As benevolentes
Caros amigos e amigas, venho com imenso prazer indicar um dos melhores livros sobre guerra que já li em toda a minha vida: “As Benevolentes”, de Jonathan Littell . Sim! Sinto-me extremamente entusiasmado. Falo isso feliz por ter indicado esse livro a muitos outros leitores e a receptividade ter sido entusiástica. Existem muitos livros que indico por aqui ou na livraria onde trabalho, e confesso que o mérito de uma sugestão não reside no agradecimento posterior, muitas vezes recebido por quem leu e gostou, mas no prazer propiciado ao outro. Quando se tem a certeza que houve empatia, “aquele” e perfeito entrosamento entre obra e leitor. “That’s it”.
Muitos de nós, Livreiros, somos influenciados pelos bons leitores que aportam na livraria, e esse livro me foi indicado por uma leitora voraz, a psicanalista Dra. Monica Marques Tenenbaum que certa vez me disse: “...leia esse livro e você nunca mais vai se esquecer dele." Quando eu vi o calhamaço na estante pensei : “Será? Meu Deus, 896 páginas! Começar o ano de 2013 com esse tijolo? (Afinal, livros com mais de 800 páginas intimidam em função de nossa falta de tempo)Será? Vou encarar! Por que não?!”. Eu fui, li e agora recomendo uma obra que fará a diferença na sua estante.
Muito já foi escrito sobre guerras. Stendhal e Tolstoi no século XIX escreveram sobre o assunto com uma maestria desconcertante. No século XX, o primeiro a relatar as atrocidades de uma guerra moderna foi Otto Maria Remarque em seu livro “Nada de Novo no Front” que alcançou um estrondoso sucesso. O autor que lutou na Primeira Guerra nos deu um panorama das trincheiras que horrorizavam a tudo e a todos. Louis Ferdinand Celine escreveu um livro “Viagem ao Fim da Noite” sobre a atmosfera alegre que precedeu à Primeira Guerra e o niilismo que se abateu no durante e no após guerra (temos a resenha desse livro no blog para aqueles que quiserem saber algo sobre o autor e a obra). Relatos sobre a Segunda Guerra existem aos borbotões. Filmes, livros relatando os massacres em campos de concentração, batalhas aéreas e terrestres, biografias sobre algozes e heróis nesse período obscuro da história humana.
Porém, no campo da ficção, nada pode ser comparado ao livro “As Benevolentes”. Jonathan Littell, vencedor do Prêmio da Academia Francesa e do Prêmio Gouncourt de 2006, traça um panorama arrebatador sobre uma das guerras mais sangrentas do século XX. Qual a diferença desse livro para os outros tantos livros que já foram escritos sobre o mesmo tema? Simples. Esse livro nos é relatado sobre o ponto de vista dos carrascos, ou seja, dos nazistas. E o mais interessante: o escritor é um judeu.
A história me pegou nas primeiras páginas e à medida que ia lendo, me sentia vivenciando aquilo tudo de fora e quanto mais eu avançava, uma nova sensação se apresentava, me sentia dentro da guerra como se estivesse vendo “ao vivo” todas as cenas de terror a minha frente, sentia-me em cada rua, em cada casamata. O frio de 40 graus abaixo de zero, todos os desconfortos, e o terror narrados pelo escritor.
Jonathan Littell pinta uma obra de arte a céu aberto onde decifra com precisão a implantação de genocídios organizados e decifrados com precisão em forma de memórias através de um oficial da SS chamado Max Aue. Esse narrador é um jurista de profissão, um classicista por formação e um esteta por natureza. Max Aue se propõe a justificar em suas memórias o assassinato em massa dos judeus e regularmente Platão, Sófocles e Goethe aparecem em suas reflexões como referência filosófica. O que chama a atenção é seu olhar frio, irônico que nos permite ter uma excelente visão dos acontecimentos históricos apresentados.
Uma jornada rica em detalhes históricos e repleta de participações da nata da elite nazista: Himmler, Speer, Borman, Mengele e, mais significativamente de Adolf Eichman, “o burocrata talentoso” cumpridor de seus deveres nas palavras de Max Aue, o verdadeiro arquiteto da “Solução Final”.
Um homem que revela suas perversidades e grandes certezas. Mas para isso tenta nos convencer separando: a vida como ela é e a vida em sua imaginação. Convencido de que estava servindo ao seu país, ciente de sua cultura e dotado de uma mente analítica incomum, ele é enviado para missões no exterior, cujo objetivo era: “Melhorar o desempenho”. Para isso, ele coloca o coração no trabalho, participando de reuniões incessantes, indo para o front, e suando a camisa no inferno. Max Aue é um servo, um administrador exemplar. Assim diz ele na introdução de suas memórias:
“O que fiz, fiz com pleno conhecimento de causa, julgando ser meu dever e necessário que fosse feito, por mais desagradável e infausto que fosse” (pg.24).
Max Aue é um sedutor fascinante e perturbador. Ele se apresenta em algum lugar na alma humana deseja gozar de nossa intimidade e, ao lermos o livro caímos na armadilha do autor e seu personagem.
Se você leitor estivesse na Alemanha vivenciando esse período obscuro, seria capaz de se rebelar a tudo isso ou teria se tornado um cúmplice de todas as barbáries, assim como muitos? Uma pergunta perturbadora. Talvez eu insista que para navegar contra a corrente seja necessária uma autonomia de difícil resolução. Caso não tenhamos controle e clareza sobre nossos valores éticos, estaremos sempre a mercê do pensamento e do comportamento alheio, ao pensamento coletivizado que prevalece em algumas torcidas políticas organizadas. Acho absolutamente pertinente as questões levantadas pelo autor.
Chamo a atenção para as páginas: 362, 363,364, 365, 366. Essas páginas mostram um diálogo no mínimo curioso entre um prisioneiro de guerra soviético chamado, Illia Seminovitich e Max Aue. Simplesmente imperdível.
E se vocês pensam que tudo termina por aí fiquem certos que não viram nada. Chamo a atenção paras as reflexões do Dr. Aue nas páginas 544, 545 e 546. Este romance é um tributo literário por sua densidade, suas inúmeras visões e perguntas originais que eximem o carrasco de suas responsabilidades, atribuindo ao fato de sermos humanos a verdadeira culpa, todos capazes de crueldades, omissões e vulneráveis a convenientes cumplicidades com o mal.
“As Benevolentes” é um estetoscópio desconcertante de nossa relação com o carrasco. Leitura séria que aponta para as questões fundamentais da nossa história e da nossa civilização.
Dessa vez, fornecerei a vocês um pequeno trecho de uma reflexão do Dr. Aue só para dar a dimensão desse personagem de sua narrativa e de seu universo.
“...se a Alemanha houvesse esmagado os vermelhos e destruído a União Soviética, nunca teria existido essa balela sobre crimes, ou melhor, teria, mas sobre crimes bolcheviques, devidamente documentados graças aos arquivos confiscados (arquivos do NKVD de Smolensk, evacuados para a Alemanha e recuperados no fim da guerra pelos americanos, desempenharam exatamente esse papel quando enfim chegou a hora em que foi preciso quase de um dia para outro explicar aos bons eleitores democráticos por que os monstros infames da véspera, então revelados como monstros ainda piores), até mesmo, quem sabe, retomando, por meio de normas legais, por que não, o processo dos líderes bolcheviques, imaginem só, para bancarmos os sérios como pretenderam os anglo americanos (Stalin, como sabemos, zombava daqueles processos, tomava-os pelo que eram, uma hipocrisia, ainda por cima inútil), e depois todo mundo, ingleses e americanos à frente, teria composto conosco, as diplomacias se realinhariam de acordo com novas realidades, e apesar da inevitável gritaria dos judeus de Nova York, os da Europa, que de toda forma não iriam fazer falta a ninguém, teriam sido considerados perdas e danos, como todos os outros mortos aliás, ciganos, poloneses, sei lá mais o quê, o capim seco nos túmulos dos vencidos e ninguém toma satisfação do vencedor, não digo isso para tentar justificar, não, é a simples e terrível verdade, basta olhar para Roosevelt, esse homem de Bem, com o seu querido amigo Uncle Joe, quantos milhões então Stalin já matara, em 1941, ou mesmo antes de 1939, muito mais do que nós, isso é certo,e, ainda que fizéssemos um balanço definitivo, ele teria tudo para ficar à frente somando coletivização, deskulakitização, grandes expurgos e deportações de nativos em 1943 e 1944, e, como sabemos, na época, todo mundo sabia mais ou menos, durante os anos 30, que acontecia na Rússia, Roosevelt sabia também, esse amigo dos homens, mas isso nunca o impediu de enaltecer a lealdade e humanidade de Stalin, a despeito aliás das repetidas advertências de Churchill, um pouco menos ingênuo sob certo ponto de vista, um pouco menos realista de outro, e se portanto tivéssemos feito a nossa parte e efetivamente vencido a essa guerra, teria de certo acontecido a mesma coisa, aos poucos os empedernidos, que teriam deixado de nos chamar de inimigos do gênero humano na falta de público, teriam se matado um a um e os diplomatas teriam aparados as arestas, pois afinal de contas, não é mesmo, Krieg ist Krieg und Schnaps ist Shnaps, e assim a vida continua...”(pg614-615).
Traduzindo literalmente podemos dizer: Guerra é Guerra e é o lugar para tudo, é o próprio “Vale Tudo”. Mas no “Vale Tudo” também tem regras. As guerras têm suas regras e seguem tratados e tribunais internacionais, mas não são levados em conta no calor das batalhas. Talvez seja essa a interpretação que eu dou ao texto em alemão dito por Aue.
Se vocês pensam que já podem a partir dessa simples citação achar que já conhecem o livro, é bom tomar cuidado. Pois o livro revela muito mais, mas muito mais mesmo.
Mais uma pergunta que surge durante a leitura: como um jovem escritor que não viveu a guerra relata cenas tão precisas? A explicação deve-se ao suor, ao talento e a competência que o autor teve em pesquisar durante anos os documentos, arquivos escritos e em áudio, vídeo tudo sobre a guerra. Leu cerca de duzentos livros sobre a Alemanha nazista, especialmente na frente oriental. Visitou Kahrkov, Kiev, Pyatigorsk, Stalingrado, seguindo os passos da invasão sangrenta da Wehrmacht. Leu tudo sobre as questões administrativas e militares. O romance é um documentário. A exatidão histórica é impressionante. As páginas que descrevem a sua chegada a Stalingrado são especialmente ricas em ritmo, detalhes e clareza. Um documentário, uma narrativa com formato de fotorrealismo que nos fornece lugar e direção e fizeram com que muitos o comparassem a Tolstoi, comparando “Guerra e Paz” com “As Benevolentes”.
É uma história militar de aventura emocionante e ao mesmo tempo um poderoso estudo sobre a patologia coletiva que reinava na Alemanha naquele período.
A obra "As Benevolentes" é dividida em sete seções principais, cada um com um título que evoca um tema musical (Toccata, Alemand I, II, Courante, Sarabande, Minuet, Air de Johan Sebastian, Bach, e Giga). Os compositores renascentistas do século XIV usavam alguns estilos para emparelhar danças, tais como a “pavana” e a “galharda”, que foi ampliada pela inclusão de novas peças no período barroco do século XVI. Assim, a suíte assume um caráter “molde”, constituído por: uma allemand, uma courante (francesa ou italiana), uma Sarabande e uma Giga. O narrador nos convida a dançar em cada capítulo a valsa dos horrores. Nunca se esqueçam de que o narrador é um classicista. Um homem com ideias da Renascença.
Uma outra pergunta recorrente que muitas vezes passam despercebidas por todos aqueles que leram o livro é: por que o livro se chama “As Benevolentes”?
A explicação encontra-se nas Erínias gregas (Fúrias para os romanos) que eram personificações da vingança que puniam os mortais por crimes de sangue. As Erínias dividiam-se em Tisífone (castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Interminável). Viviam nas profundezas do tártaro, onde torturavam as almas pecadoras julgadas por Hades e Perséfone. Pavorosas, possuíam asas de morcego e cabelos de serpente. As Erínias, também eram chamadas de Eumênides, que em grego significava: “As Benevolentes” é um eufemismo usado para evitar pronunciar o seu verdadeiro nome. Max Aue é perseguido por seus demônios, essa será para sempre a sua punição e com direito a crises de vômitos permanentes. Seus demônios em forma de relatos.
Mas Max Aue não quer e nem precisa de nosso perdão. Há mais de meio século que ele escapou da guerra e leva uma vida tranquila no norte da França, casado com dois filhos (que desconhecem a sua vida pregressa). Ele decidiu contar seu conto triste e se justifica citando Karl Marx:
“o operário é alienado em relação aos produtos de seu trabalho, no genocídio ou na guerra total sob sua forma moderna o executor é alienado em relação ao produto de sua ação. Isso também vale para o caso em que um homem coloca um fuzil na cabeça de outro homem e aciona o gatilho. Pois a vítima foi levada ali por outros homens, sua morte foi decidida por outros ainda, e o atirador sabe que não passa do último elo de uma longuíssima corrente e que não deve fazer mais perguntas que um membro de um pelotão que na vida civil executa um homem devidamente condenado pelas leis” (pg25).
Ele nos convida a mais uma reflexão: afinal, depois de tudo que aconteceu aprendemos a lição? Podemos afirmar que não acontecerá de novo? Essa resposta cabe a você leitor.
“Irmãos humanos, permitam-me contar como tudo aconteceu”.
Ok, vamos ouvi-lo, vamos ler essa grande obra de Jonathan Littell esperando que cada um tenha o poder de interpretação de acordo com sua consciência. Vamos debater aqui no blog esse livro tão polêmico. Mas sem nunca deixar de perguntar intimamente: “... e se eu tivesse vivenciado o lado obscuro dessa história de horrores, como teria agido? Você é um patriota ou traidor da pátria? Estamos imunes a uma situação semelhante?
Será que estamos todos nós preparados para dizer “NÃO” para futuros horrores quando vierem disfarçados por insígnias de hombridade, caráter e outros nobres valores? Se você se sentir perturbado com tudo isso, é sinal que você entendeu bem a história de Max Aue.
É sinal que você leu um grande livro, e ele merece um lugar na sua estante.