O último dia de um condenado
“O último dia de um condenado”, de Victor Hugo, tem um objetivo certo, ou seja, é uma história em que o autor pontua sua posição contra a pena de morte. Esse livro influenciou escritores como Charles Dickens, Fiódor Dostoiévski e Albert Camus. E não é para menos: o livro tem um tom perturbador. Esse livro foi o prelúdio da sua grande obra, “Os Miseráveis”. Grandes escritores, como Flaubert e Zola, não deram a devida atenção ao livro e à obra de Victor Hugo, pois estavam preocupados com o realismo, que era uma crítica ao romantismo. Mas o público o consagrou. Apesar de a política ter sido o seu combustível, Victor Hugo não adotou o discurso da luta de classes. Viveu de forma confortável financeiramente falando, tornando-se um dos escritores mais bem remunerados de sua época. Teve uma vida afetiva quase próxima à devassidão. Dizem que na sua morte as prostitutas francesas declararam luto oficial.
Victor Hugo foi poeta, dramaturgo, ensaísta, autor de inúmeras obras, que são referências na literatura mundial. Entre elas, podemos mencionar “O Corcunda de Notre Dame”, “O Homem que Ri”, “O Último Dia de um Condenado” (obra da qual falaremos hoje), “Os Trabalhadores do Mar” e “O Noventa e Três”. Suas convicções políticas, em oposição a Napoleão III, o levaram ao exílio durante o Segundo Império. Recusou-se a receber a anistia tempos depois. Foi um homem que viveu intensamente. Talvez esteja aí o seu grande talento de escrever uma história.
Vamos à história? O livro traz questões que talvez desinteressem ao “público hatred” (o publico que tem no ódio sua forma de expressão): a liberação do porte de armas, a pena de morte e afins. Mas mesmo assim merece ser lido, até para questionarmos os argumentos de Victor Hugo, que são do século XIX, mas permanecem atuais aos dias difíceis que vivemos. Qual a questão principal do livro? A pena de morte. No Brasil ela não existe (graças a Deus!). No entanto, o justiçamento acontece à margem da justiça, ou seja, da lei.
Uma coisa é certa, essa espécie de prática é algo que pode germinar, e tende a produzir mais cadáveres que justiça. No dia em que o povo perder totalmente a fé na justiça, o primeiro justiçamento abrirá caminho para outros tipos de guilhotinas, ainda mais bárbaras das já existentes.
Victor Hugo nos oferece uma visão fascinante sobre o que se passa na mente de um homem, uma vez que ele sabe que vai morrer. Ele rasteja nos corações e mentes de todos os leitores. É um livro que reflete sobre a pena de morte. Tem a forma de um diário escrito por um homem que vive seus últimos dias antes de enfrentar a guilhotina. Tudo é misterioso, não sabemos da acusação. Eventualmente supomos que ele cometeu um assassinato e que tem culpa.
Esse homem, de quem não sabemos o nome, escreve seus pensamentos e sentimentos ao longo dos dias que antecederam a sua execução, e vamos com ele até o ponto em que ele é levado à morte. Mas quem é esse homem? Qual o seu crime? Não sabemos. Sabemos apenas que ele tem uma filha e, ao que parece, pertence à classe média baixa. Ele pode ler e escrever, tem estudo, mas não cursou universidade. Sua filha tem uma babá.
Ele sabe que está prestes a morrer, que vai ter uma morte horrível e que uma multidão estará assistindo e torcendo para ver sua cabeça separada do corpo. Uma execução, um entretenimento gratuito em que a multidão aperta-se na praça do show. No caminho para a morte, o condenado vê assentos, andaimes, carrinhos de aluguel para fornecer aos espectadores uma visão mais “apurada”. Ele descreve pessoas vendendo assentos para o dia de entretenimento.
Ele nos conta sua vida na prisão; fala sobre seus sentimentos, medos e esperanças; fala sobre sua família, sua esposa, sua filha e sua mãe.
“Enquanto sonho, as lembranças de minha infância e de minha juventude me voltam uma a uma, doces, calmas, sorridentes, como ilhas de flores neste abismo de pensamentos negros e confusos que turbilhonam meu cérebro.” (pg116)
Em seu ensaio no final do livro, chamado Prefácio de 1832, Victor Hugo argumenta que a pena capital é cruel, a guilhotina não é totalmente indolor e rápida como alguns pensam. Ele detalha as execuções sem pedir desculpas por estar ofendendo as sensibilidades de seus leitores; em vez disso, ele quer forçar-nos a ver o que a França e seu povo estão fazendo. Ao chocar-nos propositalmente, ele tem a esperança de que vai levar as pessoas a agir contra esse absurdo. É um ensaio de um homem fruto do romantismo da época, e seus argumentos são de um homem apaixonado.
Em determinado momento do livro, em que o humor negro predomina, Victor Hugo põe as seguintes impressões no pensamento do prisioneiro condenado:
“Acaba de entrar um senhor, um chapéu na cabeça, que mal me olhou e então abriu uma trena e se pôs a medir de cima a baixo as pedras da parede, falando com a voz muito alta para dizer ora: ‘É isso’, ora ‘Não é isso’.
Perguntei ao carcereiro quem era. Parece que é uma espécie de subarquiteto empegado na prisão.
De seu lado, sua curiosidade se animou a meu respeito. Ele trocou algumas meias palavras com o guarda que o acompanhava; em seguida fixou um instante os olhos sobre mim, sacudiu a cabeça com ar despreocupado e se pôs novamente a falar em voz alta e a tirar as medidas.
Ao terminar a tarefa, aproximou-se de mim dizendo com sua voz estrondosa:
- Meu caro amigo, em seis meses essa prisão estará melhor.
E seu gesto parecia acrescentar:
- O senhor não aproveitará, é uma pena.
Ele quase sorria. Pensei ver o momento em que ele ia gentilmente ralhar comigo, como se brinca com uma jovem noiva na noite de suas núpcias.
Meu carcereiro, um velho soldado com galões, ocupou-se da resposta.
- Senhor – disse -, não se fala tão alto no quarto de um morto.
O arquiteto se foi.
E eu, eu estava ali, como uma das pedras que ele mediu.” (pg111,112)
Dostoievski chamou “O Último dia de um condenado” de obra-prima. Eu assino embaixo. A cena do condenado com a sua filha, que não o reconhece no momento derradeiro, é muito forte. Recomendo este livro. Uma reflexão original. Antes de você, leitor, ver a cabeça do condenado rolar para dentro de um cesto, seu coração será arrancado. Um livro maravilhoso e que merece um lugar de destaque na sua estante.