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Diário de uma Ilusão

Antes de entrar na resenha, gostaria de contar uma história sobre a edição do livro que acabei de ler: “Diário de uma ilusão”, do escritor Philip Roth. Esse livro, juntamente com o livro “Mário e o Mágico”, de Thomas Mann, encontrei numa lata de lixo na rua. Só havia esses dois livros entre dejetos. Pergunto: como alguém em sã consciência pode deixar essas duas obras-primas numa lata de lixo? Mas, como acredito que na vida nada é por acaso, arrumei uma sacola plástica e quando cheguei em casa passei uma água nas capas (ambos capa dura) dos dois livros e agora estou aqui resenhando essa obra-prima. Não sei se agradeço à pessoa que jogou fora ou se lamento. Mas o importante é que ele está comigo e daqui não sai. “Mário e o Mágico”, do Thomas Mann, fica para próxima. Mas fiquem certos de que ainda estará resenhado ainda neste primeiro semestre.

Philip Roth é um escritor que é recorrente aqui neste espaço literário. Ainda não li todos. Não me coloco nessa obrigação. Vou ler, quanto a isso eu não tenho dúvidas, mas saboreando. “Diário de uma ilusão” não sei se está à venda, minha edição é do Círculo do Livro. Desconheço se existe outra edição à venda em livrarias. Mas vou logo adiantando: se você conseguir, compre, é excelente.

Vou poupá-los da apresentação de Philip Roth. Para aqueles que estão entrando pela primeira vez aqui no site, devo dizer que é um dos meus autores prediletos. Para conhecê-lo melhor, clique na lupa, digite “Philip Roth” e você vai achar inúmeros livros desse grande escritor. Até hoje me pergunto o motivo de ele não ter ganhado o Prêmio Nobel, e nenhuma resposta se apresenta de uma forma clara para mim. Uma injustiça imperdoável. Fazer o quê? Para nós, admiradores, ele sempre foi o Nobel de todos nós que lemos e continuamos a ler os seus livros.

“Diário de uma ilusão” foi publicado pela primeira vez em 1979. É o primeiro livro do que ficou conhecido como uma série de livros narrados pelo personagem Nathan Zuckerman, que é um dos alter-egos de Roth. Explora temas como holocausto, a cultura judaica americana, a identidade e o ofício de escrever. “Diário de uma ilusão” foi amplamente elogiado no lançamento e é considerado um dos melhores trabalhos de Roth. Foi finalista do Prêmio Pulitzer de Ficção e do National Book Award em 1980.

“Diário de uma ilusão” (Ghost Writer no original em inglês) é dividido em quatro partes. Em primeiro lugar, a observação de Nathan Zuckerman sobre as relações da família Lonoff. Nathan é um observador e ao mesmo tempo narrador da história. No primeiro capítulo, “Maerstro”, Zuckerman consegue ver Lonoff (seu ídolo literário) e percebe a contradição entre arte e vida. No segundo capítulo, “O dédalo de Nathan”, Zuckerman sai de casa para retratar em ficção uma imagem negativa dos judeus, recusa-se a seguir a religião.  No terceiro capítulo, “Femme fatale”, o autor muda a perspectiva da narrativa para contar a história de Amy, uma personagem impressionante que veremos mais adiante. No último capítulo, “Casado com Tolstoi”, Hope, a esposa de Lonof, perde o controle de suas emoções e implora para que o marido deixe de viver em silêncio, só para a literatura.  Mas Lonoff insiste em viver uma vida monástica, para o desespero de sua mulher. Feita essa breve introdução, vamos ao livro?

Nathan Zuckerman (o alter-ego de Philip Roth) narra seu próprio “Retrato do Artista quando jovem”, enquanto reflete de volta alguns anos depois para o cenário de abertura, como uma nova luz literária, quando ele se encontra com o seu ídolo, E.L. Lonoff, depois de receber um convite para conhecer um velho escritor de Berkshire. A trama gira em torno de Zuckerman, um jovem escritor talentoso.

Lonoff vive como um recluso, um verdadeiro monge que vive a religião de sua arte, em uma casa com sua esposa cercada em todos os lados por um campo intocado, longe de tudo. A cada minuto de seus dias ele está “trocando sentenças”, sem ter ideia de como gastar seu tempo. A consequência de viver assim por tanto tempo − sua esposa Hope ("Hope"!) depois nos diz −, é que agora ele é o tipo de homem que "leva três meses para se acostumar com uma nova marca de sabão". 

 Mas Zuckerman considera a vida de Lonoff um paraíso, não um purgatório. Lonoff, para ele, é a personificação do possível futuro de Zuckerman, é um aviso que o jovem quase certamente não prestará atenção. E não está claro se Roth acha que deveria. 

No quadro de avisos do escritório de Lonoff, Zuckerman observa uma citação de Henry James, escrita no cartão: “Trabalhamos no escuro − fazemos o que podemos − damos o que temos. Nossa dúvida é nossa paixão e nossa paixão é nossa tarefa. O resto é a loucura da arte.

Zuckerman passa uma noite na casa do famoso autor E. I. Lonoff, um escritor que ele idolatra. Presente na casa está a jovem Amy Bellete, uma jovem com o passado misterioso que fascina o nosso protagonista. Nathan Zuckerman é um jovem escritor americano judeu que acaba de publicar três novelas de sucesso, rapaz jovem e talentoso, mora em um bairro judeu em Nova Jersey. Com apenas quatro histórias publicadas em sua carreira, seus escritos ofendem tanto a família como a comunidade judaica. Seu pai, um membro da comunidade judaica, teve que enfrentar essa decepção diante da descrição nada agradável feita pelo filho, que relata eventos familiares que podem provocar antissemitismo entre os leitores de Nathan.

A questão que se coloca então para Zuckerman é escolher “entre o artista como ligado a sua herança judaica e o artista como um ser singular”. O tema principal de “Diário de uma ilusão” é, portanto, a filiação e sua relação com o fazer literário. Especialmente a tensão entre o pertencimento a uma identidade (no caso, a judaica) e a temática do holocausto. Nathan fala a partir da profunda segurança de alguém que nunca sofreu antissemitismo, nunca sentiu que ser judeu poderia colocar sua existência em perigo. Ao telefone, ele grita para os pais: “Na Europa, mãe! Não em Newark!”.

Nathan Zuckerman, ainda em início de carreira, está começando a ser reconhecido e aclamado e procura E. L. Lonoff, um autor famoso e muito bem ranqueado no meio literário americano e também internacional. Nathan chega a Lonoff procurando um mentor, pois o tinha em um pedestal, o que o deixava em um grande desconforto. Os dois discutem outros escritores judeus compartilhando opiniões sobre literatura e arte enquanto a tarde passa silenciosamente. Ele é convidado a jantar, Zuckerman fica feliz em estar com o seu ídolo, principalmente quando Lonoff elogia seus poucos escritos. No entanto o jantar acaba em um momento típico para uma indigestão quando Hope mesposa de Lonoff, começa uma discussão;

“ Hope esboçou um sorriso tímido, Mas muito pouco entusiasmado:

- Creio que posso falar no assunto sem precisar de ajuda. Estou apenas relatando fatos, e de maneira muito calma, segundo me parece. O fato de a história ter sido publicado numa revista, e não numa antologia, não significa que eu tenha perdido o controle. Ademais, Amy não é o tema principal da conversa; muito pelo contrário. O que realmente interessa é a extraordinária bondade e caridade de E. I. Lonoff. Sua preocupação com qualquer pessoa necessitada, exceto consigo mesmo e com suas próprias necessidades.

- Só que eu “mesmo”, como você gosta de dizer, não existo no sentido corriqueiro do termo!

- Basta! – Disse Lonoff mais uma vez.

 Com isso, ela se levantou para tirar os pratos e servir a sobremesa. Um copo de vinho se espatifou contra a parede, atirado por Hope.

- Expulse-me de casa! – exclamou ela. - Quero que você me manda embora. Não diga que não pode, pois é o que tem a fazer! Quero ir embora! Terminarei de arrumar a louça e, depois você me mandará, esta noite. Eu lhe imploro... Prefiro viver e morrer sozinha a ter que aturar por mais um instante sua grosseria! Já não tenho mais moral ante As desilusões da vida! Não suporto mais ter um marido fiel e digno que não tenha ilusões a seu próprio respeito por mais um segundo se que! (pg 34,35)

Zukerman sentiu-se numa imensa saia justa ao presenciar aquela áspera discussão entre Lonoff e sua mulher Hope, que terminou com o arremesso de uma taça na parede. Depois do jantar, Lonoff convida-o para passar a noite em sua casa. Sente-se radiante com o convite. 

Quando Lonoff decide ir dormir, Nathan se sente em casa no escritório de seu mestre. Ele lê uma história de Henry James várias vezes, influenciado por um comentário que Lonoff havia feito sobre o livro. Na medida em que lê o conto de Henry James, se imagina numa discussão com o seu pai. 

Ele havia escrito uma pequena história sobre uma briga por dinheiro que alguns primos tiveram alguns anos antes. O pai dele acredita que a história era um estereótipo sobre os judeus e recorreu à ajuda de um juiz respeitado em seu bairro para pressioná-lo a jogar a história fora. Zuckerman se ofende com essa interferência cujo objetivo era controlar sua carreira. O alter ego de Roth não nega sua herança judaica-americana, mas, ao comparar com Lonoff um judeu mais antigo que Zuckerman, Roth compara duas relações contrapostas de dois artistas com o seu trabalho.

Amy, a misteriosa mulher que mora com os Lonoffs, é notada por Zuckerman. Ela passa silenciosamente. Ela encontra-se organizando trabalhos no escritório de Lonoff. Inicialmente, ele pensa que se tratava da filha ou neta de Lonoff, mas logo descobre que é uma ex-aluna.

Quando ele se encontra no quarto da casa, ele ouve um diálogo entre pessoas discutindo no quarto acima do dele. Ele tenta ouvir, imaginando que Amy e Lonoff estão tendo uma conversa particular. Ele imagina que Amy é na verdade Anne Frank − sim, a escritora famosa que deixou um diário e se tornou um dos livros mais lidos do mundo: Zuckerman imagina que ela sobreviveu ao campo de concentração, e foi convidada por Lonoff a morar nos Estados Unidos e estuda com o grande escritor, com ambições de escrever coisas maiores. Ele imagina que, quando seu diário foi publicado, Anne Frank estava com o coração partido, sabendo que seu pai pensava que ela estava morta e que era tarde demais para contar a verdade a alguém. 

Por um motivo muito específico: a personagem Amy Bellette é ao mesmo tempo fascinante e complicada. A questão da sua identidade fascina Nathan, ele projeta nessa mulher uma refugiada da Segunda Guerra Mundial. Zuckerman começa a se perguntar sobre essa jovem, sua aparência familiar, seu passado, sua idade, a maneira como ela se comporta. No delírio de uma noite sem dormir, Zuckerman pensa: “Amy Bellette pode ser Anne Frank?”.

Anne Frank poderia ter escapado dos nazistas e estar escondida na casa de Lonoff, isolada, escondendo a sua verdadeira identidade porque ela está cansada de estar no mundo. E se mora com os Lonoffs? Tudo se encaixa, de uma maneira estranha. Zuckerman quer que seja verdade. Nós também. Esse mistério por trás de sua identidade transforma um romance brilhante em um ainda mais propulsivo. Um grande livro literário também se torna um virador de páginas, e estamos sedentos por encontrar as respostas.

Ao reimaginar essa história, Roth não diminui as agruras do campo ou a violência do que ocorreu, mas ele questiona a santificação de Anne Frank, uma garota que possivelmente nunca havia pensado em si mesma como judia.

Em “Diário de uma Ilusão”, Philip Roth constrói uma ilusão. É o primeiro livro da série Zuckerman. Anne Frank é um personagem clássico da literatura, e Zuckerman mostra a sua determinação em realizar esse sonho. Para isso, o mundo virtual e o mundo real mais claramente se tocam. Um livraço! Um livro que merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 03 abril 2020 | Tags: Romance


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Diário de uma Ilusão
autor: Philip Roth
editora: Círculo do Livro S.A.
tradutor: Luís Horácio da Matta

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