Bilac vê estrelas
Ruy Castro é um dos maiores biógrafos brasileiros. Considero-o com a mesma classe e brilhantismo de Stefan Zweig, que também foi um grande biografo. “Bilac vê estrelas” não é uma biografia, é um romance delicioso de um escritor que tem o total domínio da arte da escrita. Apesar de não ser uma biografia, e sim uma ficção, o livro de Ruy não deixa de ter algo biográfico, principalmente no que se refere à cidade do Rio de Janeiro, que ele domina tão bem. Se algum desavisado ler “Bilac vê as estrelas”, vai pensar que o autor é contemporâneo dessa época, ou seja, da Belle Époque. E é aí que o biógrafo aparece. Ruy resgata a narrativa de época, nos oferecendo um antigo universo vocabular, além de, nas palavras de Carlos Heitor Cony, “uma fabulosa capacidade de criar tipos e levantar épocas”.
Vou ser bem franco com vocês: esse livro me passou batido, nunca soube da existência dele. E olha que fui livreiro, hein? Se bem que, quando ele foi lançado, eu ainda não era livreiro. Eu vi “Bilac vê estrelas” na prateleira de um sebo na rodoviária aqui de Teresópolis que frequento sempre quando quero coisas antigas, apesar de esse livro não ser tão antigo assim, ele foi escrito na virada do século XX, no ano 2000. Mas como eu sempre digo: antes tarde do que nunca. Eu li e adorei!
A história se passa na época do prefeito Pereira Passos, aquele que fez uma revolução urbana na cidade seguindo os preceitos urbanísticos de ninguém menos que o Barão de Haussmann, que mudou a face da cidade de Paris durante a sua administração (de 1853 a 1870), servindo também como modelo e inspiração para os que mais tarde reformaram Buenos Aires (Torcuato de Alvear), Nova York (Robert Moses) e Rio de Janeiro (Pereira Passos).
A cidade vivia um surto modernizador sob a presidência de Rodrigues Alves, acrescido pelo sucesso de Santos Dumont, que conquistava os céus de Paris.
A trama do livro é protagonizado por dois personagens reais muito populares na época em que viveram: Olavo Bilac, o homem que habitava o parnaso, o sumo pontífice da poesia, considerado o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, que seria equivalente a um pop star dos versos. E José do Patrocínio, o negro que fez uma enorme diferença na campanha pela libertação dos escravos. Um combatente apaixonado pela causa. Dono do jornal A Cidade do Rio, um jornalista e ativista da causa abolicionista. Como a paisagem da cidade estava se transformando, José do Patrocínio comprou um carro francês que foi um dos primeiros a rodar pelo país. O carro não era potente. Ele chamava a atenção das pessoas que circulavam na rua.
Certa vez, José do Patrocínio deixou Olavo Bilac (seu grande amigo) pilotar seu carro. Olavo Bilac acabou realizando a sua grande façanha, sendo o protagonista do primeiro acidente de carro no Rio de Janeiro. Foi o primeiro acidente provocado por um poeta.
Havia uma amizade entre os dois. No entanto, algo aconteceu. Olavo Bilac viu um jornaleiro anunciando a morte de José do Patrocínio em Paquetá. O corpo estava decapitado, a cabeça estava em estado de decomposição. Quando chegou ao necrotério, a polícia brasileira já estava adotando métodos ingleses de medicina legal e de investigação.
Bilac, com muito sofrimento, foi ver o cadáver. Saudado pelo doutor Pinto (o médico legista), pôde perceber que o corpo não era de seu amigo. Ao se recompor, saiu dali e foi ao encontro do amigo que estava muito bem, obrigado. Mas havia algo no semblante de José do Patrocínio que carregava um segredo. Qual seria esse segredo? Tudo que José do Patrocínio fazia Bilac admirava. Foi quando, após o jantar, Patrocínio disse as seguintes palavras:
“Olhos de Patrocínio pareciam incendiar-se:
“Em segredo há anos venho estudando os aeróstatos. Li muito, consultei engenheiros, troquei cartas com Santos Dumont. Se fui visto na Ilha de Paquetá, é porque procurava um sítio afastado onde pudesse construir meu hangar. Mas Paquetá revelou-se impraticável para o transporte do material e de meus operários. Encontrei um barracão aqui perto, em Todos os Santos, e é lá que estou levantando a carcaça, adaptando o motor, desenhando o leme e a hélice. Tenho vinte homens trabalhando, entre carpinteiros, maquinistas, ferreiros e funileiros. Em breve estarei sobrevoando a rua do Ouvidor e dando adeusinho para os companheiros do café”. (pg 31)
Bilac ficou louco com a ideia. Conseguia visualizar José do Patrocínio mandando beijinhos para todos em terra. Imaginava José do Patrocínio aterrissando no Campo de Santana e sendo condecorado.
Havia um problema em todo aquele sonho, e esse problema tinha um nome: dinheiro. Quem iria ajudá-lo a conseguir essa proeza? José do Patrocínio precisava de (desculpem o trocadilho) um patrocínio. Aí estava o busílis da questão. Quem iria patrocinar o dirigível Santa Cruz? O Senado havia garantido uma ajuda.
Bilac, que conhecia Paris como poucos. foi flanar nessa cidades. Começou a perceber a admiração que os franceses tinham por Santos Dumont. Conheceu duas víboras ligadas ao comércio, os ambiciosos Deschamp e Valcroze, que tinham uma opinião muito precisa sobre Santos Dumont: achavam-no um gênio, mas sem nenhum tino comercial. Mostrava suas invenções para todos, não patenteava suas descobertas.
Bilac, admirado pela invenção de José do Patrocínio, começou a vendê-lo a todos na França. A delícia do verbo seduziu a todos a ponto de George Méliès dizer:
“Monsieur Bilac, disse George Méliès, “se Patrocínio é realmente o gênio de que o senhor fala, acho que vou ao Brasil buscá-lo para conceber meus filmes. Melhor ainda vou tirá-lo do Rio com um velho artifício de mágica e fazê-lo materializar-se instantaneamente em Paris.” (pg 59)
Quando monsieur Méliès disse isso, os olhos de Deschamps e Valcroize (dois pilantras) brilharam e começaram a planejar um meio para ter a planta desse dirigível de José do Patrocínio.
Precisavam obter isso de qualquer maneira, e eles tinham uma arma- secreta e morena e fatal. Quando Bilac voltou para o Brasil, parou em Lisboa e percebeu a presença de uma mulher chamada Eduarda Bandeira no navio na volta. Os dois ficaram juntos toda a viagem. Quando chegaram, Bilac a introduziu na sociedade e na boemia carioca. Quanto a Eduarda, era uma mulher interessante, uma discípula de Gabrielle D’Annunzio, poeta e dramaturgo italiano que tinha no decadentismo a sua escola. Gabrielle D’Annuzio foi um dos precursores dos ideais do fascismo italiano. Eduarda Bandeira era aprendiz de uma técnica de sedução chamada pompoarismo. Tinha na sua coleção de amantes Alfred Jarry.
Quando perguntada do porquê da sua vinda ao Brasil, ela vendia o seguinte texto: veio fugida de um ex-marido que a ameaçara, inconformado com o rompimento. Na verdade, em toda aquela história de Eduarda Bandeira havia um patrocinador. Não havia jantar de graça. Deschamp e Valecroize estavam patrocinando tudo aquilo. E o motivo era sórdido: roubar aquele invento.
Seu interesse sobre o dirigível de José do Patrocínio não tinha nada de ingênuo. A curiosidade era uma máscara usada para fins maiores, mesmo que para isso tivesse que participar de uma noite ardente de sexo seja com quem fosse.
Bilac aos poucos foi desapegando dela.
“Senhora Eduarda, não sei que diabos a trouxeram aqui. Mas enquanto se veste, irei à janela chamar um carro para levá-la a seu hotel” ( pg 96)
Vendo que suas pretensões estavam sendo pouco a pouco dinamitadas, Eduarda acabou conhecendo o padre Maximiliano, que foi seduzido por seus encantos. E ela lhe propôs sexo caliente em troca de uma ajuda: roubar as ideias de José do Patrocínio.
Bem, fico por aqui. Não se iludam, o livro é muito melhor do que esta resenha (óbvio!). A sensação que fica durante a leitura é que Ruy Castro deve ter se divertido muito ao escrever essa história simples, divertida e extremamente bem escrita. Patrocínio e Bilac nos faemz lembrar de Don Quixote e Sancho Pança. Numa intriga internacional articulada para roubar, a qualquer custo, os desenhos da preciosa aeronave, para eliminar o inventor, a fim de beneficiar as potências europeias.
“Bilac vê estrelas”, de Ruy Castro, é uma delícia de história. É um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.