Crônica de uma morte anunciada
O Colombiano Gabriel García Márquez é um dos escritores mais importantes da literatura latino-americana. Sua reputação como mestre do realismo mágico superou fronteiras. Vencedor do Prêmio Nobel de literatura em 1982 pelo conjunto da sua obra e de diversos prêmios nacionais e internacionais, foi contista, novelista, jornalista e ativista político. A obra mais popular de García Márquez é “Cem anos de solidão”, em que ele mistura o épico com o realismo fantástico. Essa foi uma obra que li há quase trinta e cinco anos. Confesso que será um imenso prazer relê-la e trazê-la aqui para o blog. É um clássico e merece antecipadamente um lugar em qualquer estante.
“Vamos à história? Quando abrimos o livro, uma revelação nos é concedida (e fiquem certos que não é nenhum spoiler): Santiago Nasar irá morrer no dia após o casamento dos jovens Bayardo San Roman e Angela Vicário, que foi celebrado com uma festa grandiosa, em que o noivo não poupou recursos.”
Bayardo San Roman é um forasteiro misterioso. Ele é filho do general Petronio San Roman, um homem famoso que despontou por sua bravura em guerras, e Alberta Simonds, que muitos consideravam a mulher mais bonita das Antilhas. Bayardo veio à cidade com o único propósito: encontrar uma noiva. Rico, vaidoso e com trejeitos femininos. Ele tem uma certeza: seu dinheiro pode comprar a tudo e a todos, inclusive uma esposa.
Angela Vicário (a noiva) é uma jovem prendada, criada para ser uma esposa dessas tradicionais. Foi educada em moldes conservadores e sua família possuía o mesmo espírito tradicionalista. Sua família a força a se casar com Bayardo San Roman por causa da riqueza do rapaz. Sem ter como escapar da pressão familiar, não teve outra opção senão casar-se com um noivo por quem não nutria nenhum sentimento. E aí? Bem, algo que tinha tudo para dar certo sofre um desvio de rota.
O livro “Crônica de uma morte anunciada” é um romance “realista”, uma verdadeira obra-prima. O livro segue os padrões de escrita do autor, ou seja, é um livro não linear, que consegue sustentar uma tensão dramática mesmo revelando no início os destinos de alguns personagens inseridos na história. García Márquez retrata uma sociedade em que todos sabem sobre o assassinato que vai acontecer, exceto o assassinado. Tarde demais. Talvez esteja aí uma das grandes ironias do livro. Todos estão ansiosos para falar sobre o assassinato, mas ninguém se dispõe a conversar sobre isso com os assassinos. Todos sabiam que o assassinato estava para acontecer, por que ninguém interviu para evitar isso? Cabe a você, leitor, descobrir.
Como todo bom mistério, este tem um investigador não identificado, que podemos adivinhar que seja o próprio Gabriel García Márquez (eu suponho). Nosso narrador reconstrói minuciosamente os eventos daquele dia fatídico. Muitos anos depois ele continua a entrevistar os participantes e os espectadores, e até mesmo rastreia o relatório oficial do ocorrido.
O narrador tenta montar o quebra-cabeça e reconstituir os fatos usando a forma de crônicas para organizar o tempo, recolher as informações do passado e recriar o que de fato aconteceu, ou seja, para atribuir um sentido de ordem e cronologia do “espetáculo daquele evento”, o assassinato. A conduta diária nesse povoado sempre dominado por hábitos lineares, de repente, começa a girar em torno de uma ansiedade comum.
O assassinato de Santiago Nasar desequilibra o ritmo pacífico da cidade, mudando a vida de muitas pessoas para sempre. Este evento espetaculoso e incomum modela o imaginário de todos habitantes que por anos e anos após o acontecimento ainda discute regularmente aquela anunciação sinistra. Em outras palavras, podemos dizer que aquele acontecimento que abalou a tudo e a todos acabou se transformando em uma rotina.
O espelho retrovisor do narrador trabalha com os cacos da memória de uma aldeia esquecida no tempo tentando montar os fragmentos espalhados dos fatos e das versões de todas as testemunhas. O tempo joga um nevoeiro sobre o acontecimento de décadas atrás, dificultando o reordenamento e a reprodução daquela experiência. Os saltos narrativos dessa crônica de uma morte anunciada leva o leitor para frente, ou seja, aos acontecimentos após a morte, e para trás com a história familiar dos personagens envolvidos. Aos poucos o narrador vai percebendo que essa experiência não pode ser contada com a precisão de uma história linear.
Os personagens estão dispersos em uma cidade que se encontra, como já disse, perdida no tempo, e essas testemunhas estão desaparecendo, em razão da ação deletéria do tempo entre os vivos. O crime que foi anunciado no passado, no entanto, continua a repercutir no estado atual das pessoas da cidade e continuará remodelando o seu curso no futuro, já que não pode ser demonstrado ou interpretado no presente. O povo acredita que tudo foi obra do destino e essa justificativa age como um alívio coletivo da culpa. Sendo assim, o peso moral de terem sido omissos na morte de Santiago Nasar acaba tendo (no destino) a justificativa que atenua e absolve a todos.
À medida que lemos o romance, vão aparecendo vários obstáculos, lapsos, versões insuficientes. Mas, afinal, qual a causa da morte de Santiago Nasar? Não poderei responder a essa pergunta, em consideração aos leitores desse espaço. Mas uma coisa posso dizer com toda a tranquilidade: após o assassinato, “tudo continuou com cheiro de Santiago Nasar naquele dia”.
“Crônica de morte anunciada” é um livro daqueles que grudam. A estirpe de um dos maiores contadores de histórias do nosso continente não deixa dúvidas de que Gabriel García Márquez é um autor que merece um lugar de destaque na sua estante.