. Essa é a nossa fé com que regressarei para o Sul. Com essa fé poderemos recortar da montanha do desespero uma pedra de esperança...” (pg 271)
Esse discurso teve um alcance imenso em rede nacional de televisão, incluindo o presidente dos Estados Unidos. Mas, apesar do imenso sucesso desse discurso (que é maior do que foi citado), esses eventos foram acrescidos de assassinatos em todo o sul. Medgar Evers, amigo de King e membro ativo da NAACP, foi morto a tiros na porta de sua casa. Em setembro, quatro meninas negras foram mortas quando uma bomba explodiu. Mais tarde, o presidente John Kennedy também foi morto.
E aqui vale uma observação. Nos escritos de Martin Luther King Jr. ele não guardava nenhum apreço pelo partido Democrata, que tinha como governador um racista chamado George Wallace, e nem pelos republicanos. E a princípio não votou em Kennedy nem em Nixon. Só mais tarde (durante o mandato de Kennedy) que suas posições foram de certa forma abraçadas pelo presidente.
John Kennedy não tinha o domínio e a compreensão das profundezas dos problemas daquela época. Sabia que a situação era moralmente errada e se comprometeu intelectualmente com a integração. Segundo King, John Kennedy não tinha se envolvido suficiente com o problema. Ele não conhecia muito os negros pessoalmente. Ele não teve a experiência pessoal de conhecer a dor profunda e dos anseios apaixonados do negro por liberdade, porque ele não os conhecia o suficiente. No fundo, era um compromisso mais intelectual.
No entanto, com o passar do tempo, o senador Kennedy foi tornando-se mais próximo, a ponto de interferir sobre a prisão de Martin Luther King em Reisville, o que acabou resultando na presença dele mais firme no processo dos direitos civis.
Lyndon Johnson foi o presidente com que Martin Luther King tinha maior afinidade. Apoiou Lyndon Johnson contra o conservador republicano Barry Goldwater.
Johnson convidou King para ir à Casa Branca quando ele sancionou a Lei dos Direitos Civis de 1964. Nesse mesmo ano, ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelo combate à desigualdade racial.
Martin Luther King recebeu o Prêmio Nobel da Paz em Oslo, na Noruega, e, ao retornar, King e Ralph Abernathy lideraram uma marcha de 250 pessoas ao Tribunal de Selma para protestar contra a lentidão do registro eleitoral e acabaram presos.
Quando o direito ao voto tornou lei em 1965, o bairro negro de Watts no centro de Los Angeles, Califórnia, explodiu em tumultos. A brutalidade policial e as más condições de vida provocaram uma revolta em grandes proporções, ceifando 34 vidas, destruindo 209 prédios. King condenou a violência, mas enfatizava a validade de suas causas. Depois de Selma, Martin Luther King centrou a sua atenção em cidades onde a tensão racial era intensa, cidades do Norte e do Oeste.
No final de 1965, escolheram Chicago para fazer uma campanha urbana. Em fevereiro, alugou um apartamento em uma favela de Chicago juntamente com a sua família e começou a organizar protestos. Seu foco ganhava novas agendas, como a agenda econômica. Lutou para conseguir casas e empregos decentes para os afro-americanos.
E assim foi a sua luta até o final de seus dias. Fico por aqui. “A Autobiografia de Martin Luther King”, organizado pelo professor Clayborne Carson, mapeia a evolução do pensamento desse notável defensor não apenas da causa negra (com maior ênfase por questões óbvias), mas também para todos aqueles que sofrem a miséria, a segregação, e a falta de esperança. Utilizando o gandhismo como método.
Esse é um livro que merece um lugar não apenas na sua estante, mas na sua mesa de cabeceira. Um livraço!