Névoa
Provavelmente, muitos podem desconhecer o autor desta obra que sugiro a leitura hoje:“ Névoa”. Eu mesmo o conhecia pouco. Confesso que fui apresentado a Miguel de Unamuno via Octávio Paz, em seu livro “O Arco e a Lira”. Li alguns artigos sobre ele e sua filosofia, mas não havia me deparado com o seu romance “Névoa”. Foi uma experiência fascinante que gostaria de compartilhar com todos os frequentadores desse espaço. Vamos primeiro à pergunta: - quem foi Miguel de Unamuno?
Miguel de Unamuno nasceu em Bilbao, em 29 de setembro de 1864. Estudou no Instituto Vizcaino de Bilbao, ingressando na Universidade de Madrid, em 1880, onde concluiu o doutorado de filosofia e Letras. Em 1890, catedrático de língua e literatura Grega da Universidade de Salamanca, foi nomeado reitor dessa instituição,em 1900, e demitido em 1914, depois de ter defendido os aliados durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1920, foi nomeado decano da Universidade, onde em 1921 foi vice-reitor.
Aposenta-se em 1934, mas continuou com o cargo de “Reitor Vitalício”. Em 1936 foi novamente destituído. Pouco depois do início da Guerra Civil, quando um general franquista disparou aos gritos as seguintes palavras de ordem: “Morram os Intelectuais” e “Viva a Morte”. Unamuno ouviu aqueles absurdos e também disparou:
“Vocês vencerão, porque tem a força. Mas não convencerão. Porque para convencer é preciso persuadir. E para persuadir é preciso algo que vocês não têm: razão e direito na luta”.
Esse discurso selou o seu fim, Franco não o perdoou. Perdeu o seu cargo de vereador e foi destituído do cargo de Reitor. Foi considerado traidor da pátria. Morreu em Salamanca, em dezembro desse mesmo ano (1936). Em 2011, Unamuno recuperou seu cargo postumamente.
Vamos ao romance, ou melhor, vamos para filosofia que está por traz desse romance antes de entrar na história propriamente dita.
O autor nos faz pensar que nós, seres humanos, somos apenas atores de uma história, não gozamos de autonomia, somos meros brinquedos de Deus, ou de alguém encarregado de organizar, iniciar e terminar essa “brincadeira” que chamamos vida. E agora eu pergunto a todos aqueles que acompanham esse blog: Será? Já pensaram nessa hipótese? Particularmente quando penso nessa hipótese me sinto muito melhor do que com a ideia de “céu e inferno” que nos esperam, com um tribunal que ditará as sentenças de acordo com os nossos comportamentos nesta vida. Devemos representar o script que nos foi dado da melhor forma possível. “E narrar a vida, é a maneira mais profunda de vivê-la”. Essa é a lição que o romance “Névoa” nos deixa. O mundo, por nós vivenciados, não passa de um sonho. Somos sonhados por alguém. E quando criamos mundos fictícios imitamos Deus. Afinal, somos a imagem a semelhança dele.
Isso me fez lembrar uma entrevista feita sobre a existência pelo grande ator Vittório Grassman antes de morrer. Ele aceitava a premissa que o mundo era um teatro. Só que para ele deveríamos estar todos ensaiados para vivermos a verdadeira história com o texto já pronto. Em outras palavras, sem muitas improvisações. Pelo menos foi assim que interpretei sua reclamação.
A hipótese levantada por Unamuno não apresenta nenhuma novidade. Platão já falou sobre isso em suas “Leis”. E esse tema ao longo dos séculos assumiu outras formas e passou a ser conhecido sob outras formas, no entanto, todos pautados de que a vida por mais substancial e real como nos apresenta não passa de uma existência de segunda ordem.
Essa foi a hipótese levantado por Shakespeare de que “o mundo é um palco. E os homens são meros atores. E cada um no seu tempo representa diversos papéis”. Em outras palavras podemos concluir utilizando-me de suas próprias palavras: “é que a terra é o único palco possível para o espetáculo chamado vida.” Utilizamos nossas máscaras em situações variadas, e se tirarmos uma a uma o que sobra? Outras tantas para no final chegarmos a conclusão que atrás de todas as nossas máscaras não existe mais nada.
O livro A Névoa (que designava por “nivola” neologismo impossível de traduzir, mantido na versão brasileira, lembra algo entre “névoa”, “esboço” e “noveleta”) é uma combinação muito interessante entre a prosa com a filosofia e ele assim o faz com grande maestria. Considerada a obra prima da metalinguística cujo efeito está bem patente na parte final em que Augusto Pérez (personagem) discute com o seu criador qual é o seu papel na vida ou na novela.
É nessa obra prima que convergem todos os estilos literários praticados pelo escritor, filósofo e ensaísta. Nesse romance inspirado em Cervantes, questiona de uma maneira tragicômica as fronteiras que dissolve a realidade e a ficção. E foi com este livro escrito em 1907 e publicado em 1914 que Miguel de Unamuno alcançou seu espaço no cenário europeu com traduções em vários idiomas.
Diante do sucesso alcançado chegou a conclusão de que a fantasia e a tragicomédia dessa história será “o que mais fala e diz ao homem individual que é universal, o homem que se coloca ao mesmo tempo acima e abaixo das classes,castas, posições sociais, seja ele pobre ou rico, plebeu ou nobre, proletário ou burguês”(p.34).
Miguel de Unamuno disse sobre “Dom Quixote de la Mancha” que os dois personagens centrais, Dom Quixote e o seu escudeiro Sancho eram mais reais que o próprio Cervantes; com esta afirmação pode-se perceber tudo o que está implícito em “Névoa”, ou seja, quem é real ou quem é ficção: a novela tem trinta e três capítulos e um anexo final “Oração fúnebre em forma de epílogo”, e além disso dispõe de um prólogo, um pós-prólogo e um “prólogo à terceira edição, a novela é nada mais do que um pós-prólogo de Miguel de Unamuno, como autor da obra.
Névoa conta a história de um amor trágico entre o melancólico Augusto Pérez e de sua paixão pela fugidia Eugenia, uma pianista interesseira, mulher que tinha outro amor, mas que tinha seus olhos concentrados na fortuna de Augusto. Augusto descobre nessa mulher o seu primeiro amor, o amor de todos os amores.
Paixão ou ilusão? Para Unamuno são palavras sinônimas. Não acreditava em paixão sem ilusão. Tampouco considerava possível a ilusão sem paixão. Tanto uma como a outra se caracterizam pela turvação dos sentidos. A paixão é o único remédio eficaz contra o tédio. O único instrumento capaz de amenizar a névoa da existência. Dom Augusto Pérez acredita viver em um mundo nebuloso após a morte de sua mãe, até que uma mulher, uma aparição, cruza o seu caminho. Começa a partir desse encontro, dessa “obra do destino” um jogo que lembra as partidas de xadrez que Dom Augusto travava no clube com o seu melhor amigo e os diálogos daquele com o seu cão confidente, Orfeo.
“Os homens não sucumbimos às grande dores nem alegrias, e é porque essas dores e essas alegrias vêm escondidas numa imensa névoa de pequenos incidentes. E a vida é isto, a névoa. A vida é nebulosa. Agora dela surge Eugenia. E quem é Eugenia? Ah, caio em mim que há tempos eu andava procurando por ela. E enquanto procurava, ela apareceu em meu caminho. Não é isto encontrar algo? Quando alguém descobre a aparição que procurava, não acontece de a aparição, compadecida da procura, vir ao seu encontro? Não saiu a América em busca de Colombo? Não veio Eugenia procurar a mim? Eugenia! Eugenia! Eugenia!”
(p. 45-46)
A vida como um sonho de Deus, para Unamuno, transcendia o lado literário, ou algo meramente retórico, mas numa fonte de angústias, que trazemos conosco durante toda a nossa existência. “Você morrerá” diz Unamuno para Augusto Perez (sua criação). Se Deus despertar, é provável que o tema de seus sonhos vá mudar. E o que acontecerá? Se Deus acordar de seus sonhos o nada será o nosso destino. Em “Nevoa” Deus está nos “sonhando”, que não passamos de “personagens” na estória cósmica dele.
“Quando me neguei a indultar da morte meu Augusto Pérez, este me disse: “ Você não quer deixar ser eu, sair da névoa, você não quer me deixar ser eu, não quer me deixar sair da névoa, viver, viver, viver, me ver, me ouvir, me tocar, me sentir, me doer, me ser: então não quer? Então hei de morrer ente de ficção? Pois bem, meu senhor criador dom Miguel, você também morrerá, você também, e voltará ao nada que saiu... Deus deixará de te sonhar! Você morrerá, sim, morrerá ainda que não queira; morrerá você e morrerão todos os que leiam minha história, todos, todos, todos, sem sobrar um. Entes de ficção como eu, o mesmo que eu! Morrerão todos, todos, todos!”. Assim me disse, e como sussurram, através de quase vinte anos, durante eles, em terrível sibilo quase silencioso, como o bíblico Jeová, essas palavras proféticas e apocalípticas! Porque não é só que tenho vindo morrendo, é que se foram, morreram os meus, os que faziam e me sonhavam melhor. Foi-se de mim a alma da vida gota a gota, e algumas vez a jorros. Pobre mentecaptos os que supõem que vivo torturado por minha própria imortalidade individual! Pobre gente!”
(Névoa. p.36)
Acho que terei que parar por aqui, e, o motivo é simples, estou com medo de entregar tudo e negar a vocês o direito de tirarem as suas próprias conclusões. “Névoa” é um desses livros que nos fazem pensar sobre a nossa existência e de qual material somos formados. É um desafio que o autor lança ao leitor. Seja qual for suas conclusões ao que foi escrito uma coisa é certa, para responder a essas indagações é preciso ler “Névoa”. Um romance imperdível que merece um lugar em sua estante.