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Risíveis amores

Milan Kundera, nasceu na Tchecoslováquia e é um dos maiores escritores contemporâneos da Europa. Tinha uma relação de amor e ódio com o comunismo. Ele ingressou no Partido Comunista em 1948, mas foi expulso em 1950 por atividades antipartidárias. Foi readmitido em 1956 e expulso novamente em 1970. Dessa vez, sua expulsão teve a companhia de outros escritores, como Vaclav Havel. Apesar de seu envolvimento político, Kundera nunca se considerou um romancista político. A partir de 1979, parou de escrever comentários políticos em seus trabalhos e se concentrou em ideias filosóficas.

Suas ideias exploram o individualismo versus totalitarismo, e giram em torno de sua capacidade de desenvolver uma psicologia sexual e interrogar a dinâmica do poder do sexo. Bauman se inspirou em Kundera para lançar uma excelente discussão sobre o “Amor Líquido”, o que prova a relevância desse autor que considero um dos gigantes da literatura.

“Risíveis Amores”, livro de que falaremos hoje, contém sete contos extremamente engenhosos, às vezes engraçados, onde reside uma visão de liberdade e cinismo dos europeus da Europa Central da época em que o autor viveu. O erotismo que Kundera nos mostra nos apresenta inúmeras variações.

O primeiro conto chama-se “O pomo de ouro do Eterno desejo”. O narrador sem nome tem uma imensa admiração pelo amigo Martin, que tem uma capacidade (apesar de casado com uma linda esposa) de realizar um jogo compulsivo de conversar com todas as mulheres solteiras disponíveis que eles veem. Nesse jogo, a finalidade não é bem o sexo, mas a caçada eterna. Tudo isso muito bem explicado pelo narrador no decorrer de uma “aventura” específica. Tudo começa quando Martin vê uma bela jovem em um café onde eles estão bebendo. Quando ela sai, eles a seguem. Ela é enfermeira em uma cidade nos arredores de Praga. Ela promete encontrá-los na cidade no próximo sábado. No grande dia marcado, o narrador e Martin vão ao encontro de carro à cidade. No caminho, eles acabam parando em frente a um lago, vestem calções de banho e nadam. Martin acaba vendo uma garota de biquíni e pergunta para algumas crianças que estavam ali o nome dela. As crianças dizem o nome, que fica registrado para uma próxima ocasião, quem sabe no futuro? Depois de registrarem, o nome da menina, eles seguem em direção a Praga.

Eles chegam ao hospital e encontram a enfermeira, que diz que tem uma amiga para se juntar ao narrador. Ela precisa voltar ao trabalho e combinam de se encontrar à noite. Enquanto eles esperam, vão conversando com inúmeras garotas, para efeito de registro para, quem sabe, em outra ocasião... Quando chega a hora do encontro com a enfermeira e a amiga, ficam esperando. Martin havia marcado um encontro com a sua mulher, e o relógio não para. O narrador está surpreso, ele sabe que Martin ama a mulher dele. Enquanto isso, esperam e começam a ficar impacientes. Finalmente, o narrador vê no espelho retrovisor do carro algumas enfermeiras. Ao que parece, elas estavam fazendo um atendimento de emergência no hospital. Ele declara abruptamente que eles esperaram o suficiente e que precisavam sair agora para que Martin chegasse em casa a tempo de encontrar a esposa. E conclui:

 “Fiquei olhando para ele. Seus olhos brilhavam como de costume com sua luz eternamente ávida; naquele momento senti como lhe queria bem, como eu admirava a bandeira atrás da qual ele desfilou toda a vida: a bandeira da eterna busca da mulher”. (pg 26)

O segundo conto chama-se: “Ninguém vai rir”. Na Tchecoslováquia comunista, um professor de história da arte chamado Klima abala os conservadores. Um mulherengo, que teve muitas mulheres percorrendo seu apartamento ao longo dos anos, além de ter emprestado sua casa a amigos, que costumavam fazer festas barulhentas e assim adquiriu uma reputação não muito respeitável, graças ao comitê de construções de moradia controlada pelo partido comunista que registrou que Klima mora com Klara, sua namorada de vinte anos.

A história vai adquirindo uma dimensão kafkiana quando um senhor, um cientista desempregado chamado Zaturetsky, entra em contato com esse professor e lhe pede que revise um artigo sobre um artista obscuro que ele passou três anos pesquisando e escrevendo. Zaturetsky passa a assombrar a vida de Klima. Ele envia mais cartas perguntando quando a revisão estará pronta. Ele aparece na faculdade para descobrir em que dias Klima dá aulas e depois está presente todos os dias. Klima muda os dias em que leciona (em segredo e de maneira ilegal). Zaturetsky incomoda sua secretária, Mary, com perguntas, até que um dia ela enfraquece e informa seu endereço real.

No dia seguinte, Klima está fora, mas Klara, sua namorada, está em casa quando Zaturetsky bate à porta. Ele é um homenzinho engraçado. Klara diz que Klima não está lá, o que é verdade. No dia seguinte, Zaturetsky pega Klima em seu escritório, forçando Mary a deixá-lo entrar.

A personalidade de Zaturetsky era descrita da seguinte maneira pelo professor Klima:

“Eu o via diante de mim: mesquinho, teimoso, ameaçador; via o sulco vertical que desenhava em sua testa o traço de sua única paixão; via nesse traço retilíneo e compreendi que era um linha reta determinada por dois pontos: meu parecer crítico e seu artigo; e que exceto o vício dessa linha maníaca nada existia em sua vida a não ser uma ascese digna de um santo.” (pg 44)

É aquela história: se a vida foi feita para se divertir, e se a vida é preguiçosa para isso, temos mais que ajudá-la para isso. Tudo isso para dizer que Zaturetsky havia tentado seduzir a sua namorada Klara, o que causou uma grande indignação. Ele ficou lívido e exigiu uma retratação, que não foi feita. E a partir daí uma série de eventos começam a acontecer em sua vida.

Alguns dias depois, ele recebe uma carta da Sra. Zaturetsky ameaçando entrar com uma ação legal, a menos que ele retire sua acusação. E para piorar a situação descobrem que Klara (que não poderia morar lá por razões burocráticas) trabalha em uma fábrica de roupas e começa a sofrer bullying para encontrá-la. Ela havia fugido. E Klima juntamente com Klara tornam-se animais caçados.

 Quando tudo havia sido descoberto, a Sra Zaturetsky (que é membro do partido comunista) faz uma proposta para resolver a situação. Ela retiraria a acusação caso ele aceitasse o trabalho de seu marido, fazendo uma crítica elogiando-o. As funcionárias do partido ameaçam com uma série de alegações de caráter comportamental de Klima (leia-se a sua vida sexual), que podem transformá-lo em um professor inadequado para ensinar a geração jovem. Os burocratas do partido o acusam de desistir de dar palestras quebrando contratos e, para piorar as coisas, eles trazem à tona a impopularidade com todos os moradores do prédio.

A sorte estava lançada. Klima se reúne com a Sra Zaturetsky, uma mulher alta e doente que adora o marido e não aceita ouvir nada que o desabone do ponto de vista moral, ou seja, o assédio alegado por Klima. Ela está convencida de que o artigo do marido é uma obra-prima. Klima tenta explicar os plágios de segunda categoria, contidos no trabalho do marido, mas ela não pode ouvi-lo. Klima perde tudo. Mas sem antes concluir:

 “Precisei ainda de um momento para compreender que minha história (apesar do silêncio glacial que me cercava) não é do gênero trágico, mas se enquadra de preferência na categoria das aventuras cômicas. O que me proporcionou uma espécie de consolo”. (pg 67)

O terceiro conto de que falaremos chama-se “O jogo da carona”. Um homem e uma garota resolvem embarcar para as férias de duas semanas, mas no primeiro dia descobrem mais coisas sobre eles mesmos do que a maioria dos casais descobre na vida. O mecanismo da descoberta é o jogo da carona, que assume uma intensidade perigosa e irreversível.

 A menina tem 22 anos, tímida, ciumenta, desconfortável com o corpo e envergonhada por ter necessidade de ir ao banheiro. No entanto, ela confia em seu namorado totalmente. Ele propõe um jogo. E qual jogo? O jogo da carona. Ela fingiria que receberia uma carona de seu namorado fingindo não conhecê-lo. No entanto, quando ela aceita o jogo do namorado, algo acontece. Ela deixa a timidez de lado. Ela se torna uma sedutora. O namorado tomou um susto, mas ela continuava o jogo e se sentia ótima interpretando esse papel. O interesse está na maneira como os dois protagonistas encontram o jogo, abrindo perspectivas inesperadas dentro de si, partes de sua psicologia que eles não sabiam que possuíam.

 

O namorado é um garoto de 28 anos bem mais experiente que a menina. Um playboy na Tchecoslováquia comunista. Ele acha que conhece tudo sobre as mulheres por ser mais velho. Ele admira a namorada pela pureza que havia nela. No entanto o jogo se transforma quando ela assume a sua sexualidade até então nunca revelada. Mas jogo é jogo. Ela bancando a prostituta, e ele o cliente entediado. Isso acaba excitando os dois. Só que ela acaba revelando algo que ele não seria capaz de prever: ela possuía uma capacidade erótica feroz e profunda.

 Surpreso, ele começa ficar nervoso quando a menina assume o seu novo papel:

 “Ela voltou do toalete queixando-se: - Um sujeito me disse: - “Quanto, senhorita?”

- Não fique espantada! Você está com aparência de puta.

- Sabe que não estou nem ligando?

- Você devia ter ficado com o tal sujeito!

- Mas estou com você.

- Pode encontrá-lo mais tarde. Basta combinar com ele.

- Ele não me agrada

- Mas não iria absolutamente incomodá-la ter muitos homens na mesma noite.

 - Por que não? Desde que sejam bonitões.

 Você prefere um depois do outro ou todos ao mesmo tempo?

- As duas coisas (pg 85)

 

Kundera explica que o rapaz adorou, em vez de amá-la. Ele associava a imagem dela a uma imagem de pureza e inocência que ele tanto desejava possuir. Ele fica violento. Eles transam, mas ele se recusa a falar com ela. Ela chora. E pede para parar com o jogo. E a viagem só estava começando.

Bem, vamos para o quarto conto. Mas prometo que será o último. Reconheço que estou dando muito spoiler. E depois desse conto eu paro. O nome desse conto interessantíssimo é Eduardo e Deus. Vamos a ele?

Sem dúvida alguma foi uma das melhores histórias que li desse livro. Eduardo é um jovem professor. Ele está apaixonado por Alice. Mas ela é uma menina recatada e muito bem-educada. E os encontros se dão de uma forma bem formal. Apenas beijos secos sem direito a mão nos seios. Um dia ele se surpreende quando Alice lhe faz a seguinte pergunta (lembre-se que estamos na Tchecoslováquia comunista, ok?): “Você acredita em Deus?”. Eduardo estranha a pergunta, mas percebe que para evoluir na relação com Alice ele confirma que sim. Começa a ir à igreja com ela, se ajoelha e ora. Para sua grande surpresa, ele começa a gostar de ser religioso, algo reconfortante. E ele se torna bastante devoto. Em determinado momento ele começa a ser mais religioso que Alice, ajoelhando-se. Só que é flagrado por um zelador quando se defronta com uma cruz e faz reverências a ela.

 O zelador reporta esse gesto a uma diretora da escola, e Eduardo é chamado ao comitê da escola, que está pronto a atacá-lo, suspendê-lo ou até demiti-lo. Mas Eduardo resolve assumir sem medo as acusações contra ele. Em vez de negar, ele assume. Negar as acusações o deixariam irritados porque desafiariam a conclusão a que eles já haviam chegado e, portanto, usa da honestidade. Admite que era comunista, um homem do povo, o homem do futuro e por aí vai, mas acredita em Deus. Os acusadores foram desarmados com essa revelação. Eles estavam certos o tempo todo. E agora podem ajudar esse rapaz a ser reeducado por sua crença em Deus, ou seja, ele agora está cara a cara para jogar o seu papel que seus acusadores lhe atribuíram.

Eduardo é submetido a sessões de reeducação, que vão ganhando uma progressão, a temperatura fica mais amigável, a conta dessas dúvidas é colocada nos tormentos naturais da juventude. A diretora, uma senhora com buço, terrivelmente feia, traz para a mesa do debate uma garrafa de vinho. Perguntado pela diretora o que ele achava dela, Eduardo respondeu que ela era jovem e simpática. Nesse momento, as portas se abriam para mais sessões, só que com mais um ingrediente; em outras palavras, com um novo cenário.

A história chega ao seu clímax quando, na terceira sessão, ela bebe demais, liga o rádio e insiste para que ele dance com ela. Com um rosto colado ao seu peito, Eduardo sente a sua masculinidade ir para o espaço, pois o que vinha pela frente era o terror. Ela o beija, ela coloca a mão de Eduardo no peito dela, ela o beija. Então de repente ela desaparece, vai em direção ao banheiro e em minutos ela reaparece com uma roupa transparente.

O momento estava chegando, a diretora se aproxima, mas Eduardo se afasta, até que vira um jogo de perseguição em volta da mesa do café da sala de estar. No meio de uma sinuca de bico, vendo que o horror se aproximava, Eduardo teve uma ideia. Ele diz que não pode. Sua fé não deixará. Deus não deixará. A diretora estava quase em transe, chegando as raias do ridículo, Eduardo ordena que ela se ajoelhe. Ajoelhar, logo quem; uma pessoa ligada à burocracia do partido comunista. A diretora se desconcentra e se ajoelha. Faz com que ela reze, olhando para a imagem do partido comunista. Ela começa a rezar o Pai Nosso. Ela o obedece, está seminua e ainda presta uma homenagem a ele. Sua masculinidade adquire poder, ao vê-la ajoelhada. Ele rasga a roupa dela e transa com a diretora de uma forma feroz e implacável. Uma experiência sexual gratificante. A diretora está muito feliz e diz que aos poucos ele estará curado da religião. E conseguirá uma promoção. Eduardo se transformou em um mártir da fé.

Eduardo e Alice, a menina que o levou para os caminhos de Deus se encontram e ficam juntos, sexualmente juntos, numa casa de campo emprestada. Se Deus havia proibido ela de fazer sexo antes do casamento, era um ilícito de acordo com as leis divinas, e agora ela assume a ilicitude do sexo. Eduardo se desaponta. Eles têm uma discussão dura e terminam o relacionamento após o sexo. Eduardo descobre que tem algo incomensuravelmente melhor, com aquela diretora feia, magrela e com um buço que se ajoelha diante dele e ora desencadeando forças eróticas que ele não imagina serem possíveis.

Fico por aqui sem deixar de mencionar que os contos “Simpósio”, “Que os velhos mortos cedam lugar aos novos mortos”, “O Dr Havel dez anos depois” valem muito a pena serem lidos sem a minha intermediação. Reconheço que dei uma exagerada desta vez, no tocante ao spoiler, mas não se deixem enganar, podem ler com segurança que vocês descobrirão coisas importantes. Milan Kundera é um autor rico, sua narrativa é muito sedutora.

Kundera é um narrador que nos guia persuadindo seus personagens a discutirem os seus próprios pensamentos sobre política, morte e a natureza humana e, claro, sexo. “Risíveis Amores” de Milan Kundera, é um livro que merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 13 abril 2020 | Tags:


< Diário de uma Ilusão Breve Romance de Sonho >
Risíveis amores
autor: Milan Kundera
editora: Nova Fronteira
tradutor: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca

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