A caixa-preta
O livro “A Caixa Preta”, do escritor israelense Amós Oz, me pegou de surpresa. Fui levado por um amigo que não havia gostado do livro. E, como eu tinha uma confiança nele como leitor, acabei deixando para lá. Foi através de um grupo de leitura a que pertenci, onde a maioria optou por esse livro, que eu acabei topando o desafio. Já li alguns romances e alguns ensaios de Amós Oz e gostei muito. Entre eles, ”Uma certa paz”, um romance maravilhoso, e os ensaios “Como curar um fanático” e “Contra o fanatismo”.
“A Caixa Preta” é um livro genial. É aquela história, não devemos seguir cabeças alheias, principalmente quando tratamos de um grande autor. Eu adorei!
Mas vamos falar sobre esse autor antes de iniciar a história. Amós Oz nasceu em Jerusalém em 1939, passou grande parte da sua vida no kibutz Hulda, mudando-se a certa altura para a cidade de Arad, no Neguev, onde vive até hoje. Viajou para diferentes países como convidado, e suas obras foram traduzidas em quase todos os idiomas.
Amós Oz, ficcionista e militante político da esquerda israelense, é ligado ao movimento pacífico Shalom Achshav (Paz Agora), que a partir da década de 1970 assume uma atitude crítica na imprensa e na televisão sobre os rumos do país. O homem político transparece na ficção de forma harmoniosa e engenhosa, como veremos em “A Caixa Preta”.
“A Caixa Preta” é um romance composto de cartas e telegramas que se passa em 1976. Antes, portanto, da virada política de 1977, quando a direita ganhou o poder, tomando-o do partido trabalhista que era apoiado pela elite ashkenazita. O livro mostra uma solidão, e as cartas são a demonstração disso. Os vários correspondentes se posicionam frente a frente. Isso faz um drama familiar no mínimo intrigante. E Amós Oz constrói uma história que apresenta a condição moderna israelense.
O romance é composto de correspondências: 51 cartas e 56 telegramas que as personagens trocam entre si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero que desfrutou de enorme prestígio no século XVIII. Werther, de Goethe; Ligações perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nesse tipo de romance, como em uma peça de teatro, o narrador se oculta em benefício de suas personagens, que ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática.
É também como o espectador desse teatro, o leitor, tem de montar, a partir das cartas, a fábula do romance, seu enredo, e também compor o perfil das personagens, que não são apresentadas nem contadas por um narrador, mas desdobram-se diante dos olhos do leitor, com suas incertezas, oscilações e contradições.
Seria enganador descrever ''A Caixa Preta'' como um relato doméstico cujo sujeito é o casamento e as tensas relações entre os membros da família moderna e quebrada. Amós Oz se preocupa não só com a vida privada dessas pessoas, mas com a vida de Israel. E os personagens, ao revelar suas vidas internas, revelam, também, a condição do Estado.
Alec Gideon é filho de um antigo colonizador, um daqueles tipos de heróis que se estabeleceram na Palestina, atravessando a terra com suas botas. Ele projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro heroico, destemido e forte. Ilana é filha de polacos imigrantes do pós-guerra. Michael Sommo, segundo marido de Ilana, é um norte-africano. Argelino, comportava-se como um pied noirs em Israel, ou seja, como um francês na Argélia, mas um judeu oriental sefardita, desprezado pelos azkenazis europeus como deficiente cultural e de linhagem.
Alec é um herói de guerra de 1973, a famosa Guerra do Yom Kippur. Ele fez sua reputação internacional por suas análises da mente do fanatismo. Ele se divorciou da esposa flagrantemente infiel, Ilana, demonstrando no tribunal suas numerosas traições. E, consequentemente, sua humilhação pública. Michael Sommo casou-se com ela. Sommo é um judeu sefardita, ou seja, um judeu descendente da península ibérica e árabe. Michael nasceu na Argélia e morou em Paris por alguns anos. Ele e Ilana vivem juntos em um pequeno apartamento, criando sua filha. O equilíbrio familiar é influenciado pela delinquência de Boaz, que é filho de Alec Gideon e Ilana. E Ilana escreve sempre para seu marido pedindo ajuda para o filho problemático. Casar-se com Ilana, ashkenazita alta e bonita, representou uma vitória para Michel Sommo. Ele a salva da autodestruição quando Alex a abandona, e enquanto isso sua autoimagem cresce.
A relação entre Alec Gideon e Ilana foi uma combinação de sadomasoquismo e luxúria simples – nunca foi quebrada. Apesar de todas as traições de Ilana, ela mantém uma relação com o ex-marido, no tocante a ajudas financeiras. O marido não a decepciona. Ele responde a seu pedido de ajuda a Boaz, jogando dinheiro para resolver o problema, juntamente com insultos dirigidos à vulnerabilidade de todos.
Ilana é o ápice do triângulo matrimonial de amor e ódio que fornece os ingredientes à novela. Mas suas palavras e o próprio triângulo representam um tema maior: a questão não resolvida que dificulta e divide os pensadores israelenses sobre o caráter e o destino de sua nação. As cartas e telegramas lançados uns contra os outros conta uma história amarga, cômica e, finalmente, triste de três pessoas talentosas e inflamadas cujas vidas e paixões se mantêm e se estrangulam. As cartas assumem um caráter de alarme de guerra. Eles utilizam suas armas de persuasão, religião e lamento. Uma série de alarmes, alguns deles falsos, que se recusam a ser desligados.
As relações entre Michael Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre ashkenazitas e sefarditas, esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em baixa, e em seu lugar surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, que acredita na “Grande Israel” e que está se preparando para substituir a velha guarda, ou seja, Israel anterior. O humilde professor de francês (Michael Sommo) acaba apropriando-se da ajuda financeira que Ilana recebeu de seu ex-marido para seu filho Boaz. Ele abandona sua carreira de professor de francês e usa esse dinheiro para reformar a sua casa e também sua vida.
Com as coisas começando a se transformar em Israel, Michael Sommo ingressa no movimento de direita nacionalista militante e passa a dedicar-se à compra de terras nos territórios ocupados Seus planos se resumem em levar a família para viver no bairro judaico na cidade velha de Jerusalém. Ganhou força apoiando Menachen Begin e o Likud, saindo do trabalho normal para o trabalho político com fortes elementos religiosos, contra reivindicações árabes. Transforma-se em um fundamentalista, sua fala é permeada por citações bíblicas, que vão se tornando mais repetitivas e frequentes. Tudo em nome do Sionismo. Acredita em um futuro novo inspirado no passado, mas com uma roupagem do presente. A história segue seu curso, e sua adesão ao nacionalismo se acentua. Seu objetivo é reeducar Boaz em Kiriat Arba e reeducar sua mulher Ilana dentro da tradição religiosa. Mas nem tudo que é programado é cumprido. Tanto Boaz quanto Ilana escaparão da órbita de sua influência.
Terras em Hebron, reconstrução de antigas sinagogas, impor o Halacha, ou seja, o modelo ético que serve como referência a qualquer praticante da religião judaica. E todo homem que cumpre a Halacha é considerado uma pessoa virtuosa. Mas ele quer impor a Halacha sem se preocupar com a concepção ideológica e religiosa de cada um. Em síntese, é a forma que Michael Sommo encontra de redimir o presente israelense e plantar a salvação futura, preparando-se para a vinda do Messias.
Alex é o contrário de Michael. Criado para ser um homem forte e destemido, como de fato foi durante a guerra, é um sionista secular, um herói de guerra, um professor de sucesso. Recebe uma herança milionária do seu pai, mas acaba não usufruindo essa fortuna, pois se encontra com um câncer terminal.
Mas lamento ter que acabar por aqui. “A Caixa Preta” fala através de seus personagens das modificações da política em Israel. Um livro simplesmente divino, e que merece um lugar de destaque na sua estante.